segunda-feira, 21 de julho de 2025

Autoras de BL estão sendo perseguidas na China como forma de estimular modelos "saudáveis" de feminilidade

Vivemos um momento muito peculiar da História no qual vozes masculinas (*e algumas femininas*) se levantam para denunciar um ataque à masculinidade e tudo o que seria compreendido, também, como hetero e cis.  Ontem mesmo, apareceu na Folha de São Paulo uma matéria com o seguinte título  Homem branco hétero está sumindo da ficção literária? Devemos nos importar?, na linha fina, aquele resumo rápido que vem logo abaixo de um título, estava escrito "Há uma reação a conquistas alcançadas nas últimas décadas por mulheres, minorias raciais e LGBTQ+ na política e na cultura".  Durante séculos, os homens, cis, hetero e, no ocidente, percebidos como brancos, sempre foram as vozes dominantes na cultura, seja a erudita, seja a popular, o aumento de uma representatividade de outros grupos, vozes mais diversas se expressando, já é suficiente para que tenhamos até políticas estatais com o objetivo de colocar as coisas "em ordem".  O esforço do novo governo dos Estados Unidos para reduzir ou acabar com políticas de DEI (Diversidade, Equidade, Inclusão) faz parte disso.  Só que não vou falar do país governado pelo Cheetos de peruca, desta vez, mas da China.  Antes, no entanto, vamos começar definindo um conceito fundamental: gênero.  

Gênero é  uma categoria utilizada nas ciências sociais e que se refere aos papéis masculinos e femininos em uma dada sociedade em um momento histórico determinado.  O que pode ser considerado como masculino ou feminino em um dado momento, ou lugar, pode não ser em outro.  Da mesma maneira, dentro de uma mesma sociedade, certos comportamentos e expressões (de gênero) podem ser aceitáveis a um determinado grupo ou classe social, grupo étnico ou em contextos específicos.  Um exemplo bem simples, no Carnaval, um homem hetero cis pode performar uma feminilidade que não seria aceitável no dia a dia.  Ou ainda, uma mulher negra podia, no período da escravidão, ser submetida à trabalhos pesados que não seriam vistos como compatíveis com aquilo que era visto como feminino e aceitável para as não-escravizadas, em especial, as brancas.

Retornando, China, Coreia do Sul e Japão sofrem com baixas taxas de natalidade.  A China ainda tem uma população enorme, mas como se trata de uma economia planejada, os burocratas anteveem que a coisa pode se agravar e isso pode prejudicar o desenvolvimento do país.  Há várias possibilidades de combater o problema, mas ao tentar diagnosticar suas causas, desde pelo menos 2017, o governo chinês decidiu apontar que os modelos de masculinidade do país estavam sendo contaminados por ideais de feminilidade.  Por conta disso, o governo chinês decidiu promover modelos tradicionais de masculinidade propostos pela Revolução (*1 - 2 - 3*) e passou a ficar de olho na cultura pop e nas redes sociais (*1 - 2*).  Não virou uma caça às bruxas como na Rússia, mas receber esse tipo de atenção do governo nunca é muito bom. 

Uma matéria do The Guardian do ano passado, deu um bom panorama da situação dos LGBTQIAP+ na China: "Embora a homossexualidade seja legal na China, tendo sido descriminalizada em 1997 e removida da lista de transtornos mentais em 2001, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é reconhecido, e indivíduos LGBTQ+ enfrentam diversas formas de discriminação e carecem de proteção legal. Não há leis específicas que proíbam a discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero."  Se não há uma perseguição aberta, existe uma pressão para que as pessoas fiquem no armário, que publicamente performem a heteronormatividade e uma situação de insegurança jurídica que prejudica o exercício dos direitos civis.  Não é o pior dos mundos, mas está longe de ser confortável e justo.

Muito bem, mas por qual motivo estou escrevendo esse texto?  Uma amiga me passou um artigo intitulado "Pelo menos 30 pessoas foram presas na China por escreverem material erótico gay"  (At least 30 arrested in China for writing gay erotica).  Estamos falando de quadrinhos (manhua), contos e romances com temática gay.  E, ainda que homens possam produzir esse tipo de material, a maioria dos autores são mulheres que escrevem para o consumo de outras mulheres.  É BL (Boys Love), mas os chineses também tem seu próprio termo para isso, Danmei (Chinese: 耽美).  Segundo a Wikipedia, existem plataformas on line nas quais as autoras podem postar desde os anos 1990, mas volta e meia a censura estatal atua contra esses espaços e perseguindo as autoras.  Parece ser algo meio que de veneta, não uma ação coordenada mais ampla, no entanto, neste exato momento, esse tipo de repressão parece estar aumentando e estar articulada com a promoção de um modelo de masculinidade revolucionária.

Segundo o artigo linkado acima, no início de julho cerca de trinta autoras teve que se explicar para a polícia, não raro, sendo expostas para a família, provocando uma situação de grande vergonha.  Quem produz erótica, muitas vezes o faz de forma anônima, ou por trás de pseudônimos.  Uma matéria da BBC reproduziu a fala de uma dessas autoras "Fui avisada para não falar sobre isso (...) Nunca vou me esquecer disso: ser escoltada até o carro à vista de todos, suportar a humilhação de me despir para ser examinada na frente de estranhos, vestir um colete para fotos, sentar na cadeira, tremendo de medo, com o coração disparado."  Todas as mulheres presas estavam na casa dos 20 anos e publicavam seu material em uma plataforma on line sediada em Taiwan, a Haitang Literature City.

E não pense que a coisa fica na humilhação, pois essas mulheres podem ser enquadradas na lei anti-pornografia do país e correm o risco de pegarem até 10 anos de cadeia.  A lei visa punir "descrições explícitas de sexo gay ou outras perversões sexuais". No entanto, como o texto da BBC esclarece, representações heterossexuais costumam ter mais liberdade e obras de autores chineses aclamados, incluindo o ganhador do Prêmio Nobel Mo Yan, contêm cenas sexuais explícitas, mas estão amplamente disponíveis.

A matéria da BBC reproduz várias falas dessas moças, a maioria postada na rede Weibo e já apagada: ""Naquele momento, tudo o que senti foi vergonha", postou uma escritora cujo nome de usuário no Weibo significa "o mundo é um enorme hospital psiquiátrico". Ela disse que a polícia a tirou da aula na faculdade — e seus colegas a observaram enquanto a seguiam para revistar seu dormitório.  "Ganhei meu dinheiro palavra por palavra digitando. Mas, quando tudo deu errado, foi como se nada disso importasse. As pessoas me trataram como se eu tivesse ganhado dinheiro sem nunca ter trabalhado para obtê-lo."  Outra escreveu que a polícia foi gentil, aconselhando-a a consultar um advogado e devolver seus "ganhos ilegais" para reduzir sua sentença. "Tenho apenas 20 anos. Tão jovem, e já arruinei minha vida tão cedo."  Uma terceira disse: "Nunca imaginei que chegaria o dia em que cada palavra que escrevi voltaria para me assombrar."  Uma autora que escreve romances danmei há 20 anos não foi interrogada, mas diz que a repressão não a impedirá. "É assim que encontro a felicidade. E não consigo abrir mão dos laços que construí com a comunidade.""

A matéria segue discutindo o quanto esse tipo de fantasia permite que as autoras e suas leitoras questionem papéis de gênero, imaginem outras possibilidades para além da heterossexualidade compulsória.  Fora isso, dentro da cultura chinesa falar de sexo, especialmente sendo uma mulher, não é algo bem visto.  O fato de serem mulheres produzindo para seu próprio consumo e sobre temas vistos como tabu deve ter chamado a atenção das autoridades e essas moças estão pagando caro por terem sido um pouquinho subversivas.

""Como pais, quantos de nós podemos aceitar que nossos filhos leiam romances como esse, quanto mais que os escrevam?", perguntou um usuário do Weibo."   Algo que a matéria da BBC também pontua, e que pode ter pesado para criar essa onda de perseguição, é o fato da plataforma não ter um controle rígido de idade, há leitoras e escritoras menores de 18 anos e a matéria identificou meninas que começaram a ler pornografia aos 11 anos.  Quem conhece a internet sabe que é fácil burlar qualquer controle de idade, ainda assim, é algo preocupante.  Ser exposto jovem demais à situações de sexo e/ou violência pode acabar ajudando a construir representações muito distorcidas sobre sexualidade, consentimento, prazer etc., portanto, não vamos tapar o sol com a peneira.

No entanto, o motivo principal parece ser mesmo a promoção de valores "tradicionais" de gênero.  ""O governo chinês quer promover os valores familiares tradicionais, e gostar de romances danmei é visto como um fator que torna as mulheres menos dispostas a ter filhos", explica o Dr. Ge.  Esta é a segunda onda de prisões em massa em menos de um ano — no final do ano passado, cerca de 50 escritores de Haitang foram processados. Uma autora famosa, que ganhou cerca de 1,85 milhão de yuans, foi condenada a quase cinco anos de prisão.  As duas repressões são semelhantes, de acordo com um advogado que representou alguns dos réus no ano passado, "mas desta vez, mesmo aqueles com envolvimento menor não foram poupados"."

As mulheres não estão querendo casar e ter filhos, porque o casamento não parece compensador, porque, não raro, espera-se que elas coloquem suas carreiras em segundo plano, ou se submetam à arranjos familiares patriarcais.  E isso é um fenômeno em toda a região e já faz vários anos (*1 - 2 - 3*).  O 4Bi coreano é só uma forma mais radical de encarar o problema.  Além disso, e vale para a China, também, criar uma criança é muito caro.  O problema é o capitalismo, e o modelo chinês não foge disso, e o alto nível de investimento que você precisa fazer em um filho ou filha para ser competitivo, a ansiedade que isso era, todo esse processo desgasta muito tanto homens, quanto mulheres. Quem quer filhos, acaba, muitas vezes, tendo um só, é o que dá, especialmente, quando se é pobre, ou de classe média.  E vou citar uma matéria do IG "De acordo com as informações divulgadas pelo jornal sul-coreano Chosun Ibo, criar um filho até os 18 anos na Coreia custa o equivalente a 7,79 vezes o PIB per capita, o que, em dinheiro vivo, se traduz em cerca de 365 milhões de KRW. Em segundo lugar ficou a China, com um custo de 6,9 vezes o PIB per capita, seguida pela Alemanha (3,6) e pela França (2,2)."

Entenderam que, para além da misoginia e da homofobia, que não podem ser deixadas de lado, há várias coisas que podem e devem ser questionadas?  Ter filhos é muito caro.  A natalidade nesses países não está caindo porque as mulheres estão escrevendo BL, ou porque os meninos estão escolhendo expressões de gênero em desacordo com o que os velhos que controlam o Partido Comunista Chinês consideram o correto.  Mas quem vai querer mexer nesse vespeiro?  Enquanto isso, essas moças são aterrorizadas, perseguidas e presas.  E, sim, elas são poucas, afinal, pense na população da China, mas não deveriam estar sofrendo esse tipo de assédio e humilhação.

2 pessoas comentaram:

Engraçado que eu tava pensando tempos atrás sobre isso, como a China, sendo essencialmente patriarcal deixava rolar essas coisas e tava tudo bem. Pensava que era por causa do comércio que os BLs rendiam. Pelo visto não é bem assim...

Assim, a perseguição não é contínua, mas ela pode acontecer. Essa nova onda parece ser a pior de todas. E eu ainda apostaria que o portal de publicação ser de Taiwan tenha certo peso nisso.

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