terça-feira, 20 de agosto de 2013

"Sexo sem consentimento" essa ficção machista


Meu marido raramente me pede para escrever sobre alguma coisa, neste caso, a revolta com a forma como uma notícia - Suspeito ataca adolescente que se negou a transar em Lábrea - foi dada fez com que ele dissesse “você vai fazer um post sobe isso, não vai?”.  O que chocou na notícia não foi ler sobre mais um ato de violência contra uma mulher, mas o fato de uma tentativa de estupro seguida de assassinato ser transformada por um jornalista machista e inconseqüente em “Suspeito ataca adolescente que se negou a transar”.  Lendo o título pensamos “Eram namorados e houve desentendimento?”, “O sujeito achava que a menina por ser sua namorada TINHA que transar com ele e a agrediu?”.  Só que, seguindo a leitura, temos “(...) o adolescente invadiu na madrugada de domingo a residência da jovem, situada no bairro Pantanal, e tentou manter relações sexuais sem o seu consentimento”, ou seja, o marginal invadiu a casa da moça e tentou estuprá-la; ela resistiu e ele decidiu matá-la.  A foto horrorosa não deixa dúvidas, ou deixa?  Agora, a menina, que só tem 14 anos, ficará marcada para toda a vida, cheia de cicatrizes, que sempre vão lembrá-la desse momento de horror.

O que choca é que a notícia irresponsável a todo tempo parece diminuir a violência brutal do ato com frases do tipo “Aparentemente, os dois já se conheciam”.  E o que tem isso?  O que é conhecer?  O sujeito pode ser vizinho, colega de escola e nunca ter falado com ela, mas a conhecia de passar, de sentar perto e acreditou que tinha o direito de estuprá-la e até matá-la.  E essa história de “relações sexuais sem o seu consentimento” é um eufemismo nojento que só existe para quem, de uma forma ou outra, acredita que homens podem forçar o sexo e mulheres, esses seres sem desejo, tem como única função consentir, porque vejam só, o contexto de violência pouco importa para o narrador, fica parecendo que tudo aconteceu em uma situação de corte amorosa ou um jogo no qual a mulher se negou a cumprir com sua parte, já que, segundo a polícia, “(...) o suspeito contou que ficou revoltado com a negativa e resolveu agredi-la”.  A invasão e a tentativa de estupro não são a agressão, percebem?  A agressão é SOMENTE a tentativa de assassinato.


Enfim, dentro de nossa sociedade patriarcal, existe toda uma tolerância para o estuprador.  A notícia da Crítica parece pintá-lo a todo tempo como amante ardoroso conduzido a um ato de violência, porque foi recusado e teve seu orgulho de macho ferido.  Já a mulher, a menina de 14 anos, estava ali para ser apropriada, para consentir.  Lembram da discussão sobre a regulamentação do atendimento às vítimas de estupro e do papinho mole de certos sujeitos, destaque para o (in) Feliciano, que levantou a história do “sexo sem consentimento” é diferente de “estupro”?  Pois é, vejam o tal “sexo sem consentimento” bem caracterizado nessa notícia.  Crime terrível reduzido discursivamente – e as palavras têm poder, não se enganem – a um arroubo juvenil, coisa de amante ferido.  Vamos perdoar?  Aliás, quem sabe ele nem fique os três aninhos retido por encontrar um juiz camarada que acredite nessa distinção básica?  E a vítima, bem, ela é um mero detalhe... O que difere esse caso de Manaus das histórias de horror que vemos por aí em países islâmicos com a moça se recusando a casar e o sujeito lhe jogando ácido no rosto?  Lembram do caso Eloá?(1-2)   Pois é... 

E esta é somente mais uma notícia do gênero, semana passada mesmo, estupro foi apresentado na revista Capricho – voltada para o público adolescente, mesma idade, por exemplo, do criminoso e da vítima dessa notícia horrorosa vinda do Amazonas – como um percalço amoroso, afinal, a menina de 15 anos não conseguiu dizer não, ainda que sua cartinha diga que “Ele [o namorado] começou a forçar a barra, fiquei com vergonha de dizer não e rolou”, a seguir a leitora escreve “Impossível ter sido mais traumático”.  O nome disso é estupro, mas em nenhum momento a/o jornalista se posiciona, mesmo com o material exposto na internet e servindo de possível referência para outras tantas meninas e meninos, mesmo com o blog contando com a seguinte apresentação: “Este é o seu espaço para tirar todas as dúvidas sobre sexo”.  Cadê o conselho da blogueira-jornalista para a menina?


Obviamente, dizer “não” pode resultar em algo semelhante ao que aconteceu na matéria do Jornal A Crítica: tentativa de assassinato.  De qualquer forma, a revista Capricho não tem nenhuma preocupação em consolar ou aconselhar a menina que teve sua “primeira vez” transformada em ato de violência, simplesmente diz que “não foi um conto de fadas”.  Para terminar, estupro não é sexo e “sexo sem consentimento” é um eufemismo machista para esconder um estupro e acobertar o agressor.  “Não” é “não” em qualquer situação; nenhuma mulher ou adolescente tem o dever de transar com alguém porque beijou um sujeito, teve qualquer intimidade com ele, o convidou para ir até a sua casa, ou simplesmente porque o cidadão decidiu invadir “romanticamente” sua residência na calada da noite... Seu corpo é seu, ninguém tem o direito de violá-lo: É CRIME! E isso não sou eu, a blogueira feminista que está dizendo, é o que diz a lei.

8 pessoas comentaram:

Que raiva que dá ler notícias assim.
Às vezes, tenho vontade de nunca mais ler jornal, viver numa redoma.
Pior ainda são os comentários, são de perder a fé na humanidade...

Ah, o texto é do site do jornal A Crítica... Tinha de ser. Daí já se entende que o texto é muito mal feito... Precisa ver a cobertura que o site/jornal dá quando a vítima é, por acaso, homossexual.

Este comentário foi removido pelo autor.

Minha nossa, é nojento ver um caso tão sério ser tratado desse jeito por um jornal que tem o dever de cumprir com a verdade. Vou ficar mais atenta a esses tipos de matérias que tentam "romantizar" a situação e colocar a culpa na vítima.

Ótimo texto, Shoujo Café!

Notícia em si, muito triste, mais triste foi o tipo de abordagem, deprimente na verdade.

E sobre a Capricho, que papel tem prestado às adolescentes hein? Outro dia publicaram um artigo sobre quem seria a menina pra namorar e outra pra desfrutar, até a filha adolescente de uma colega minha se indignou.

A revista, que devia informar as garotas, tem tido função na verdade de incutir valores machistas em quem ainda está se formando, um absurdo!

"Não pergunte o que a capricho pode fazer por sua filha, pergunte o que VOCÊ pode fazer por sua filha".

Que triste ler certas coisas viu.
"nenhuma mulher ou adolescente tem o dever de transar com alguém porque beijou um sujeito" - Concordo. Da mesma forma que entrar em uma loja, não implica em levar um objeto.
Obrigado por escrever sobre isso. Espero que muitas garotas saibam dizer não... Deixar subtendido também não é a melhor opção.

As vezes lemos coisas desse tipo e não da pra acreditar. A forma como colocaram ai é como se estivessem dizendo "é o que se ganha por não fazer o que se deve",revoltante isso
...

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