segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Mais um massacre, algumas palavras sobre o Feminicídio em Campinas


Não queria começar o ano falando de um feminicídio, mais ainda, um de proporções como o de Campinas.  Tinha dado pouca atenção à notícia, porque ela veio disfarçada de “outra coisa”.  Chacina foi a palavra usada na maioria dos jornais que passei os olhos, estava (*e estou ainda*) com a conexão ruim e imaginei mais um daqueles crimes horrendos, verdade, que envolvem comunidades pobres, guerra de marginais, ou polícia, enfim, nada de novo no front.  Estava enganada.  Foi um massacre provocado pela misoginia e perpetrado por um sujeito assumidamente de extrema-direita.  Um novo Realengo, quantos mais teremos?

Comecei a ver os detalhes do crime, a carta manifesto do sujeito (*sim, é disso que se trata, e parece que não foi uma só*), que foram mulheres a maioria das vítimas.  Quatro gerações da mesma família.  Vi alguns comentários dos grandes portais (*Recomendo a coletânea do Sensacionalista*).  Vi o apoio de muitos homens.  Apoio a um homem que entrou poucos minutos antes do Ano Novo na casa da família da ex-mulher portando uma 9 mm e massacrou 12 pessoas:  9 mulheres, 3 homens.  O assassino, que cometeu suicídio, matou o filho de 8 anos que dizia amar.  Alguém em sã consciência é capaz de acreditar que um sujeito desses era qualificado para conviver com uma criança?  Para muitos comentaristas de portal, sim, e ele foi movido por esse imenso amor pela criança, pela frustração de não poder ser pai.  Coitado, foi por causa disso que ele matou, era um homem bom.


Alguns comentários de apoiadores falavam em “alienação parental”, algo que existe, é documentado e causa dano para filhos/as, pais e mães (*se bem que perder guarda não é sinônimo de alienação parental*).  Mas conheço profissionais que estudam exatamente o uso do argumento da alienação parental para constranger principalmente as mães a terem que conviver com ex-companheiros agressivos, em nome da manutenção dos vínculos familiares.  Havia pesando sobre o assassino acusação de abuso sexual.  A justiça considerou inconclusivas as provas.  Efetivamente, poderia ser uma falsa acusação, muitos divórcios são marcados por acusações, agressões e mágoas.  Só que não foi a esposa quem cometeu o massacre, ela não está aqui para ser ouvida, acusada, ou absolvida.  Já o criminoso, este não pode ser transformado em vítima, em alvo de simpatia.

O que temos é um texto – siga o primeiro link e leia na íntegra – eivado de lugares comuns de grupos do Facebook, fóruns masculinistas e fascistas contra as feministas, as esquerdas, a lei Maria da Penha (*quem critica essa lei, já me passa o atestado de suspeito de violência doméstica*), os direitos humanos, o Brasil, enfim, todos os ingredientes de ódio que circulam o tempo inteiro nas redes sociais e em alguns veículos de comunicação nacional. 9 das vítimas do sujeito eram mulheres.  NOVE.  Citarei dois trechos: “A vadia foi ardilosa e inspirou outras vadias a fazer (sic) o mesmo com os filhos, agora os pais quem irão se inspirar e acabar com as famílias das vadias. As mulheres sim tem (sic) medo de morrer com pouca idade.” e “Filho, não sou machista e não tenho raiva das mulheres (essas de boa índole, eu amo de coração, tanto é que me apaixonei por uma mulher maravilhosa, a Kátia) tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha! Não posso dizer que todas as mulheres são vadias! Más todas as mulheres sabem do que as vadias são capazes de fazer!”


Ele não é somente machista, ele é misógino e o ódio às mulheres transparece em cada trecho.  Qualquer mulher que não atendesse suas expectativas, que discordasse do que ele considerasse adequado, certamente seria promovida à vadia, não tenham dúvida.  E, sim, todos misógino é machista, mas nem todo machista é misógino.  Há comportamentos machistas, que nós feministas criticamos e que não são expressão de ódio, mas de visões de gênero que subordinam as mulheres, ou que as colocam em situação de debilidade, para posteriormente culpá-las dessa fragilidade construída em discursos e práticas.  Eles são ruins, reforçam as desigualdades, mas nem sempre são expressões de violência.

Homens machistas não necessariamente odeiam as mulheres, as desprezam abertamente, constroem discursos, articulados, ou não, que defendem o nosso aniquilamento.  O problema é que machistas, não raro, são complacentes com a misoginia.  Afinal, é outro homem que perpetrou o crime, “um de nós”, ele deve falar a verdade.  Todo mundo conhece uma “vadia”, a ofensa que pode recair sobre qualquer uma de nós, mulheres, e um homem que foi prejudicado por ela. A classe dos homens se defende, são privilégios que estão em jogo.  Privilégios que podem incluir matar em nome da honra.    Isso está na carta-manifesto, também.


A coisa piora, porque a mídia se recusa a usar a palavra “feminicídio”, apesar do crime ser tipificado no Brasil, e “massacre”.   Será que se fosse um crime nos EUA não usariam o termo “massacre”?  Como escrevi, “chacina” é um termo que dificilmente se aplica ao que ocorreu em Campinas.  Fora isso, e várias comunidades feministas estão comentando, deu-se voz ao assassino, não à vítima, ou especialistas em alienação parental ou feminicídio.  Do criminoso sabemos que tinha emprego, amigos, namorada.  Da vítima, a ex-mulher, que ele a chamava de vadia e, como pontuei “todo mundo conhece uma vadia trá-lá-lá trá-lá-lá” e a culpa sempre é da mulher.

Querem ver?  Esta semana mesmo, um médico (*profissão de elite*) de Brasília afirmou que mulheres apanham, porque não respeitam os maridos.  Sim, nossas avós não apanhavam.  Nossas mães não apanhavam.  Mulheres de bem, submissas, não apanham.  Quem apanha são as vadias.  Outra?  Um dos assassinos no Sr. Ruas, que defendeu um homossexual e uma travesti de dois canalhas na noite de Natal deu um azar danado.  Um dos homens (*não os dois*), segundo o delegado (*outro homem*), tinha sido traído e, por causa disso, estava transtornado.  A culpa, no fim das contas, foi de outra vadia.  Lembrem também de Eloá, a adolescente torturada e morta pelo namorado quase que diante das câmeras.  No fim das contas, outra vadia insensível.  Poderia citar vários casos, afinal, é só abrir um grande portal qualquer e contar os feminicídio, de notícias que narram um crime culpabilizando a vítima, na medida que dão somente a voz ao assassino.


O caso de Campinas evidencia que há um modelo da masculinidade que é tóxico, porque sanciona o uso da violência para provar seu valor.   E esta masculinidade que se expressa pela violência, é reconhecida socialmente como legítima, ou, pelo menos, aceitável, por ser inevitável.  Não, não é.  As verdadeiras vítimas são a ex-esposa, seu parentes e amigos e uma criança, um menino de 8 anos.  Ainda assim, segue a celebração e a onda de compreensão – como se pudesse ser qualquer um de nós (homens) – para com o assassino.  Certamente, em alguns nichos da internet ele está sendo celebrado, seu manifesto servindo como estímulo para outros criminosos.

E mais, se ele mandou a carta para amigos e a namorada (*ela é real ou ficção?*).  Ninguém sabia o que ele planejava fazer?  Que comprou uma arma?  Não houve conivência? Quem cala, consente.  E a grande imprensa, mais uma vez, se cala, ao  não usar os termos adequados, ao dar voz ao assassino e, não, às vítimas,  ao legitimar, ainda que de forma velada, os atos de um macho (*supostamente*) ferido.  Não existe nem o contraponto com outros crimes do mesmo tipo (*feminicídio*), ou do reforço dos discursos de fóruns misóginos, violentos e de extrema-direita da internet.  Foi só uma chacina, um ato desesperado de um pai amoroso.


E, não, meu texto não está afirmando que pessoas de direita são assassinas.  Só que o sujeito não era de direita, mas de extrema-direita.  Ser conservador também não torna ninguém conivente com atos de  misoginia. Mesmo um machista (*e há de esquerda e de direita*) não necessariamente é alguém capaz de matar mulheres.  A questão é maior, é sobre como uma sociedade patriarcal como a nossa sanciona coletivamente discursos e práticas de violência contra as mulheres, se calando e/ou naturalizando os atos de homens violentos que oram socializados para ser exatamente assim e se acharem no direito de exigir das mulheres e dos homens mais fracos que se submetam.

Agora, pequenos atos podem fazer diferença.  Aceitar que o machismo e suas expressões são um problema social, que a misoginia é a exacerbação desse machismo e que os discursos de violência são daninhos e podem se converter em atos de violência é fundamental.  Chega de complacência, de compreensão para com o homem que mata, de tentativa de individualizar e psicologizar os atos do criminoso.  Ou paramos de negar o feminicídio e que as idéias de extrema-direita são daninhas a todos/as nós, ou outros massacres virão. 

P.S.: Não coloquei o nome de ninguém.  Isso vocês encontram em todas as notícias, porque a questão é maior que os indivíduos e, também, para não dar mais espaço para o assassino.  Agora, cabe registrar os nomes das vítimas: Isamara Filier, de 41 anos e o filho, João Victor, de 8. Também foram mortos Liliane Ferreira Donato, de 44, Rafael Filier, de 33, Antonia Dalma Ferreira de Freitas, de 62, Abadia das Graças Ferreira, de 56, Paulo de Almeida, de 61, Ana Luzia Ferreira, de 52, Larissa Ferreira de Almeida, de 24, Carolina de Oliveira Batista, de 26 e Alessandra Ferreira de Freitas, de 40. Luzia Maia Ferreira, de 85.

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