quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Comentando Entre Irmãs (Brasil, 2017)


Segunda-feira fui assistir ao filme Entre Irmãs, cujo elenco é liderado pelas excelentes Marjorie Estiano e Nanda Costa.  É um filme sobre mulheres, sobre sororidade, sobre busca pela liberdade e felicidade, sobre o direito de escolha em um mundo violento dominado pelos homens.  Curiosamente, a depender da resenha que você for ler do filme, ele será elogiado, ou massacrado e você lerá mais do diretor, Breno Silveira, do que sobre a película.  Enfim, é um filme com mais altos do que baixos e que cumpre uma função importante, fala sobre mulheres, lhes dá o protagonismo, permitem que elas contem sua história.  Afinal, apesar da direção masculina, o roteiro é de uma mulher, Patrícia Andrade, e baseado no livro de outra mulher, Frances de Pontes Peebles.

Entre Irmãs começa com uma passagem da infância das órfãs e mostra como Luzia sofre um acidente.  Dada como perdida, ela recebe os últimos sacramentos, mas é “acordada” pela irmã, Emília, no entanto fica com o braço esquerdo “esquecido”, sendo apelidada por todos de vitrola.  Crescidas, as irmãs, Luzia (Nanda Costa) e Emília (Marjorie Estiano), vivem junto da tia Sofia (Cyria Coentro), quem lhes ensinou a costurar.  Luzia sonha com liberdade, Emília sonha com um príncipe encantado que a leve para a cidade grande e lhe mostre o mar.  A moça termina por vislumbrar em Degas (Rômulo Estrela), moço rico e educado vindo de Recife, a possibilidade de realizar o seu desejo.  A vida morosa das irmãs muda quando sua pequena cidade, Taquaritinga, é invadida pelo bando do cangaceiro Carcará (Júlio Machado).  Impactado por um primeiro encontro com Luzia, ele obriga as irmãs e a tia a costurar para seu bando e, terminado o serviço, decide levar a moça com ele.  Separadas, a vida das irmãs segue rumos muito diferentes, mas o elo forte entre as duas permanece.

Tia e sobrinhas.
Entre irmãs se passa nos anos 1930 e apresenta, ao mesmo tempo, as possibilidades e limitações impostas às mulheres.  Órfãs, elas são acolhidas pela tia que lhes dá duas coisas muito valiosas.  Ela lhes ensina a ler e uma profissão.  Luzia, em especial, define-se a partir do seu ofício.  Para o cangaceiro que quer intimidá-la, ela diz “Não sou uma dama, sou uma costureira”.  Mesmo com seu braço enfermo, a moça é exímia na sua arte, assim como a irmã, que desejava se definir a partir de um homem, aquele que a levaria para longe do sertão e das limitações de uma vida pobre.  No início, é mostrada a rivalidade entre ambas, Luzia faz pouco caso dos devaneios de Emília, já a irmã, a espicaça por causa de sua deficiência.  Para além das agressões de pessoas com personalidades tão opostas, porém, há um sentimento profundo de afeto, a certeza de que uma é a coisa mais importante para a outra.  A separação, algo que acontece no primeiro ato do filme, causa dor e sofrimento para ambas.

É importante discutir a partida de Luzia.  Ela optou em seguir com os cangaceiros?  Ela era refém?  Ora, ainda que eu defenda que o interesse dela por Carcará – o excelente e charmoso Júlio Machado – tenha surgido antes dele ter obrigado as irmãs e a tia a costurarem para seu bando, Luzia não teve escolha.  O cangaceiro tinha ocupado a cidade, constrangido sua família a trabalhar para ele, aprisionado o coronel, seu filho e Degas, que passava as férias no sertão, e não havia espaço para recusa.  Negar-se a ir com os bandidos poderia significar a morte de todos.

Levada à força.
É importante falar dos cangaceiros, porque eles são apresentados como humanos, mas nunca como heróis.  Os atos de Carcará são movidos por um senso de justiça em relação aos mais fracos, como um típico bandido social, mas também pela vaidade.  Ele quer ser uma lenda, ele quer ser lembrado, e não hesita em praticar qualquer tipo de violência desmedida.  O filme não nos poupa do sangue e de outras coisas mais que envolvem o ofício do cangaceiro, ou da polícia que os persegue.  Temos muitas cabeças decepadas.

Falando em cabeças, o filme explica muito bem a (pseudo)ciência da frenologia, tão em voga até pelo menos a 2ª Guerra Mundial.  O Dr. Duarte (Cláudio Jaborandy), que se torna sogro de Emília, é um especialista nesta ciência que era capaz de ler as tendências criminosas ou os defeitos de caráter dos indivíduos através das medidas de seus crânios.  O Dr. Duarte, que é tão terno com a nora, odeia de morte os cangaceiros e tem curiosidade especial pela mulher de Carcará, chamada de “a costureira”.  Emília teme ser descoberta, teme que a rica família a qual passou a pertencer descubra que ela, que tem um crânio perfeito, é irmã da cangaceira que aparece em fotografias de jornal.

Noiva enganada.
Falando em Emília, ela é a personagem que mais cresce e amadurece no filme.  Luzia é forte, Emília parece fraca.  Seduzida pela possibilidade de realizar seus sonhos, sem a irmã e tendo perdido a tia, ela acaba aceitando o pedido de casamento de Degas.  Apaixonada, ou pelo menos deslumbrada, ela termina sendo surpreendida pela realidade: seu marido não a deseja, na verdade, não deseja mulher alguma.  Vou dar um spoiler, agora, porque preciso dele para continuar. Foi estranho que uma família tão rica, e que logo descobrimos ser tão preconceituosa, ciosa de seu nome, aceitasse uma noiva como Emília.  Simplesmente, Degas mentiu que a tinha desonrado.

A virgem Emília, intocada pelo marido, foi difamada por ele.  O acolhimento do sogro me parece a esperança de que o filho possa “se regenerar”, afinal, todos sabem, ou desconfiam, que Degas é homossexual.  Já a mãe do moço, hostiliza Emília, deseja um neto, que a moça faz questão de impedir que seja gestado depois que Degas decide “cumprir com seu dever”, mas preocupa-se mais em tornar a sertaneja aceitável para a boa sociedade recifense.  As mudanças de Emília são perceptíveis, a começar com a pequena rebeldia que é voltar a costurar para si mesma, a despeito das recriminações da sogra.  Só que ela é chantageada pelo marido, ele sabe do seu segredo e ela precisa se comportar da melhor forma possível para que o dele não seja exposto para toda a sociedade.

Degas e Felipe.
Degas é uma personagem antipática durante boa parte do filme. Eu não consigo simpatizar com personagens homossexuais que oprimem mulheres para manter seu segredo, seu status, seus privilégios.  Degas não tenta se apaixonar por Emília, ele não crê, o que seria plausível na época, que poderia “se curar” de “seus vícios”, ele simplesmente quer usá-la como fachada.  Seu amor é Felipe (Gabriel Stauffer), filho do coronel que protegia a família da moça.   Ao mesmo tempo que a opressão aos homossexuais é apresentada de forma correta pelo filme, Degas é um personagem que carece de caráter, que se curva não somente às convenções sociais, mas que é incapaz de enfrentar minimamente a família.  Interessante que, talvez por conta do drama da personagem e de seu caráter fraco, isso se reflita na forma como a maquiagem trabalhou no rosto de Rômulo Estrela.  O ator, que é muito bonito, parece decadente, abatido, sombrio, como a vida dupla que é obrigado a levar.  Não tem como não ser de propósito. 

Degas é um filhinho de papai e mamãe que não quer se posicionar diante da vida.  E isso não tem a ver com sua orientação sexual, mas com suas posturas gerais.  Ele não trabalha, leva uma vida de prazeres, enfim, enfrentar o pai significaria, talvez, perder suas mordomias.  Ele só ganha simpatia, alguma, muito pouca, quando seus minutos no filme já estão contados, quando lhe é imposta uma internação em uma clínica que se propõe a curar sua homossexualidade.  Ainda assim, ele foi por demais cruel com Emília, não dá para relevar tudo.  A moça sonhava com amor e romance e beijos apaixonados, não encontra nada disso no marido, só indiferença. Já Luzia, sonhava somente em ser livre como um passarinho, mas acaba encontrando amor, carinho e paixão ao lado de Carcará.  E aqui cabe comentar que o bando de Carcará comete toda sorte de crimes, mas não estupros.  Se você assistir ao filme entenderá o motivo.

Carcará e seu bando.
Luzia passa meses com o bando em condições muito duras, mas em nenhum momento sua honra é ameaçada.  É ela que termina se impondo ao cangaceiro, e Carcará termina por ceder em uma cena que é ao mesmo tempo bonita e erótica. Só que o romance, que vira casamento na igreja, porque Carcará é homem sério e Luzia não é rapariga, cria um problema para ele no grupo, afinal, mulheres trazem má sorte, segundo alguns de seus companheiros acreditam.  O líder, no entanto, vê Luzia como um amuleto de boa sorte, alguém que ele tinha divisado em uma visão e que se materializou na costureira que não tremeu quando estava na mira de sua arma.

Luzia avessa à violência, termina apendendo a atirar e, eventualmente, começa a matar.  Ela salva a vida do amado, ainda que alguns acreditem que ele só se feriu, porque ela estava com o bando.  Ela também se endurece, se molda à vida do cangaço, sem, contudo, abrir mão de certos valores, como a compaixão.  Sim, isso acaba sendo uma marca de gênero, o toque “feminino” que faltava aos cangaceiros.  Mas seria isso mesmo ou simplesmente uma visão diferente de uma pessoa, neste caso uma mulher, que mesmo tendo vivido na pobreza teve uma tia que lhe passou sólidos valores, que teve amor da tia e da irmã, que cresceu num ambiente protegido que possibilitou que ela se tornasse uma mulher de caráter? Luzia tem um forte senso de justiça.

Tornando-se cangaceira.
Desde o início, Luzia, a mais esquentada e ousada das duas irmãs, enuncia diversas verdades a respeito não somente da condição feminina, mas da opressão sofrida pelos mais fracos.  Para a irmã aterrorizada pelos cangaceiros diz “Sua honra não está debaixo da barriga”.  Repete a mesma frase para uma mulher que foi violentada pelos capangas de um coronel, acrescentando que o mundo não é justo com as mulheres.  Para o médico interpretado por Ângelo Antônio, e que tinha o mesmo nome de um dos meus avós, Eronildes, ela diz que a educação que ele defende que mudaria o sertão não é mais que uma gaiola maior para que o passarinho se sinta mais confortável.  As mudanças precisam ser mais profundas, Luzia, na verdade, tem a revolução no coração.  E se torna, não vou dar mais detalhes, uma espécie de Khaleesi da caatinga.

Enfim, Entre Irmãs foi criticado por ser um filme muito longo. De fato, são quase três horas de projeção.  Como no caso de Gonzaga, do mesmo Breno Silveira, é possível que o material se torne uma microssérie da Globo.  É demérito?  Não.  O material funciona bem como filme, tem uma fotografia bonita, um figurino interessante.  Não tem pontas soltas.  Ele poderia ser encurtado?  Bem, só vejo uma forma.  Lindalva, a personagem de Letícia Colin, tem uma série de cenas com Emília.  Trata-se da moça moderna, que se veste na última moda e abomina o provincialismo e hipocrisia da sociedade pernambucana.  Lindalva também é lésbica e oferece sua amizade à Emília, ao mesmo tempo que se aproveita de sua fragilidade para seduzir a moça.  Uma das cenas de sexo mais importantes do filme é entre Lindalva e Emília.

Lindalva leva Emília para ver o mar.  É uma cena emocionante.
Agora, se tirassem Lindalva e as cenas com Emília, será que faria falta ao andamento geral do filme?  Não.  Teríamos, talvez menos dez, ou quinze minutos de película.  Agora, Lindalva é o contraponto de Degas na vida da protagonista.  Ela parece não se curvar às convenções, mas comparativamente, nada sabemos da família da moça.  Do tipo de coerção que ela sofre.  Talvez, como acontecia muito com as lésbicas, ela seja somente invisível.  Como incorpora todos os atributos da feminilidade mais sofisticada, ela não é uma grande ameaça à ordem.  Lindalva não fala de política, não parece engajada em nenhuma causa, somente, em apoiar e conquistar Emília.

Falando em política, o calcanhar de Aquiles do filme, o que realmente ficou ruim, é que por algum motivo incompreensível, preferiram inventar e não apresentar os fatos da época.  Explico, criaram um presidente Tenório Vargas que foi eleito.  Por qual motivo não usar o verdadeiro Vargas, na época ditador, e que efetivamente reprimiu o cangaço?  O que fez com que os idealizadores cismassem de inventar políticos para o filme?  Pior, quando Degas e Felipe se desentendem e rompem, os motivos são políticos.  Felipe fala em diferenças ideológicas e acusa o amante de ser burguês, daí, pensei “Ele se tornou comunista”.  Seria o lógico, ainda mais nos anos 1930, mas, logo em seguida, o jovem professa seu apoio à Tenório Vargas... e ainda há um tiroteio por causa dos gritos de apoio ao presidente... Enfim, como historiadora, considero esse o grande defeito do filme.

Emília com o vestido que ela mesma fez.
E a Bechdel Rule?  Foi cumprida, claro.  São muitas personagens femininas, com nomes, conversam entre si, muitas vezes sobre elas mesmas, seus sonhos, seus interesses.  Ademais, é um filme até certo ponto feminista em algumas questões que levanta, é um filme que celebra a solidariedade entre as mulheres.  É um filme, também, que aponta as possibilidades que estavam abertas para as mulheres pobres nos anos 1930.  Ser costureira era uma delas.  E de como tanto a riqueza, quanto a pobreza, poderiam ser prisões.

Falando do elenco, todos trabalham muito bem.  É um dos pontos fortes do filme.  Talvez, Marjorie Estiano pareça já muito madura para ser Emília, mas sua interpretação é compensadora.  Já Nanda Costa é perfeita como Luzia e Cyria Coentro brilha como tia Sofia, apesar do pouco tempo em tela.  Fábio Lago, que faz o cangaceiro Orelha, tem boas cenas e parece sempre estar espreitando Luzia.  Suas falas são misóginas, mas, no fundo, no fundo, ele parece desejar a moça e se ressentir dela ter caído nas graças do líder do bando.  Fiquei contando o tempo para que ele terminasse morto e acabei me surpreendendo com seu final.  

Eu adorei a cena e a foto.
Falando em cangaceiro, não vi Júlio Machado em outros papéis que não seja o do homem rústico, sombrio e violento.  Eu o vi atuando como Clemente em Velho Chico, que seria o oposto, ainda que idêntico, do cangaceiro, e ele foi um dos motivos pelos quais eu via a primeira fase da novela.  Enfim, queria assisti-lo em algum papel diferente para comprovar se ele é tão talentoso quanto me parece.  Agora, adoro a beleza rústica que ele exala em papéis como o de Carcará.  Luzia fez bem em agarrá-lo.  Eu sei que alguém pode ter pensado em Síndrome de Estocolmo, mas os dois já tinham se olhado antes e, bem, o filme é realista e não pintou cangaceiros bonzinhos e limpinhos, no que, aliás, fez muito bem.

Vou terminar aqui.  As irmãs se reencontram?  Emília encontra o amor? Por que eu chamei Luzia de Khaleesi do sertão?  Veja o filme.  Não sei se meu texto foi o melhor possível, ele ficou um tanto desorganizado, mas Entre Irmãs é um bom filme e um filme que fala de mulheres e é contado por mulheres. Este detalhe é muito importante.  E fiquei com vontade se ir atrás do livro, que foi relançado com o título do filme. O original, que saiu em inglês, chamava-se The Seamstress, a  costureira.  Em sua primeira edição brasileira, foi batizado de A Costureira e o Cangaceiro.  Eu realmente fiquei surpresa com a qualidade da película. Imagino que o filme só fique em cartaz por mais duas semanas.  Aqui mesmo, no cinema que assisti, ele saiu de cartaz hoje.

5 pessoas comentaram:

Aaaaaaaaaa que ótima resenha!!!!!!

Excelente leitura da história em sua amplitude, pralém do filme. ��

Gostei muito da sua resenha.

Ótima resenha, também assisti ao filme, excelente.

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