quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Sobre reprodutores, sejam eles e elas escravos, ou rainhas: um texto Desconexo

Linda imagem de casamento, mas o que havia por trás de coisas assim?
Tentei escrever este post na segunda-feira.  Ele surgiu de uma série de leituras desconexas, porque todas fruto de matérias que apareceram na minha time line do Facebook, que prosseguem em alguma pesquisa on line, mas que  terminam por se juntar de alguma forma.  Ontem, talvez escrevesse algo melhor, mas, ainda assim, lá vai.  

Semana passada, me caiu nas mãos uma matéria do ano passado do jornal português Expresso comentando fontes recém encontradas relatando a existência de escravos reprodutores em Portugal no século XVI.  O relato original foi escrito por um emissário papal em visita ao país e diz o seguinte: “Tem criação de escravos mouros, alguns dos quais reservados unicamente para fecundação de grande número de mulheres, como garanhões, tomando-se registo deles como das raças de cavalos em Itália. Deixam essas mulheres ser montadas por quem quiserem, pois a cria pertence sempre ao dono da escrava e diz-se que são bastantes as grávidas. Não é permitido ao mouro garanhão cobrir as grávidas, sob a pena de 50 açoites, apenas cobre as que o não estão, porque depois as respetivas crias são vendidas por 30 ou 40 escudos cada uma. Destes rebanhos de fêmeas há muitos em Portugal e nas Índias, somente para a venda de crias.”  

Escravos por Debret.
Mais adiante, é citada uma fonte portuguesa do século XVIII que diz “em todo o Reino do Algarve, e em algumas províncias de Portugal (que tinham) escravas reprodutoras, algumas mais brancas do que os próprios donos, outras mestiças e ainda outras verdadeiramente negras, (designadas) ‘pretas’ ou ‘negras’, pela repreensível propagação delas perpetuarem os cativeiros”, ou seja, havia homens e mulheres separados para a reprodução.  Pessoas de quem os interesses do capital roubava a sua humanidade e qualquer direito de livre escolha.  E não pensem somente em reprodução planejada, mas em casamentos impostos, especialmente, às mulheres escravas.

A matéria chama uma especialista em escravidão para comentar e ela deixa claro que o tema, isto é, a existência de fábricas de escravos em território português é pouco discutida.  Os estudos são empurrados pela historiografia estrangeira e suas novas agendas, e, não, pelos próprios estudiosos portugueses.  Como historiadora, sei que há temas e períodos mais estudados que outros, mas, pelo menos para mim, que não sou especialista na área, ficou a impressão de que não há interesse em se falar do assunto, que sobre coisa tão feia, isto é, que havia homens, escravos negros, obrigados a estuprar mulheres, porque, sim, ainda que pudesse existir algum afeto, a maioria das relações era forçada, fruto do constrangimento, e tendo o único objetivo de permitir que alguns lucrassem com o comércio humano.  

A  jovem Elisabeth Christine von Brunswick-Wolfenbüttel
Mas eram somente escravos e escravas constrangidos à reproduzir?  Claro que não eram, no entanto, era clara e bem estabelecida a sua condição de mercadoria e as relações nas quais estavam inseridos.  Por outro lado, se pensarmos nas casas reais, havia, também, a obrigação de procriar e, de preferência, filhos homens.  Foi vagando de verbete em verbete da Wikipedia – aquelas biografias que puxam biografias – que caí em Elisabeth Christine von Brunswick-Wolfenbüttel  (1691-1750), mãe da imperadora Maria Theresa da Áustria, avó de Maria Antonieta.  

Nascida em um daqueles principados pobres alemães, fonte constante de noivas para herdeiros de tronos muito poderosos, Elisabeth Christine foi constrangida a se “converter” ao catolicismo para se tornar esposa do futuro Carlos VI da Áustria.  Se casar com um Habsburgo era algo a não se jogar fora, principalmente se a família da noiva tivesse pretensões maiores.  Antes de casar foi submetida a um exame que comprovaria sua fertilidade levado adiante por médicos e pelo padre confessor do futuro marido.  Sim, não sei o que o padre jesuíta tinha ver com o rolo, mas ele estava presente.  Aprovada, ela se casou e logo produziu um herdeiro homem, mas o menino não vingou e foi seguido por três princesas.  Todas as fontes que consegui consultar falam da obsessão do marido em ter um filho homem e que a imperatriz foi submetida à vários tratamentos para que se atingisse o objetivo.

Elisabeth Christine já em idade avançada.
Elisabeth Christine teve que consumir grandes quantidades de bebidas alcoólicas por várias semanas como parte de um de seus tratamentos.  Esses médicos ou padres, sei lá, eram tenebrosos.  Parece que passou a sofrer com o alcoolismo.  Em outro dos tratamentos radicais, foi submetida a uma dieta de engorda que fez com que ela ganhasse tanto peso que passou a ter problemas respiratórios, insônia e hidropisia, além de ficar impossibilitada de andar e ter que ser carregada para qualquer função pública que tivesse que exercer.  

Fiquei imaginando o sofrimento dessa princesa, que, sim, tinha uma vida privilegiada, mas era não menos égua reprodutora – porque tratamos assim os animais não-humanos – do que os escravos em terras portuguesas.  E ao chegar na Áustria, ele era descrita como bela, capaz de montar com destreza, grande caçadora, boa dançarina etc.  No breve período que passou na Espanha – durante a guerra de sucessão ao trono do país – administrou os domínios do marido em sua ausência com extrema competência.   No fim das contas, foi reduzida a uma quase inválida no esforço de gerar o filho homem que em sociedades patriarcais é visto como o único que realmente importa, ou aquele que faz a diferença na ordem dos acontecimentos.

Eu amo esse quadro da então princesa Ana.
Mas por qual motivo decidi escrever esse post meio sem sentido?  Porque segunda-feira foi aniversário de morte da Rainha Ana da Grã-Bretanha (1665-1714).  Sigo duas páginas no Facebook que costumam postar quadros e biografias de rainhas e outras mulheres nobres.  Rainha em seu próprio nome, ela é o ponto final da dinastia Stuart, exatamente por não ter gerado herdeiros.  No entanto, essa mulher passou por pelo menos dezessete gravidezes terminadas em abortos espontâneos, natimortos, ou crianças que viveram muito pouco. O filho de Ana que mais tempo viveu, William, Duque de Gloucester, morreu aos 11 anos.  

Acho que foi o seriado Monarchy and Disease (*acho que era este o nome, está no computador de casa*) da Discovery que falou sobre a morte do menino. De como Ana, ainda não rainha, mas herdeira de sua irmã, a rainha Mary II, e de seu marido holandês e co-regente do trono, William III, teve que ceder a guarda do filho para que fosse educado para ser herdeiro dos tios.  O menino, de saúde precária desde o nascimento, passou a ter uma residência própria com todas as honras que um futuro rei deveria ter.  A ação foi feita contra a vontade da futura rainha e por iniciativa de seu cunhado.  Os dois não mantinham um bom relacionamento e, bem, o objetivo de diminuir a influência da mãe sobre o garoto.  Vejam só, uma futura rainha regente, que se entregou ao dever de gerar herdeiros que garantissem o futuro da dinastia, privada de proximidade com seu próprio filho, o único sobrevivente.  Separado da mãe, e talvez não por causa disso, bom dizer, a saúde do garoto se deteriorou e ele se foi.  Imagino, como mãe, a dor da Rainha Ana.  Ela sempre me despertou pena, agora, muito mais.

Ana e seu filho que mais viveu.
Enfim, o que esse post desconexo queria comentar, e a primeira versão, que estava bem melhor, se perdeu, é que dentro de sociedades patriarcais, ainda que os homens dos extratos superiores sejam oprimidos, os seres humanos reduzidos à coisas e as mulheres sofrem muito mais.  Não existe simetria entre o monarca, especialmente em épocas absolutistas, que se casa com uma mulher que não deseja, mas tem quinhentas amantes.  Já a rainha, muitas vezes privada de qualquer influência política (*não raro a amante titular é que tinha esse poder*), se desgasta no afã de gerar herdeiros, não raro tendo que engolir muitos sapos.  Vejam, por exemplo, o caso da Imperatriz Leopoldina (1797-1826), exaurida por múltiplas gravidezes e humilhada em público pelo marido e sua maîtresse-en-titre, a Marquesa de Santos.  

Para piorar, representações contemporâneas ainda tentam justificar o comportamento de D. Pedro I, e não falo somente da infidelidade, dizendo que Leopoldina era “gorda e desleixada”.  Sabe padrões de beleza diferentes do nosso?  Sabe depressão?  Sabe um casamento de menos de uma década marcado por uma ou duas gravidezes anuais, não havia como Leopoldina não estar sempre inchada de alguma forma?  Enfim, mas justifica-se tudo em favor do direito do patriarca de explorar o que lhe pertence, seja a esposa, os escravos e mesmo os filhos e filhas.  

Leopoldina, Primeira Imperatriz do Brasil
Só para terminar, cheguei na biografia da avó de Maria Antonieta e, portanto, tataravó de Leopoldina, me movendo de uma biografia para outra na Wikipedia.  Gosto de biografias, já disse, e não somente aquelas que tem um conteúdo histórico-crítico.  Meu ponto de partida foi uma parenta de Elisabeth Christine, a princesa polonesa Augusta Anna Constantia, dada como morta aos 20 ou 21 anos por conta da varíola.  Ela foi enterrada viva, na verdade, acordou dentro do caixão, mas não tiveram coragem (*ou quiseram*) abrir o túmulo.  Dias depois, ao abrirem a cripta, ela estava com olhos e boca esbugalhados, cabelos desgrenhado e as unhas ensanguentadas por conta do esforço para se libertar.  O pai de Augusta Anna Constantia, Augusto II da Saxônia e Polônia, era um desses que tinha um monte de amantes e as descartava.  

A princesa enterrada morta era filha de uma delas, Anna Constantia von Brockdorff, a mais importante de todas, talvez.  Mas o curioso, já que falei de rainhas, é que a esposa de Augusto II, Christiane Eberhardine of Brandenburg-Bayreuth (1671-1727) era casca grossa e não se importava com as amantes dele, mas não morava com o marido, manteve sua própria corte, continuou protestante e só produziu o mínimo, um herdeiro homem.  Parece que dessas todas, ela foi a mais feliz.  Ao morrer, Johann Sebastian Bach compôs em sua homenagem a cantata Laß, Fürstin, laß noch einen Strahl, BWV 198.  É isso.  Espero que alguém tenha chegado até aqui nessa leitura enviesada.

1 pessoas comentaram:

Valeria, que texto maravilhoso! Amo o que você escreve e como escreve.
Realmente a História e o contexto, numa dada época, nos ensinam que as mulheres eram, em muitas situações, anuladas de qualquer vontade como indivíduo.

Como, de alguma forma, a sujeição delas, me afeta e faz pensar que talvez época nenhuma é ou foi boa para mulheres nascerem (...viajando..rs).

Por favor, fiquei curiosa quando às páginas das rainhas que você segue no FB. Gostaria de saber quais são. :D

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