quarta-feira, 23 de julho de 2025

Os Irmãos Grimm Eram Sombrios por um Motivo: Adorei traduzir esse artigo

Quando me deparei com esse artigo da The New Yorker sobre os Irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), imaginei que seria outra coisa, que falaria dos contos de fada e suas versões, mas não era nada disso, trata-se de um belíssimo texto sobre como os Grimm trouxeram suas experiências de vida para suas versões dos contos e a ligação deles com o processo de unificação da Alemanha, que eles não viram acontecer, morreram antes.  E o artigo foca no intenso amor que unia os irmãos, também.  Um texto tão bonito, tão bem escrito, mesmo que eu discorde aqui e ali como historiadora, e coloquei notas por isso, que eu não poderia parar de traduzir.  

É mais um texto de história, que chega a citar Perry Anderson, um gigante da historiografia britânica, que eu tinha que terminar e colocar aqui.  Não é bem a cara do Shoujo Café, mas é um texto de História e Literatura que merece ser lido e está aqui para isso. Para quem quiser ir ao original, eis o link.  Ele se chama "The Brothers Grimm Were Dark for a Reason".  Espero que vocês gostem, como eu gostei.  E, como sempre tento fazer, mantive a estrutura original do artigo.  O que coloquei a mais foram os links para o Amazon BR, estava para o norte-americano, e o link para o Instagram dos artistas da ilustração, que é a única do artigo.


Os Irmãos Grimm Eram Sombrios por um Motivo

Sua versão de "Cinderela" ou "Rapunzel" podia ser perturbadora. Mas transformar a Alemanha em uma nação unificada, acreditavam eles, significava desenterrar sua cultura autêntica.

Por Jennifer Wilson (4 de novembro de 2024)

A infância de Jacob e Wilhelm, da riqueza à miséria, teve seus aspectos de conto de fadas. Ilustração de Golden Cosmos

Era uma vez uma família chamada Grimm que levava uma vida que não era nada disso. [1] No arborizado estado alemão de Hessen, Philipp, um escrivão municipal, vivia com sua esposa, Dorothea, e seus filhos em uma pitoresca casa de campo. Seu exterior era de um convidativo vermelho-claro, e suas portas, de um tom bege, como se fossem feitas de pão de mel. A sala de estar era forrada com papéis de parede com imagens de caçadores, em cujos rostos os dois filhos mais velhos, Jacob e Wilhelm (nascidos em 1785 e 1786, respectivamente), desenhavam barbas descaradamente a lápis. Logo, Philipp foi promovido a magistrado de uma cidade próxima, e os Grimm se mudaram para uma casa senhorial com empregadas domésticas, uma cozinheira e um cocheiro. Todo Natal, a família decorava uma árvore com maçãs, como era o costume alemão. No verão, as crianças se aventuravam pelos bosques ao redor para coletar borboletas e flores, confiantes de que conseguiriam encontrar o caminho de volta para casa.

Então, um dia, uma nuvem escura surgiu, como se convocada por uma bruxa enciumada pelo idílio doméstico. Em 1796, Philipp, com apenas 44 anos, sucumbiu a uma pneumonia. Jacob mais tarde se lembrou de ter visto o corpo do pai sendo medido para um caixão. Dorothea e os filhos foram obrigados a sair. Sem a renda de Philipp, foram forçados por um tempo a se abrigar em um asilo ao lado — amaldiçoados com a vista de sua antiga casa e do pátio onde brincavam alegremente, até o que viria depois.

Jacob e Wilhelm, os Irmãos Grimm, vivenciaram o tipo de reviravolta brusca, característica do gênero que se tornou sinônimo de seu nome: o conto de fadas. Um príncipe transformado em sapo; uma filha amada reduzida a copeira. Enquanto a versão francesa de "Cinderela", de Charles Perrault, começa com Cinderela já em frangalhos, trabalhando arduamente para a madrasta, a versão dos Grimm, "Aschenputtel", começa com a mãe da heroína em seu leito de morte. Ann Schmiesing, autora de "Os Irmãos Grimm: Uma Biografia" (Yale), observa que a mudança transforma uma "história de 'da miséria à riqueza' em 'da riqueza à miséria' — uma trajetória, aliás, que se assemelha à experiência dos Grimm". A versão dos Grimm ataca o conto francês de outras maneiras. Quando o príncipe aparece com o sapatinho fatídico, as meias-irmãs de Aschenputtel cortam seus calcanhares para que seus pés se encaixem. Cada uma delas chega aos portões do castelo antes que o príncipe perceba sangue jorrando por toda parte.

O teor sombrio dos contos de fadas dos irmãos Grimm é quase uma piada neste ponto, e seu sobrenome, que significa "irado" em alemão, não ajudou. Mesmo em vida, os irmãos foram submetidos ao trocadilho obrigatório. Jacob, um filólogo talentoso, agradeceu a um amigo por resistir à vontade de fazer a piada óbvia depois que ele publicou seu livro "Gramática Alemã": "Eu aprecio muito que você não tenha repreendido minha Gramática como sendo de Grimm". Na verdade, há uma severidade quase cômica em seus contos, entre eles "Como Algumas Crianças Brincavam de Matar", [2] em que dois irmãos, tendo acabado de ver seu pai abater um porco, tentam o ato um com o outro. Em "Rosa Silvestre", a versão dos irmãos Grimm de "A Bela Adormecida", pretendentes que tentam alcançar a donzela adormecida ficam presos na cerca viva de espinhos que cerca seu castelo, morrendo "mortes miseráveis".

Essas histórias equivalem à realização de um desejo para aqueles que querem acreditar em estereótipos sobre a austeridade alemã, o que pode ser uma medida do sucesso dos Grimm. Seu objetivo ao coletar esse folclore — além dos contos de fadas, os Grimm publicaram lendas, canções e mitos — era criar uma identidade nacional coesa para os falantes de alemão. É por isso que os irmãos, especialmente Jacob, também escreveram livros sobre filologia alemã e deram início ao que se pretendia ser o dicionário mais abrangente da língua alemã, o Deutsches Wörterbuch. (Trabalhando arduamente até os últimos anos de vida, eles chegaram a frucht, fruta.)

Os Grimm eram germanistas antes mesmo de existir a Alemanha. Quando nasceram, a "Alemanha" continha o que o historiador Perry Anderson descreve como um "labirinto de principados anões", e eles morreram pouco antes da unificação do país, em 1871. Nesse meio tempo, os contornos de sua terra natal mudaram repetidamente, com a invasão napoleônica de Hessen, em 1806, o Congresso de Viena e as redivisões pós-napoleônicas da Europa e, eventualmente, a ascensão de Otto von Bismarck. Em meio a essa desordem geográfica, os Grimm acreditavam que a língua e as tradições culturais compartilhadas poderiam ser o fio condutor de um povo, o seu povo. Tudo o que era necessário era um sujeito, ou dois, que viesse junto com uma roca.

Embora a posteridade os tenha unido, Jacob e Wilhelm eram dois homens bastante díspares. Wilhelm era o bon vivant, enquanto Jacob era o introvertido. O mais velho era o estudioso mais talentoso. A pesquisa de Jacob sobre fonética estabeleceu o que ainda hoje é conhecido em linguística como a Lei de Grimm. (Ele havia notado padrões pelos quais consoantes de outras línguas indo-europeias se alteravam à medida que chegavam ao alemão.) Quando, com cinquenta e poucos anos, os irmãos aceitaram cargos na Universidade de Berlim, Jacob rejeitou quaisquer honrarias e posições ilustres que o afastassem de sua mesa. "Eu vestiria alegremente uma bata caseira do material mais grosseiro e não me esforçaria por nada além disso", brincou com um amigo. Enquanto isso, o diário de Wilhelm daquele período o mostra assistindo a uma produção de "Sonho de uma Noite de Verão", passeando pelos jardins botânicos e visitando o Gabinete de Arte, onde o chapéu de Napoleão estava em exposição. Um "dia raro sem nenhuma visita", observou ele em uma entrada.

E, no entanto, uma biografia conjunta é o único tipo que parece apropriado; separar postumamente um irmão do outro parece o mesmo que profanar um cadáver, pois Jacob e Wilhelm eram ardentemente inseparáveis. Quando, durante seus anos de graduação, Jacob trabalhou brevemente no exterior para um de seus professores, Wilhelm lhe escreveu: "Quando você foi embora, pensei que meu coração se partiria em dois. Eu não aguentava. Você certamente não sabe o quanto eu te amo." Jacob prometeu que isso nunca mais aconteceria e esboçou como esperava que a vida deles fosse depois que concluíssem os estudos: "Presumivelmente, finalmente viveremos bastante retraídos e isolados, pois não teremos muitos amigos, e eu não gosto de conhecidos. Desejaremos trabalhar um com o outro de forma bastante colaborativa e cortar todos os outros casos." Quando Wilhelm se casou, Jacob morou com seu irmão e sua nova cunhada. Um amigo certa vez se dirigiu aos irmãos em uma carta como "Meus queridos cabideiros duplos!"

O vínculo entre eles foi forjado por meio da história compartilhada de perdas e isolamento social. Após a morte de Philipp, Jacob e Wilhelm deixaram de desfrutar do status inerente ao fato de serem filhos de um magistrado. Matriculando-se na Universidade de Marburg, no final da adolescência, tiveram que pagar suas próprias despesas; as bolsas eram normalmente reservadas para os filhos de aristocratas e proprietários de terras. Jacob via sua situação em Marburg como semelhante às ofensas que o povo alemão — desprovido das vantagens políticas e econômicas inerentes à condição de membro de um Estado-nação — sofria no cenário europeu. Ele escreveu em sua autobiografia: "A escassez estimula a pessoa à diligência e ao trabalho, afasta-a de muitas distrações e infunde nela um nobre orgulho que a mantém consciente da auto-realização, em contraste com o que a classe social e a riqueza proporcionam... Grande parte do que os alemães conquistaram em geral deve ser atribuído ao fato de não serem um povo rico."

Enquanto estavam na universidade, os irmãos foram influenciados por Friedrich Carl von Savigny, um jovem professor de direito que defendia que as leis não deveriam ser impostas a um povo, mas sim derivadas dele. Um legislador, portanto, deve ser uma espécie de historiador, ou, melhor ainda, um filólogo, atento aos desejos de um povo expressos em sua linguagem e narrativa. Em um estudo sobre os Irmãos Grimm e o nacionalismo alemão, o estudioso Jakob Norberg argumenta que, se Platão prescreveu um "rei filósofo" para governar a cidade-estado, os Grimm imaginaram um "rei filólogo" para liderar o Estado-nação.

Foi também em Marburg, e através de Savigny, que os Grimm se encontraram com Achim von Arnim e Clemens Brentano, dois escritores bem-nascidos que haviam começado a reunir canções folclóricas alemãs, com o objetivo de capturar a Volksseele — a alma do povo — que antecedeu o Iluminismo europeu e o neoclassicismo francês. Arnim e Brentano foram membros fundadores do que ficou conhecido como Romantismo de Heidelberg. Se o Romantismo alemão inicial, que floresceu em Jena, na década de 1790, valorizava a "visão de mundo individual e subjetiva", escreve Schmiesing, "os românticos de Heidelberg celebravam a literatura popular e heroica porque viam nela a experiência coletiva de um povo".

A máxima de Savigny situava a vontade nacional nos corações, ou, mais precisamente, nas línguas, das pessoas comuns. Embora os Grimm tenham começado ajudando Arnim e Brentano, eles passaram a se considerar fluentes, tanto em virtude do empobrecimento de sua família quanto da tradição que cercava seu estado natal, Hessen. Eles reuniam muitos de seus contos de fadas lá, convencidos de que a relativa distância da região em relação às estradas comerciais preservava seu caráter autenticamente germânico.

Hessen também tinha um toque de mito. A terra havia sido colonizada em tempos antigos pelo povo Chatti, descrito pelo historiador romano Tácito como sendo mais forte do que outras tribos germânicas. Com grande parte de seu terreno acidentado dificultando a agricultura, os mercenários tornaram-se um produto de exportação primário. Vinte e cinco por cento das forças terrestres britânicas na Guerra da Independência dos Estados Unidos eram hessianas. (Dizia-se que o cavaleiro sem cabeça de Washington Irving era o fantasma de um soldado de Hesse.) O filósofo Johann Gottlieb Fichte, um dos pais do nacionalismo alemão, chegou a acusar os europeus de manterem deliberadamente as terras alemãs fragmentadas — para melhor mobilizar a bravura alemã para suas próprias conquistas. Foi nessa paisagem conflituosa que os irmãos Grimm se propuseram a costurar uma herança cultural que pudessem hastear como bandeira.

Um inimigo para a eternidade havia surgido. A conquista das terras germânicas por Napoleão foi um divisor de águas para o Romantismo alemão. "Logo tudo mudou, desde o início", lembrou Wilhelm, sobre as tropas francesas ocupando sua cidade natal, Kassel, em 1806. "Pessoas estrangeiras, costumes estrangeiros e, nas ruas e nas caminhadas, uma língua estrangeira falada em voz alta." Hessen foi incorporada ao Reino da Vestfália, liderado por Jérôme Bonaparte, o infeliz irmão de Napoleão, que mal aprendera mais do que três palavras em alemão: as que significam "amanhã", "novamente" e "alegre". (Isso lhe rendeu o apelido de Rei Alegre.) Dizia-se que Jérôme se banhava em vinho tinto, o que, escreve Schmiesing, "ressaltava sua condição de estrangeiro em uma região acostumada ao vinho branco".

Jacob serviu como bibliotecário pessoal de Jérôme, mas sua verdadeira vocação era como uma espécie de soldado de infantaria-folclorista em meio às Guerras Napoleônicas. Mais tarde, ele reuniu um grupo de folcloristas que juraram "honrar a pátria" por meio do "resgate de nossa literatura popular". Os contos que eles reuniram eram migalhas de pão que guiariam o povo alemão ao seu lar cultural.

O primeiro volume dos "Contos Infantis e Domésticos" dos Irmãos Grimm foi publicado em dezembro de 1812. Continha oitenta e seis contos, incluindo clássicos como "Rapunzel", "João e Maria", "Branca de Neve", "Rumpelstiltskin", "Rosa-de-Santa-Maria" e "Chapeuzinho Vermelho", além de extensas notas de rodapé. Os críticos não sabiam bem o que fazer com uma coletânea de "contos infantis" que vinha com adendos acadêmicos e animais lascivos. "Sra. Raposa", em que uma raposa com nove caudas, que se parecem com símbolos fálicos peludos, testa a fidelidade de sua esposa, não era o tipo de história de ninar que os pais tinham em mente. O mesmo se aplicava a "Rapunzel", em que a fada (não a bruxa) percebe que sua prisioneira de longas tranças tem recebido visitas do príncipe quando, um dia, Rapunzel pergunta: "Por que minhas roupas estão ficando tão apertadas?" Para os irmãos Grimm, o que importava era ser autêntico, não, apropriado, e os contos de fadas, em muitas tradições literárias, nem sempre eram destinados a crianças. Segundo a estudiosa Maria Tatar, esses contos eram contos populares compartilhados entre adultos depois do trabalho, enquanto as crianças dormiam. Ela cita uma versão francesa de "Chapeuzinho Vermelho", na qual o lobo mau tem intenções nada gastronômicas para a menina. Nessa versão, ela faz o que equivale a um striptease, tirando a roupa enquanto o lobo disfarçado observa da cama, dando um contexto mais fresco a "Que mãos grandes você tem!".[3]

E havia também a questão da linguagem dos irmãos Grimm — escassa, agitada, visceral, sem filtros. No prefácio, os irmãos se gabavam da fidelidade da coletânea às suas fontes: "Nenhuma circunstância foi poetizada, embelezada ou alterada". Bem, isso estava claro, reclamou o velho amigo dos irmãos Grimm, Clemens Brentano, que achou que eles foram longe demais. “Se você quiser exibir roupas infantis”, escreveu Brentano, “pode fazê-lo com fidelidade, sem trazer uma roupa com todos os botões arrancados, suja de terra e a camisa para fora da calça”. Mas os Grimm queriam preservar a cultura do povo comum, não fazer com que o povo parecesse culto.

A biografia dos irmãos Grimm escrita por Schmiesing é a primeira grande obra em língua inglesa em décadas. Pode ser rica em detalhes, mas quando li "Paths Through the Forest" (1971), de Murray B. Peppard, uma biografia mais acessível dos irmãos Grimm, senti falta dos emaranhados indisciplinados de burocratas prussianos e dos longos comentários sobre gramática alemã de Schmiesing. A biografia dela é um prato cheio de alemão. Também apresenta descobertas que complicam a imagem dos irmãos como puristas etnográficos.

A percepção popular de como os irmãos Grimm coletavam seus contos foi capturada em uma ilustração publicada em uma revista alemã da década de 1890: Jacob e Wilhelm são mostrados visitando uma humilde casa de campo, ouvindo uma camponesa mais velha. "Essa cena rústica não aconteceu de fato", escreve Schmiesing. As informantes dos irmãos Grimm tendiam a ser mulheres instruídas de famílias abastadas que recuperavam histórias de aldeões e empregados. A mulher na ilustração, Dorothea Viehmann, era de fato uma das informantes mais pobres dos irmãos Grimm, mas seus contos não eram tão "genuinamente hessianos" como os irmãos os descreveram. Ela era de origem huguenote por parte de pai, o que, especulam estudiosos, explica a influência francesa em algumas de suas histórias.

Schmiesing também revisita os estudos sobre a mudança de política editorial de Wilhelm. Possivelmente em resposta à desaprovação da crítica, ele atualizou a segunda versão de "Contos Infantis e Domésticos" para atender às normas de gênero do século XIX. Na primeira edição, a história de João e Maria começa com a mãe dizendo ao pai para abandonar os irmãos na floresta. Na segunda edição, a esposa do pai — a madrasta má arquetípica — faz o pedido, pois era impróprio sugerir que uma mãe biológica se livraria de seus filhos com tanta frieza. (O pai concordando com tudo — ótimo!)[4]

Embora seu legado possa ser o de "Mães Gansos Alemães", os irmãos consideravam seus volumes de contos de fadas como um projeto entre muitos, e dificilmente o mais importante. Em 1829, os Grimm, então na casa dos quarenta, aceitaram empregos como bibliotecários na Universidade de Göttingen, no reino de Hanover. Lá, Jacob publicou "Mitologia Alemã" (1835). Ele acreditava que, assim como etimologistas conseguiam identificar características de línguas antigas por meio de descendentes modernos, ele poderia aproximar a mitologia alemã antiga por meio do folclore. Ele vasculhou baladas, contos de fadas e lendas em busca de referências a heróis, mulheres sábias, anões, gigantes, fantasmas, curas, magia e muito mais.

Ao contrário de "Contos Infantis e Domésticos", "Mitologia Alemã" foi uma sensação nacional e nacionalista. O livro rejuvenesceu positivamente o compositor Richard Wagner. Em sua autobiografia, "Minha Vida", Wagner escreveu sobre seu encontro com a "Mitologia Germânica": "Diante dos meus olhos, um mundo de figuras logo se formou, que por sua vez se revelaram em formas tão inesperadamente esculturais e tão primordialmente reconhecíveis que, quando as vi claramente diante de mim e ouvi suas falas dentro de mim, finalmente não consegui compreender de onde vinham essa familiaridade quase tangível e a certeza de seu porte. Não posso descrever o efeito disso na disposição da minha alma como algo diferente de um renascimento completo." Com "Mitologia Germânica", Jacob esperava defender seus ancestrais — os povos germânicos que invadiram o Império Romano — contra alegações de barbárie. É uma defesa que, escreve Schmiesing, "era às vezes abertamente racializada". [5]  Embora Wilhelm elogiasse os contos de fadas de Serra Leoa, Jacob certa vez escreveu um artigo no qual chamou o fetichismo de "uma descida à monotonia e à grosseria, como aquela que governa o negro selvagem", e insistiu que era "essencialmente estranho a um povo como nossos ancestrais, que assim que aparece na história, age digna e livremente e fala uma língua finamente elaborada que está intimamente relacionada à dos povos mais nobres da antiguidade".

A vida profissional dos Grimm era tão instável quanto as fronteiras do Sacro Império Romano-Germânico. [6] Em 1837, um novo monarca dissolveu as assembleias legislativas de Hanôver e anulou sua constituição. Jacob e Wilhelm, juntando-se a cinco de seus colegas, assinaram uma declaração em protesto. Os dissidentes — que receberam a ordem de deixar Hanôver em três dias — ficaram conhecidos como os Sete de Göttingen, e seu ato de desafio foi posteriormente consagrado na história alemã como um momento marcante no caminho da nação para a democracia. Wilhelm chegou a revisar um conto de fadas com o episódio em mente. Em uma versão anterior de uma história intitulada "A Luz Azul", um homem deixa o exército por estar velho demais para lutar. Na nova versão, o protagonista é um soldado ferido que é dispensado por seu soberano com as palavras: "Você pode ir para casa agora. Não preciso mais de você e não receberá mais dinheiro de mim. Dou salários apenas àqueles que podem me servir".

O detalhe dos salários retidos revelava a dificuldade financeira em que Jacob e Wilhelm se encontravam. Em 1840, a viúva de Arnim implorou ao príncipe prussiano, Friedrich Wilhelm IV, que encontrasse emprego para dois de seus amigos, cujos nomes ela não revelou. Depois de pesquisar um pouco, o príncipe descobriu suas identidades e respondeu: "O fruto da minha pesquisa sombria foi — dois Grimms pesquisadores!" Alexander von Humboldt, o célebre geógrafo e naturalista, providenciou que os irmãos continuassem sua bolsa de estudos em Berlim com um salário combinado de três mil táleres, a ser dividido como quisessem, "já que vivem como marido e mulher".

Dois anos depois, Humboldt procurou Jacob com uma pergunta. A corte prussiana estava anunciando uma nova honraria para realizações nas artes e ciências. Jacob poderia aconselhar como uma palavra específica do estatuto deveria ser escrita? A palavra em questão: deutsch.

Assim como haviam trabalhado com informantes em seus contos de fadas, os Grimm solicitaram verbetes de dicionário de mais de oitenta colaboradores, incluindo professores, filólogos e pregadores. Os resultados podiam ser encantadores. O primeiro verbete era para a letra "A":

A, o mais nobre e primordial de todos os sons, ressoando com plenitude no peito e na garganta, o primeiro e mais fácil som que uma criança aprenderá a produzir, e que os alfabetos da maioria das línguas colocam, com razão, no início.

Os homens trabalhavam doze horas por dia para cumprir os prazos de publicação, mas conseguiam se divertir um pouco. No primeiro volume completo, publicado em 1854, os Grimm incluíram o apelido carinhoso de Wilhelm para sua esposa, bierlümmel (cafajeste da cerveja). Levaram dezesseis anos para terminar a primeira seção — que terminava com o verbete para biermolke (soro de leite da cerveja) —, mas as críticas surgiram quase imediatamente. Os católicos reclamaram da preponderância de exemplos de uso de palavras de Martinho Lutero e do tom de certas entradas. A de ablass (indulgência) dizia: "Principalmente a remissão eclesiástica de pecados por dinheiro... contra a qual a Reforma investiu vitoriosamente". Jacob acreditava que a capitalização de substantivos comuns era uma importação inorgânica e a eliminou, uma escolha que inspirou paródias na imprensa alemã.

Apesar das críticas, os irmãos Grimm seguiram em frente. Em suas mãos, o dicionário era uma forma de discurso político, o único que sempre funcionou para eles. Em 1848, em meio à onda de revoluções nacionalistas por toda a Europa, Jacob foi convidado a servir como representante na Assembleia Nacional de Frankfurt, um órgão convocado em um esforço para criar um Estado alemão unificado. Mas a reunião descambou para o facciosismo, à medida que interesses conflitantes de classe e geográficos revelaram que o país era muito mais dividido do que Jacob havia imaginado. Os irmãos se retiraram para o escritório para trabalhar no dicionário. Cada letra era um passo em direção ao objetivo — se não uma Alemanha unificada, pelo menos um povo alemão unificado, conectado por palavras e por disputas familiares sobre seu significado.

Em 16 de dezembro de 1859, Wilhelm morreu, aos setenta e três anos, após complicações de uma cirurgia na coluna. Jacob sentou-se ao lado de sua cama e contou cada um dos últimos suspiros de seu irmão. Quatro anos depois, Jacob o seguiu. Acometido por uma inflamação no fígado e, em seguida, por um derrame, ele ficou de cama, consciente, mas incapaz de falar. Pegou uma foto de Guilherme e a levou até o rosto, morrendo pouco tempo depois. Os dois estão enterrados em Berlim, como viveram, lado a lado.

Em 1871, o Kaiser Guilherme ascendeu ao trono de uma Alemanha recém-unificada. Em Goslar, uma cidade ao norte das montanhas Harz, um palácio imperial foi reformado para incluir um afresco com a imagem da "Rosa-brava", simbolizando uma identidade alemã há muito adormecida e finalmente desperta. Era o final de conto de fadas com que os irmãos Grimm sonhavam e, como em muitas de suas histórias, não houve finais felizes.

As histórias dos irmãos Grimm, com sua promessa de incorporar um espírito autenticamente teutônico, foram tão procuradas durante os anos nazistas que as forças de ocupação aliadas as proibiram temporariamente após a guerra. Desde então, estudiosos enfatizaram que seu nacionalismo estava enraizado em uma herança cultural e linguística compartilhada, não em sangue e solo. Ainda assim, a tarefa de narrar as vidas de Jacob e Wilhelm permanece tão espinhosa quanto a cerca que prendia os pretendentes de Briar Rose. Como escreve Schmiesing, "implica navegar entre apresentar de forma muito ingênua ou muito crítica as construções da Alemanha do século XIX e a germanidade para a qual contribuíram".

Na verdade, essa ambivalência também existia para Jacob, que se preocupava com a possibilidade de a padronização do alemão nas escolas desvalorizar os dialetos e a própria fala popular que suas vidas haviam sido dedicadas a capturar. Os irmãos sabiam melhor do que ninguém que toda história de encantamento é também uma história de desencanto, e sua causa de vida não foi exceção. A nação provou ser o conto de fadas mais querido da humanidade, e o mais sombrio. ♦

[1] "Grimm" quer dizer raiva, ira, fúria em alemã, por isso, a piada.
[2] "Wie Kinder Schlachtens miteinander gespielt haben".  Qual o nome desse conto em português?  Eu não conheço.
[3] Como historiadora, eu discordo nesse ponto.  Na verdade, não havia essa fronteira clara do que era adulto e infantil.  São valores que começam a se estruturar na Inglaterra Vitoriana, não nessa proto-Alemanha.  Os contos de fada nascem violentos e cheios de mensagens que, no geral, hoje não seriam infantis, por isso, foram sendo depurados.  E recomendo o livro do historiador norte-americano Robert Darnton, O Grande Massacre dos Gatos, porque há um artigo excelente sobre o tema.  Em português só usado, em inglês formato Kindle está por um bom preço, mas você acha fácil o *.pdf, porque ainda deve ser meio que leitura obrigatória nas disciplinas de História Moderna.
[4] Viu que a questão é a mudança na mentalidade social no século XIX?  Existe um modelo de família nuclear, patriarcal, moralizada que precisa ser mostrada nos contos, nada dessa balela de coisa para adulto e coisa para criança.  A mãe é o anjo do lar, ela não pode mais ser retratada como alguém que mata filhos, ou cobiça a beleza da filha (*versão original de Branca de Neve*), para isso, existe a madrasta.  Aliás, a madrasta que, nos contos franceses antigos, poderia ser a sogra, porque a palavra era a mesma.  Sobre o tema, recomendo "Da Fera à Loira: dos Contos de Fada e seus Narradores", da Marina Warner.
[5] Gente, o século XIX é racista, a ciência do século XIX é indissociável dessas ideias que, a partir do fim da 2ª Guerra, passaram a ser contestadas.  Mas que ninguém se engane, esses discursos eugênicos, racistas, continuam conosco, vide os vídeos do casal do bebê alemão.  Está esgotado em português, mas tem em sebo, em inglês e, provavelmente, *.pdf por aí.
[6] O Sacro Império acabou em 1806.  Depois disso, nós temos o Império Austríaco (*depois, Austro-Húngaro*), a Prússia e um conglomerado de Estados Germânicos, que se formou da dissolução do Sacro Império por Napoleão.  Então, o uso de Sacro Império, sem explicar, está errado.

1 pessoas comentaram:

Ótimo texto! E obrigada pelos comentários, Valéria! Enriqueceram bastante o que foi exposto.

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