sábado, 17 de dezembro de 2011

O que seria de nós sem Osamu Tezuka? Algumas reflexões sobre as contribuições do grande mestre.



Começo esse post comemorativo do Tezuka Day deixando claro que Osamu Tezuka não inventou os mangás, muito menos a estética dos shoujo mangá que é tão cara para muitos fãs dos mangás femininos japoneses, como eu. Tanto o quadrinho japonês, em um sentido amplo, quanto os traços que muitos identificam como "estilo shoujo", são pré-Tezuka. Olhos grandes, cheios de brilho, as personagens longuilíneas, a posterização que torna muitos quadros dos shoujo mangá ilustrações mais estáticas do que dinâmicas aos olhos de alguns, são características que já estavam presentes nas revistas femininas, que traziam contos ilustrados.[1] Então, o que Tezuka trouxe para os shoujo mangá? Eu diria quatro coisas, três delas mais fundamentais para os mangás como um todo:

1. Tezuka deu às personagens uma nova dimensão. Se eu pego o que conheço de shoujo mangá, ou qualquer mangá, pré-Tezuka, o que encontro é algo muito próximo do gag-mangá. Você tem personagens que são reconhecíveis, como Sazae-san, mas que participam de tramas simples e auto-conclusivas. Isso a gente encontra em outros países e, também, na animação. Pica-Pau, Homer Simpson, eles são essencialmente os mesmos da primeira a milésima história e, por conta disso, são reconhecíveis, inesquecíveis, mas suas histórias em si são simples. Lembramos mais das personagens, de como elas agiram, do que disseram, do que das próprias tramas. Segundo Hirohito Miyamoto [2], Tezuka deu às personagens seis características básicas presentes desde os seus primeiros mangás: individualidade; autonomia ou para-existência (*ele existe em um mundo narrativo que transcende a sua própria história*); variabilidade (*a personagem sofre com as mudanças de tempo, amadurece física e emocionalmente, sofre alterações em sua aparência, tudo isso podendo ser marcado inclusive no traço do autor*); caráter multifacetado ou complexidade (*a personagem tem pontos fortes e fracos, ela não é perfeita*); não-transparência (*a personagem tem um mundo interior – esperanças, problemas, medos – que não são percebidos automaticamente pelos que estão interagindo com ela*); e personalidade em camadas (*a própria personagem está a procura de alguma coisa, que não está fora, mas dentro de si mesma e é isso que possibilita o seu crescimento*). Essa questão da personagem pré e pós Tezuka me escapava até que li o artigo de Miyamoto na última edição da revista Mechademia, mas ela completa as duas características que são mais lembradas por outros autores e autoras.

2. Narrativa cinematográfica. Tezuka era fã das animações Disney e de cinema. Ele trouxe para dentro dos mangás recursos de cortes de cena, o uso de várias "câmeras" ao mesmo tempo, possibilitando que uma mesma cena fosse vista por vários ângulos, dando aos mangás um dinamismo nunca visto antes. Se eu pego Sazae-san (1946) e Anmitsu-hime (1949), materiais pré-revolução de Tezuka e protagonizado por personagens femininas, tenho a tirinha tradicional agrupada, às vezes, em uma seqüência auto-conclusiva de quatro tempos. Tudo muito chapado, sem nenhum arroubo narrativo. Já em A Princesa e o Cavaleiro (Ribon no Kishi), que é de 1953, tudo é muito diferente. Temos o uso de toda uma narrativa tomada de empréstimo do cinema, com as mudanças rápidas de enquadramento, as passagens de tempo muito bem marcadas, os vários ângulos de câmera, as linhas de ação, etc. Continuamos tendo a simplicidade, sem as inovações de Tezuka? Sim, Sazae-san foi publicado até 1974 com grande sucesso e é uma das personagens mais queridas do Japão até os dias de hoje. No entanto, o sucesso de Sazae-san repousa em outras razões, como por exemplo, o fato de incorporar perfeitamente o espírito da classe média trabalhadora japonesa. No entanto, a estrutura narrativa que passou a marcar praticamente todos os mangás produzidos pela indústria e que muitos acreditam que pode ser reproduzida mesmo fora do Japão, porque trata-se de uma narrativa, de recursos que podem ser absorvidos, desenvolvidos e aplicados, é obra de Tezuka.

3. Serializações longas. Antes de Tezuka, cada história, ou a maioria delas, cabia dentro de si mesma. A personagem era individualizada, mas não havia uma longa série, com percalços exteriores e interiores a serem superados. Safire, a protagonista da Princesa e o Cavaleiro, tem que resolver não somente a sua questão de identidade de gênero, mas garantir sua felicidade e a dos que ama. Imaginem se Safire poderia lidar com o fato de ter dois corações, um masculino e um feminino, em quatro tirinhas de quatro quadros? Não, era necessário mais tempo. O mangá e a novela ou folhetim tem um parentesco muito grande. Muitos dos livros que conhecemos e amamos, como Os Três Mosqueteiros (Alexandre Dumas), Senhora (José de Alencar), Norte & Sul (Elizabeth Gaskell) nasceram em formato folhetim, isto é, capítulos publicados semanalmente, quinzenalmente, ou em outra periodicidade qualquer, e avidamente devorados. Os japoneses também tinham suas folhetins literários. Depois, vieram rádio novelas e telenovelas. A estrutura que Tezuka levou para os mangás é similar. Depois de Tezuka, a cada semana (*ou quinzena, ou mês ou...*), os japoneses compram suas antologias, ou lêem de pé nas lojas e livrarias, ou em seus celulares e computadores, as suas histórias favoritas. Querem saber o que o herói ou heroína ou grupo de personagens vai ter que fazer para superar um problema que pode ir desde como preparar uma determinada receita culinária, como cuidar de um recém-nascido, como convencer o amado de que ele te ama também, como salvar o mundo de uma ameaça extra-terrestre ou como ressuscitar a namorada que foi morta por um demônio... Enfim, as narrativas são infinitas. Algumas, como Glass Mask, parecem infinitas mesmo! Nós agradecemos esta bênção e esta maldição à Osamu Tezuka. Materiais como Sazae-san são ótimos, mas você sempre vai encontrar sempre a mesma personagem, a mesma casa, o mesmo ambiente conhecido a cada nova tirinha. É como nos Simpsons, cada abertura é única e, ao mesmo tempo, é a mesma abertura, pois são as mesmas personagens. Com Tezuka, quer queiramos, ou não, a regra passou a ser princípio, meio e fim. E, caros leitores e leitoras, até que cheguemos ao fim, muitas risadas, angústias, constrangimentos para o herói ou heroína, mortes, amores, sangue... Tudo a depender do gosto do autor e, não raro, dos leitores e leitoras. :)

E chego, por fim, ao quarto ponto, aquele que é fundamental para os shoujo mangá: trouxe as questões de gênero para dentro dos quadrinhos japoneses com A Princesa e o Cavaleiro. Vejam bem, ele não inventou as discussões sobre papéis femininos e masculinos, ou seus limites dentro de uma determinada sociedade. Essas discussões já podiam ser encontradas em literatura produzida na Era Heian (794–1185).[3] O que Tezuka fez foi trazer essas questões tão fundamentais para a nossa compreensão de quem somos e qual o nosso lugar nesse mundo (*ou em outro qualquer*) para dentro dos mangás, em especial do seu primeiro shoujo mangá, A Princesa e o Cavaleiro. Ao criar Safire, a princesa que tinha que ser menina e menino ao mesmo tempo, criou a primeira garota-príncipe dos mangás. Não se tratava de uma simples apropriação do mito literário da Donzela Guerreira,[4] mas de um tipo de personagem que possibilitou mergulhos mais profundos às mangá-kas da geração dos anos 1970.[5]

Com Safire, ainda que patinando aqui e ali (*afinal, não se tratava de um trabalho teórico ou politicamente engajado*), Tezuka discutiu a premissa de Simone de Beauvoir "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher", de que gênero é performance, algo que se aprende e precisa ser repetido e repetido e reiterado para funcionar bem. E, também, não fechou a questão, porque a partir da leitura de Safire, podemos perceber o quanto Tezuka ora, acreditava que o gênero era uma construção cultural (*vide o aprendizado imposto à Safire, ela tinha que "aprender" a ser menino e menina, nenhum dos papéis lhe eram naturais*), ora, Tezuka parecia crer que a natureza estava dada e definida pré-discursivamente (*Basta pegar a seqüência em que Safire perde seu coração de menino e junto com ele seu ânimo viril e suas competências guerreiras, tornando-se frágil e incapaz de lutar*). Osamu Tezuka foi um revolucionário em vários aspectos, até nos mais insuspeitos como este.

Sem Tezuka, toda uma linhagem de Garotas Príncipe de Oscar até Utena não existiria, aliás, seu primeiro shoujo, o primeiro shoujo mangá "moderno", por assim dizer, é protagonizado por uma garota-príncipe (*e tem gente, até hoje, que acha que é a colegial a protagonista de shoujo mangá por excelência*).[6] Essa personagem tipo tão cara ao shoujo mangá e anime e presente em outros gêneros de mangá, vide a Caska de Berserk, por exemplo, provavelmente não teria aparecido sem Tezuka ou teria se desenvolvido de uma outra forma. Hoje, comemoramos o Tezuka Day. Sei que há vários textos, desenhos, podcasts e outras contribuições interessantes pela rede, esta é a contribuição do Shoujo Café para a data. Gostou do texto? Divulgue, comente. Quer ponderar alguma coisa? A caixa de comentários é toda sua. Espero que minhas reflexões tenham sido úteis de alguma maneira. Para ver o que outros participantes estão produzindo, visite a página do Tezuka Day no Facebook. Tá joinha!

NOTAS:
[1] Essa é a idéia defendida pela brasileira Yoko Fujino em sua tese de doutorado. Para quem se interessar: FUJINO, Yoko. Identidade e Alteridade: A Figura Feminina nas Revistas Ilustradas Japonesas nas Eras Meiji, Taishô e Showa. (tese de Doutorado). São Paulo: ECA/USP, 2002.
[2] HIROHITO, Miyamoto. "How Characters Stand Out", Mechademia, n. 6, Minneapolis, 2011, p. 86.
[3] Em uma pesquisa que fiz para escrever um artigo, localizei como uma primeira referência literária à troca de papéis de gênero, que mascara o corpo biológico, uma obra chamada Torikaeabaya (とりかへばや物語), que é do século XII. Nela é contada a história de um irmão e uma irmã que, por conta de uma maldição lançada sobre o seu pai, comportam-se de acordo com o que é esperado para o sexo oposto, enganando a todos na corte do Imperador. Eventualmente, quando a maldição é quebrada, eles retornam aquilo que seria a “natureza” de seus sexos, sem nenhum problema de ajuste. A história foi transformada em shoujo mangá duas vezes, além de peça do teatro feminino Takarazuka, onde as atrizes fazem tanto os papéis femininos, quanto os masculinos. Tezuka era fã do Teatro Takarazuka e ia assistir aos espetáculos desde criança com a mãe.
[4] Walnice Nogueira Galvão, que em seu artigo "O Ciclo da Donzela Guerreira", define da seguinte maneira esta personagem tão comum na literatura e no cinema (Diadorin, Mulan, Yentl, Joana D'arc, etc.): "Filha única ou mais velha, raramente a mais nova de pai sem filhos homens, sem concurso de mãe, corta os cabelos, enverga trajes masculinos, abdica das fraquezas femininas – faceirice, esquivança, medo –, aperta os seios e as ancas, trata ferimentos em segredo, assim como se banha escondida. Costuma ser descoberta quando, ferida, o corpo é desvendado; e guerreira; e morre." Ver: GALVÃO, Walnice Nogueira. O ciclo da donzela-guerreira. In ___. (org.) Gatos de outro saco. Ensaios Críticos. São Paulo: Brasilianse, 1981, p. 9. Bem, Safire não cumpre todos os requisitos da donzela-guerreira. Ela é mais filha de sua mãe do que de seu pai e a não ser que consideremos seu casamento com Franz como uma "morte", ela foge da tragicidade da personagem literária e assim será com boa parte das garotas-príncipe dos shoujo mangá.
[5] Para maiores informações, recomendo os nossos três Shoujocasts da série "Mas, afinal, o que é Shoujo Mangá?". Basta clicar no número: 1-2-3.
[6] Apresentei um trabalho sobre as Garotas Príncipe na II Jornada de Romances Gráficos da UnB. Ele pode ser lido aqui.


11 pessoas comentaram:

Muito bom. O texto ficou incrivel.
Meu primeiro contado às grande obras de Tezuka, foi com o anime Astro Boy em algum programa de desenho da Globo. Era muito pequeno, não me lembro muito, mas as lembranças de que era uma boa e divertida historia ainda estão frescas. Agora, depois de varios anos, guardo na memoria alguns momentos com muitos detalhes. Não era um febre entre as crianças, ao menos na minha epoca e faixa etaria, mas me marcou mais do que alguns sucessos maiores na tv brasileira.
Depois de Astro conheci outras obras de Tezuka, como A Princesa e o Cavaleiro e Black Jack.
Não tive muito contato com Osamu Tezuka, mas respeito muito sua obra e seu legado para os quadrinhos.

Belíssima Homenagem! Mudou completamente minha visão sobre Tezuka. E agora, mais do que nunca, posso dizer que ele era um gênio.

Ficou muito bom! Obrigado por compartilhar! :)

Oi Valéria, parabéns, excelente texto! Confesso que tive pouco contato com os mangás de Tezuka, só o fiz quando estudei animação para explicar a questão cinematográfica nos mangás, mas vc colocou muito bem a repercussão dos temas e principalmente do gênero, não tinha noção disso. Agora me deu vontade de ler a princesa e o cavaleiro rs xD

abraços

Estou me sentindo mais culto agora.
Muito bom para assentar algumas ideias e questionamentos.

Ótimo texto. Bem informativo, me trouxe diversos conceitos e idéias que desconhecia.
Bem escrito. Valeu por ter feito ele.

Excelente texto Valéria, foi muito esclarecedor para mim e fiquei com vontade de rever A Princesa e o Cavaleiro. E adorava Kimba...
Beijos

Grande texto Valéria, pelas andanças anteriores eu já conhecia o que você ia falar, na verdade eu bem que desconfiava, a despeito disto foi sempre gratificante ler seu post.

Nossa, muito legal e informativo este texto Valéria. Agora fiquei com mais vontade de ler A Princesa e o Cavaleiro.

Eu sabia que o seu texto seria um diferencial Val. Maravilhoso.

Excelente texto! Estou procurando a coleção da Princesa e o Cavaleiro publicada pela JBC e esse seu artigo (?) me deu ainda mais ânimo de ter esse clássico, que, antes de ler um outro artigo seu, publicado numa revista acadêmica, era só isso mesmo: um clássico dos mangás.
Essas questões de gênero são muito interessantes e faz lembrar da minha antiga vontade de estudar algo relacionado.
Sempre aprendo alguma coisa no seu blog: espero que poste mais textos abordando tanto essas questões, quanto os aspectos mais "técnicos" dos mangás, que eu não entendo nada e sempre acabo aprendendo alguma coisa.

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