Conheci o livro Cometerra (Cometierra), de Dolores Reyes, por causa de um vídeo da Deutsche Welle (DW) sobre a proibição de livros pelo mundo. Onde quer que a extrema-direita chegue ao poder, isso é a regra e o assunto principal do vídeo era o que está ocorrendo nos Estados Unidos, mas a reportagem falava, também, das tentativas de censura promovidas pelos ditos progressistas. Só que há outro país que recebe atenção, a Argentina, porque, depois da chegada de Millei ao poder, se iniciou uma onda de perseguição à livros considerados inadequados para estar nas escolas, a maioria ABSOLUTA desses livros é de autoria feminina, vários deles com alguma temática feminista. Cometierra é um deles e eu decidi ler e terminei nesta madrugada.
Cometerra conta a história de uma menina que tem um estranho dom, se ela comer a terra pisada por uma pessoa, ela tem visões sobre ela. Esse dom, que é, também, uma maldição, faz com que ela seja procurada por diversas pessoas em busca de desaparecidos, na maioria dos casos, Cometerra só consegue ajudar a localizar seus corpos. Cometerra é uma espécie de denúncia da violência que existe nas periferias das cidades latino americanas, porque a história poderia se passar no Brasil, também, na qual pessoas pobres somem todos os dias e os feminicídios são diários.
Cometierra foi lançado, na Argentina, em 2019, e a Editora Moinhos o publicou em português, em 2022. Li a versão Kindle. Leitura rápida, capítulos curtos, prosa direta. É um romance na tradição do realismo fantástico latino americano, mas duro, sem romantismo, sem ideal moralizador e que se centra em uma família pobre e destruída pela violência. A mãe de Cometierra foi assassinada pelo pai, que fugiu. Cometierra é uma criança ainda, nunca ficamos sabendo de seu nome, ela é chamada assim, também, não sabemos sua idade, mas eu apostaria 10 ou 11 anos. A vemos crescer ao longo da história, tornar-se mulher, mas sem que saibamos quantos anos ela tem.
Depois da morte da mãe e do desaparecimento do pai, uma tia paterna vem cuidar de Cometierra e seu irmão mais velho, Walther. A tia quer que Cometierra esqueça seu dom, a trata de forma ríspida, mas parece ter medo. Quando a menina vê onde está o corpo de Ana, sua professora desaparecida, a tia não aguenta mais e abandona os sobrinhos. Já Cometierra acaba largando a escola e nenhuma autoridade se preocupa com ela, ou com Walther que arranja um emprego como mecânico. A casa dos dois vira um lugar de encontro para adolescentes, que jogam playstation, fumam e bebem cerveja. Com o passar do tempo, pessoas começam a procurar por Cometierra e ela acaba cedendo e ajudando, conseguindo, também, contribuir para a renda da família.
Só que não há como Cometierra não se envolver emocionalmente com os desaparecidos, mesmo que não queira, mesmo que resista, ela não quer que mais ninguém morra, especialmente, mulheres. Ao longo do livro, ela consegue ajudar a resolver alguns casos, todos eles são comoventes a sua maneira, uns violentos, outros, acidentes. De qualquer forma, ao longo da obra, Cometierra sonha com a professora Ana, uma espécie de amiga e companheira. A cada sonho, ela fica mais próxima de Ana em idade e se angustia em saber que os assassinos de Ana nunca foram encontrados. Há nos quais Ana deseja que ela faça alguma coisa, em outros, ela deseja que Cometierra não tente descobrir nada.
Ao longo do livro, Cometierra tem dois amores. Hérnan, o primeiro, era amigo de Walther, tinha a idade do irmão de Cometierra. Como não sabemos as idades, fica a impressão de que se trata de um rapaz maior de idade e uma menina que, talvez, tenha 13, 14 anos. Não sabemos até onde eles foram, se somente beijos, ou algo mais. O fato é que Hérnan não consegue ficar ao lado de Comettierra, o dom da menina é algo com o qual ele não consegue lidar, especialmente, quando gente perigosa começa a ameaçá-la. O segundo amor de Cometierra é por Ezequiel, um policial que veio em busca de ajuda para encontrar a prima desaparecida. Cometierra não confia nele, não confia em policiais, mas fica fascinada pelo homem perfumado e tenta imaginar quantos anos ele tem, ela acredita que ele tenha a idade do irmão dela.
Com Ezequiel, Cometierra irá fazer sexo três vezes no livro. Não sabemos se a primeira das três relações sexuais foi a primeira de fato, ou a primeira narrada, porque a protagonista parece muito acostumada com a coisa toda. O fato é que as três relações sexuais são narradas de forma crua e sem romantismo, ainda que Ezequiel diga que ama a protagonista pelo menos uma vez e mostre se preocupar com ela. O fato é que Cometierra tem a necessidade do contato, há afeto, mas é basicamente sexo mesmo. São exatamente essas sequências que dispararam a crítica da extrema-direita quando o livro foi incluído na lista de leituras do Ensino Médio argentino, ou de algumas províncias do país, isso, não descobri ao certo.
A autora foi ameaçada de morte, a vice-presidenta, Victoria Villarruel, condenou o livro. E não fez somente isso, acusou a obra de ser pornográfica, pedófila e postou pedaços de outros livros, cenas de sexo, como se fossem de Cometierra. Dolores Reyes recebeu apoio de outros autores e autoras argentinos, houve protestos e o livro ganhou mais notoriedade. Ainda assim, Reyes, que é mãe de sete crianças, teve sua vida virada pelo avesso. Imagina escrever um romance que tem o feminicídio como tema central e ser ameaçada de morte? Fora o medo por suas crianças, enfim.
Se eu tivesse que dar uma nota para Cometierra, não seria a nota máxima. Daria um sete no máximo. A trama é envolvente, a ideia de que as mulheres tem ligação com a terra, que nos acolhe de volta como em um retorno ao útero materno, é já vista, mas muito bem trabalhada. O problema é que Cometierra é o primeiro livro de uma série. Não esperava por isso, então, me frustrei no final e não foi pouco. O seguimento se chama Miseria, o apelido da menina, porque Cometierra descreve a moça como pouco mais velha que ela quando sua mãe morreu, que se tornou companheira do irmão da protagonista. E eu terei que ler esse livro agora... Não esperava por isso.
E, sim, o livro não discute a questão da pedofilia, ela toma a coisa como algo consumado, que faz parte de um mundo de adolescentes deixados a própria sorte, sem carinho, sem orientação, dependendo somente de si mesmos. Como pontuei, não há nenhum intuito moralizador no livro, de denúncia, talvez, mas não de resolver problemas. O racismo é outro tema não discutido. Não há descrições físicas de Cometierra ou do irmão. Somente uma moça morta é descrita como loura e que a mãe da menina, que tinha estudado com Cometierra, se achava melhor do que os outros do bairro por causa disso. É o capital simbólico da branquitude.
A morta tinha sido proibida de ser amiga de Cometierra pelas mãe, as duas eram colegas de escola. Mais tarde, a mãe vem atrás de Cometierra pedindo ajuda. Somos levados a crer que o grande motivo da separação das duas tinha sido o horror causado pelo dom da protagonista, só que, mais tarde, Ezequiel, o policial, interpela Cometierra da seguinte forma "O que você está fazendo com esses negros?". Ela pensa que ele nunca tinha falado assim com ela e que ela não era diferente dos "negros" aos quais ele se referia com tanto desprezo. Logo, posso deduzir que a protagonista era negra, correto? E há uma passagem em que Walther diz para a irmã procurar uma mãe de santo. Não há descrições físicas das mulheres do terreiro, que Cometierra diz que se parecem com deusas, será que eram negras, também? Essa não discussão do racismo me incomodou bastante.
Já caminhando para o final, conforme eu ia lendo, ficava pensando em como Cometierra poderia dar um bom filme e que, com todo o sucesso e perseguição, ele viria. Bem, não será filme, mas uma série e ela está prestes a estrear no Prime Video. A ação foi transferida para o México, aliás, foi nesse país que se popularizou a palavra feminicídio. E é aquilo que pontuei, a história poderia ocorrer em quase qualquer lugar da América Latina. No seriado, Cometierra tem um nome, Aylín, e mora em um subúrbio da Cidade do México. O responsável principal pela adaptação é o argentino Daniel Burman e a protagonista será Lilith Curiel. O resto do elenco está no IMDB. O trailer (*logo abaixo*) parece apontar que será uma série policial. Encontrei outro vídeo, que diz que Aylín tem o dom de resolver feminicídios, bem, no livro, livro, há mais que feminicídios. De qualquer forma, espero ter paciência para dar uma olhada. Sei que vai fazer um grande sucesso.



















































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