quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Brasil - Feminicídio ao vivo: o que nos clama Eloá



O texto não é meu, veio do site Adital, mas eu endosso tudo o que foi escrito. Trata-se de feminicídio, com a anuência das autoridades do sexo masculino, que se compadeceram do "garoto", e com a anuência de uma sociedade que considera a violência de gênero legítima. Hoje a mãe da menina, exposta pela mídia, disse que perdoava, isso é com ela, mas o que me chamou a atenção foi a mãe falar que o rapaz era ciumento, possessivo, um pouco violento, mas não iamginava que chegasse a tanto.

Lembrou a moça que trabalha aqui em casa e sumiu por mais de quinze dias. Voltou ainda machucada. Ficamos perplexos, meu marido e eu, porque conhecíamos o companheiro dela que tinha sido porteiro do prédio. "Mas ele já tinha te batido antes?", perguntou meu marido. "Não! Nunca! Tinha me dado uns tapas, mas bater, não...", respondeu a moça desolada. "Mas fulana, isso já é bater.", eu ponderei. Daí ela desconversou, "Ah, mas o que eu não aceito é que eu sou boa esposa, trabalhadora, boa mãe, a casa está sempre limpinha. Meus vizinhos são testemunha! Não volto mais para ele! Chamei a polícia.". Ou seja, se não fosse "boa esposa", estava certo bater. E uns tapinhas não se qualificam como "bater". Nem preciso dizer que voltou com o cara e retirou a queixa. Interessante é que acredito que é exatamente por esta concepção de "bater" que países como Japão e Arábia Saudita têm índices baixíssimos de violência doméstica. O que é bater para um determinado grupo? Nas periferias desse Brasil e em algumas casas ricas, também, "bater" não é dar uns safanões e empurrões; o problema é que temos muitos Lindemberg , só que com menos mídia em volta.

A representação romantizada do macho alfa em nossa sociedade, do provedor-reprodutor, do homem com H é essa. Podem ir até a comunidade Adoro Romances no Orkut e ver a representação de homem ideal de boa parte da mulherada por lá. A questão é que se o sujeitinho fica somente nos gritos, safanões, no cárcere privado, é romântico, é mostrar que se importa com a gente. Homem que não tem ciúme, não é homem de verdade. O problema é que o Lindemberg atirou, ou seja, cruzou a fina linha que separa a violência que anima o jogo amoroso daquela que é considerada perigosa, e, por conta disso, perdeu a simpatia da maioria das pessoas. Ah, menos do chefe da operação policial e outros da mesma qualidade, claro, pois estes continuam com peninha do "garoto" e, não, das "meninas".

Falando por mim, mesmo não acreditando em "natureza humana", não consigo deixar de me sentir triste pela morte de alguém, de qualquer pessoa, mais jovem que eu. Não falo de mulheres aqui, mas de qualquer adolescente, jovem. Meus alunos e alunas do 1º ano têm em média 15 anos! Estão lá cheios de vida e sonhos, com seus sorrisos metálicos e suas espinhas na cara (*alguns mais, outros menos*). Parece-me anti-natural que pais enterrem os filhos, que eu com 32 anos viva mais do que alguém que tem menos da metade da minha idade. Privar alguém tão jovem de um futuro, e neste fim de semana outro "garoto" de 22 anos matou a ex-namorada de 15, no mesmo Estado de São Paulo, é mais que um crime. Segue o texto.


Brasil - Feminicídio ao vivo: o que nos clama Eloá
Maria Dolores de Brito Mota e Maria da Penha Maia Fernandes *

Tudo o que o Brasil acompanhou com pesar no drama de Eloá, em suas cem horas de suplício em cadeia nacional, não pode ser visto apenas como resultado de um ato desesperado de um rapaz desequilibrado por causa de uma intensa ou incontrolada paixão. É uma expressão perversa de um tipo de dominação masculina ainda fortemente cravada na cultura brasileira. No Brasil, foram os movimentos feministas que iniciaram nos anos de 1970, as denúncias, mobilização e enfrentamento da violência de gênero contra as mulheres que se materializava nos crimes cometidos por homens contra suas parceiras amorosas. Naquele período ainda estava em vigor o instituto da defesa da honra, e desenvolveram-se ações de movimentos feministas e democráticos pela punição aos assassinos de mulheres. A alegação da defesa da honra era então justificativa para muitos crimes contra mulheres, mas no contexto de reorganização social para a conquista da democracia no país e do surgimento de movimentos feministas, este tema vai emergir como questão pública, política, a ser enfrentada pela sociedade por ferir a cidadania e os direitos humanos das mulheres.

O assassinato de Ângela Diniz, em dezembro de 1976, por seu namorado Doca Street, foi o acontecimento desencadeador de uma reação generalizada contra a absolvição do criminoso em primeira instância, sob alegação de que o crime foi uma reação pela defesa "honra". Na verdade, as circunstâncias mostravam um crime bárbaro motivado pela determinação da vítima em acabar com o relacionamento amoroso, e a inconformidade do assassino com este fim. Essa decisão da justiça revoltou parcelas significativas da sociedade cuja pressão levou a um novo julgamento em 1979 que condenou o assassino. Outro crime emblemático foi o assassinato de Eliane de Grammont pelo seu ex-marido Lindomar Castilho em março de 1981. Crimes que motivaram a campanha "quem ama não mata".

Agora, após três décadas, o Brasil assistiu ao vivo, testemunhando, o assassinato de uma adolescente de 15 anos por um ex-namorado inconformado com o fim do relacionamento. Um relacionamento que ele mesmo tomou a iniciativa de acabar por ciúmes, e que Eloá não quis reatar. O assassino, durante 100 horas manteve Eloá e uma amiga em cárcere privado, bateu na vitima, acusou, expôs, coagiu e por fim martirizou o seu corpo com um tiro na virilha, local de representação da identidade sexual, e na cabeça, local de representação da identidade individual. Um crime em que não apenas a vida de um corpo foi assassinada, mas o significado que carrega - o feminino. Um crime do patriarcado que se sustenta no controle do corpo, da vontade e da capacidade punitiva sobre as mulheres pelos homens.

O feminicídio é um crime de ódio, realizado sempre com crueldade, como o "extremo de um continuum de terror anti-feminino", incluindo várias formas de violência como sofreu Eloá, xingamentos, desconfiança, acusações, agressões físicas, até alcançar o nível da morte pública. O que o seu assassino quis mostrar a todas/os nós? Que como homem tinha o controle do corpo de Eloá e que como homem lhe era superior? Ao perceber Eloá como sujeito autônomo, sentiu-se traído, no que atribuía a ela como mulher (a submissão ao seu desejo), e no que atribuía a si como homem (o poder sobre ela - base de sua virilidade). Assim o feminicídio é um crime de poder, é um crime político. Juridicamente é um crime hediondo, triplamente qualificado: motivo fútil, sem condições de defesa da vítima, premeditado.

Se antes esses crimes aconteciam nas alcovas, nos silêncios das madrugadas, estão agora acontecendo em espaços públicos, shoppings, estabelecimentos comerciais, e agora na mídia. Para Laura Segato [1] é necessário retirar os crimes contra mulheres da classificação de homicídios, nomeando-os de feminicídio e demarcar frente aos meios de comunicação esse universo dos crimes do patriarcado. Esse é o caminho para os estudos e as ações de denúncia e de enfrentamento para as formas de violência de gênero contra as mulheres.

Muita coisa já se avançou no Brasil na direção da garantia dos direitos humanos das mulheres e da equidade de gênero, como a criação das Delegacias de Apoio às Mulheres - DEAMs, que hoje somam 339 no país, o surgimento de 71 casas abrigo, além de inúmeros núcleos e centros de apoio que prestam atendimento e orientação às mulheres vítimas, realizando trabalho de denúncia e conscientização social para o combate e prevenção dessa violência, além de um trabalho de apoio psicológico e resgate pessoal das vítimas. Também ocorreram mudanças no Código Penal como a retirada do termo "mulher honesta" e a adoção da pena de prisão para agressores de mulheres, em substituição às cestas básicas. A criação da Lei 11.340, a Lei Maria da Penha, para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres.

Mas, ainda assim, as violências e o feminicídio continuam a acontecer. Vejamos o exemplo do Estado do Ceará: em 2007, 116 mulheres foram vítimas de assassinato no Ceará; em 2006, 135 casos foram registrados; em 2005, 118 mortes e em 2004, mais 105 casos [2]. As mulheres estão num caminho de construção de direitos e de autonomia, mas a instituição do patriarcado continua a persistir como forma de estruturação de sujeitos.

É preciso que toda a sociedade se mobilize para desmontar os valores e as práticas que sustentam essa dominação masculina, transformando mentalidades, desmontando as estruturas profundas que persistem no imaginário social apesar das mudanças que já praticamos na realidade cotidiana. O comandante da ação policial de resgate de Eloá declarou que não atirou no agressor por se tratar de "um jovem em crise amorosa", num reconhecimento ao seu sofrer. E o sofrer de Eloá? Por que não foi compreendida empaticamente a sua angústia e sua vontade (e direito) de ser livremente feliz?

Notas:

[1] SEGATO, Rita Laura. Que és um feminicídio. Notas para um debate emergente. Serie Antropologia, N. 401. Brasília: UNB, 2006.
[2] Dados disponíveis em: PAGU.

5 pessoas comentaram:

Também assino embaixo de tudo que foi dito nesse artigo. Se fosse em qualquer outro país do mundo, onde a figura da mulher é um pouco mais respeitada do que aqui, a Eloá estaria viva e esse Lindemberg em um caixão.

Até a SWAT condenou a atitude do GATE por não atirar, por se compadecer do criminoso, demonstrando o quão absurdo é o atraso do Brasil em relação aos outros países.

Não adianta amadurecer economicamente, enquanto o país não mudar suas leis, sua forma de encarar os cidadãos -sobretudo as mulheres -, nada vai realmente mudar.

O maior absurdo é que vi gente, incluindo mulheres, que mostraram apoio ao Lindemberg! A comunidade chamava "Eloá vai queimar no inferno" e um dos tópicos ainda era "Deixe aqui sua mensagem de apoio ao Lindemberg". Denunciei e espero que já tenha sido tirada do Orkut.

Adorei a materia .Ja tinha tomado conhecimento do feminicidio por meio de uma professora mas nunca tinha visto uma materia sobre o assunto, ainda mais tão interessante. Concordo com muito deo que esta escrito, pena que poucos levam a serio e no Ceará (onde eu moro) pior ainda a cultura do patriarcado aqui é muito forte qualquer comentario sobre machismo social é visto como radicalismo.

Eu ouvi todo tipo de absurdo sobre esse caso nos últimos dias, o mais comum foi gente referindo-se à menina como vadia ou coisa que o valha. Claro, a mulher é uma cobra, ela seduz, corrompe, faz o homem de bem perder a cabeça. Todo pecado que este homem de bem cometer em razão das mazelas da vadia poderá ser perdoado. Isso ainda é uma constante no imaginário brasileiro, desde criança ouço esse tipo de coisa dentro de minha própria casa.
Só me revolto cada dia mais e mais sobre esse caso, de pensar em quantas outras meninas e mulheres morrerão e sofrerão em silêncio em nome dessa honra masculina.

Dauly diz...
Muito legal essa matéria!amo esse blog
Mario apoiadooooo

Eu tenho uma imaginação fértil - da minha cabeça saem idéias e mais idéias. A coisa que eu mais imaginei de sexta para cá seria um outro desfecho. Na minha cabeça, o desfecho ideal seria Eloá aproveitando um momento de distração do cara e se apossando das armas - que eram o poder de coação que ele tinha - e o arrastava para fora do apartamento. Fato, precisa de coragem e sangue frio para fazer isso. Mas depois disso eu imaginei: Se isso acontecesse, o que iriam dizer dela?
Se ela, por um acaso, conseguisse uma das armas e decidisse que era ela que devia viver? (por que o que ele dizia não era que só acabava se um dos dois morresse?) Se ela tivesse conseguido a arma e matado o cara, o que a opinião pública pensaria dela? Ela viraria a minha heroína, mas duvido que fosse assim com os outros. Se com ela MORTA a chamam de piranha, se o desfecho tivesse sido diferente os tons seriam mais pejorativos ainda. "Assassina" provavelmente seria o de menos quando na verdade o que ela tinha feito era se proteger de um maluco.
Ela teria que lidar com a hostilidade pública porque teria "matado o menino que gostava dela" quando na verdade teria sido defesa.
Não estou defendendo que em casos de sequestro uma pessoa deva se rebelar - estou só ilustrando uma possibilidade. A sociedade brasileira é infeliz e estupidamente machista e o que me deixa mais irritada é a incapacidade de perceber que não são coisas como a ausência ou presença de um X nos seus genes que fazem as pessoas diferentes umas das outras. E a incapacidade de aceitar que SIM, uma mulher pode ser igual ou melhor do que um homem assim como homens podem ser iguais ou melhores entre si.
Eu faço uma engenharia e são seis meninas na minha turma. Em uma das matérias que temos, uma de nós tirou uma nota beirando 10 enquanto nenhum dos meninos conseguiu passar de 7,5. Com isso, a menina teve que ouvir "Como você tirou isso?" e "Eu não acredito que você tirou mais do que eu" e, mesmo que não fosse a intenção, estava implícito que para eles era meio impossível que uma menina se destacasse tanto assim, sem nenhum menino se aproximar dela. São coisas assim que vão construindo gradualmente a estrutura da sociedade e quando chegamos em casos extremos é "normal" matar uma mulher porque ela não te quer. Queria só ver se fosse uma mulher matando um homem nas mesmas condições.

(Sim, eu estou revoltada. )

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