sábado, 25 de fevereiro de 2017

Comentando Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016)


Hoje, assisti Moonlight: Sob a Luz do Luar.  Infelizmente, não foi no cinema.  As sessões em Brasília eram poucas e os horários não me eram favoráveis (*não vou contar com a supercara sala vip de um shopping aqui perto*).  Talvez, no cinema, o drama de Chiron tivesse me impactado mais, emocionado mesmo.  Fiquei fazendo o jogo mental e comparando com Lion, bem, o filme com Dev Patel me tocou mais, no entanto, a cena final de Moonlight, discreta, sensível, foi uma das coisas mais bonitas e tocantes que vi nos últimos tempos.  Se houvesse prêmio para melhor cena, daria para  o final de Moonlight.

A história do filme normalmente é resumida como a narrativa da descoberta da (homos)sexualidade de Chiron (Alex Hibbert), um garoto negro que mora em uma vizinhança pobre de Miami, sua relação com a mãe drogada (Naomie Harris) e com o traficante (Mahershala Ali) que termina por se tornar a figura paterna em sua vida.  Bem, o problema é que Moonlight tem três momentos e três atores interpretando Chiron.  O adolescente é Ashton Sanders e o adulto é Trevante Rhodes.  E é aí que vejo problemas em Moonlight, o filme merecia ser mais longo, cada um dos Chiron e, em especial, Mahershala Ali, precisavam de mais tempo para terem suas tramas desenvolvidas de forma mais satisfatória.

A bela cena da praia.
Moonlight foi agraciado com oito justas indicações ao Oscar.  Imagino que possa sair com umas  três estatuetas, tudo o que ganhar, se ganhar alguma coisa, será merecido.  Trata-se de um filme interessante que discute muitas coisas.  A descoberta da orientação sexual, me atrevo a dizer, não é o mais importante.  O que me saltou aos olhos foi como o filme apresenta de forma clara e dolorosa a construção das masculinidades, agravada por uma situação de pobreza, falta de perspectivas de vida e exemplos positivos.  

Falando em masculinidades, trata-se de uma área dos estudos de gênero que se concentra em discutir como os homens são construídos como homens.  Hierarquias entre homens e mulheres, entre homens e homens, o que torna um indivíduo viril em uma determinada sociedade etc.  Nesse caso, pega-se um conceito surgido dentro dos escritos e reflexões feministas e aplicamos não somente para as discussões sobre as mulheres, como, também, às discussões a respeito dos homens.  “Ninguém nasce homem, torna-se homem” é uma frase tão verdadeira quanto a original de Simone de Beauvoir.  

A adolescência é a parte mais explicitamente violenta do filme.
A discussão central de Moonlight a meu ver é esta, com o agravante da orientação sexual.  O aspecto comunidade negra foi enfatizado em algumas análises, mas duvido muito que a coerção não seria a mesma ou similar em uma comunidade pobre branca, latina, ou de outro grupo qualquer.  Mas, enfim, como ser reconhecido como viril em uma sociedade na qual ser homem se remete à violência e a heteronormatividade e, ainda assim, ser homossexual?  De resto, ser homem em uma dada sociedade, assim como ser mulher, é algo mais complexo do que parece...

Chiron é perseguido desde a infância por não ser forte o suficiente, por ser tímido, retraído.  Talvez não tenha sido sua mãe a primeira a ofendê-lo, mas ela o chama de “faggot” – palavra ofensiva utilizada para com os homossexuais – em uma cena que deixa evidente que sua casa não é um lugar de acolhida ou proteção.  Um menino deve ser agressivo, mostrar-se superior aos outros, ou, no máximo, seguir o exemplo dos líderes, ser "um dos caras".  Chiron não consegue ser nada disso, talvez ele não sobrevivesse se não tivesse encontrado Juan, o traficante, e Teresa (Janelle Monáe),   sua companheira, que passam a ser seu referencial de família.  

Figura paterna e referência de masculinidade.
Estranho, verdade, mas a realidade é feita de contradições.  O traficante que ajuda a destruir a vida da mãe de Chiron é quem salva o menino da aniquilação, do suicídio, talvez.  Pena que Mahershala Ali fique tão pouco em cena.  Eu não contava com seu desaparecimento prematuro, ele só está na primeira parte do filme, ainda que o Chiron adulto o tenha como modelo, se espelhe nele em tudo, o ator tem pouquíssimas cenas.  Por conta disso, dessa participação tão limitada, acredito que Dev Patel mereça o Oscar de coadjuvante, vamos ver como a Academia vai se posicionar amanhã.

Na adolescência, a coisa se torna ainda mais pesada, porque é preciso exercitar e construir a virilidade a cada gesto, no vestuário, na forma grosseira de se referir às mulheres, na agressão aos mais fracos.  Chiron, coitado, é um dos mais fracos.  Diferente do que acontece em muitos filmes, não sabemos se ele é bom aluno, não sabemos nada de seu desempenho escolar.  Sabemos, sim, que ele sofre bullying violentíssimo, que é ameaçado de estupro (*quem violenta acredita estar com sua “macheza” intacta*) a cada curva do corredor da escola, que continua tendo uma mãe drogada e abusadora.  De esperança, somente Teresa, mas ela aparece pouco na segunda parte do filme.

A praia, o mar, encontro, libertação, esperança.
É na segunda parte que Chiron descobre o sexo, sente-se acolhido, Kevin (Jharrel Jerome), seu único amigo de infância, parece entender a condição do protagonista e sentir o mesmo que ele.  No entanto, logo em seguida, Chiron é destroçado, mas não se curva.  É um ponto de virada.  O garoto tímido precisa morrer, Chiron precisa adotar quase a totalidade dos rígidos códigos de masculinidade vigentes naquela comunidade, ainda que sua sexualidade seja reprimida, escondida.  É um Chiron transformado em uma montanha de músculos, seguro, armado, emulando Juan a cada gesto, que vemos na terceira fase do filme.  É o mesmo menino tímido da parte um, mas revestido de uma carapaça.  Ninguém seria capaz de chama-lo de “little” ou “faggot”, ninguém seria capaz de ameaçá-lo de estupro.

Só que a afetividade e a sexualidade de Chiron continuam atrofiadas, reprimidas.  E como ser diferente?   O reencontro com Kevin – e olha que eu estava com o pé atrás com esse cidadão – oferecem um belo desfecho para o filme.  Tanto Chiron, quanto Kevin, são constrangidos a se enquadrar em um modelo de masculinidade brutal.  Os dois se enquadram e os dois escapam, cada um a sua maneira.  E, bem, Kevin se arrepende de sua fraqueza na adolescência, por ter se assujeitado aos desmandos do grupo dos bullies para sobreviver.  Infelizmente, não poderia ser muito diferente... 

A escola é uma prisão, não elemento de libertação.
Bem, vou parar por aqui.  Falta, claro, falar das mulheres de Moonlight.  Bem, o filme não é sobre mulheres, seria injusto fazer um estardalhaço sobre o fato da Bechdel Rule não ser cumprida.  Ao longo do filme, se bem prestei atenção, são três mulheres com falas (*Paula, a mãe abusiva de Chiron, Teresa e uma oficial da escola*), há a namorada de Kevin, Samantha, que só é referida e muitas figurantes.  A maioria negras, porque, bem, trata-se de uma comunidade negra.  As únicas pessoas brancas em tela são figurantes no restaurante de Kevin.

Talvez, se pudesse fazer alguma discussão em torno da mãe de Chiron.  Era viúva ou fora abandonada?  Como entrou nas drogas?  Quantas mulheres são abandonadas, não tem perspectiva, apoio e terminam por descontar suas frustrações nos filhos?  Seria o caso?   Ela, por fim, se arrepende, declara seu amor, é uma cena bonita, mas o filme não é sobre Paula, ou a família de Chiron, é sobre o garoto.  Obviamente, só a cena dela chamando o filho de “faggot” já renderia toda uma pregação conservadora sobre o uso das palavras e como elas podem terminar em maldição... De resto, Janelle Monáe estava ótima como Teresa.  Ela merecia uma indicação por Hidden Figures (Estrelas Além do Tempo), mas poderia ter recebido por Moonlight, também, ainda que seu papel tenha sido mais discreto.

Os três Chiron.
Termino dizendo que Moonlight é um filme muito superior à La La Land, o provável campeão do Oscar amanhã.  Melhor como roteiro, mais inclusivo, com belas imagens (*destaque para o uso do mar como metáfora de libertação*), muitos silêncios e algumas cenas de uma delicadeza única. La La Land é uma celebração do cinema, um filme que olha para trás.  Um filme, também, com um homem branco se pavoneando sobre o quanto ele entende de jazz, uma música que nasce negra, e em situação de domínio sobre sua parceira em tela.  Agora, quantos filmes você conhece que discutem a experiência da homossexualidade?  Poucos.  Quantos não são comédia?  Alguns.  Quantos tem um negro como protagonista?  Exemplo?  Moonlight tem defeitos, mas são muito, muito pequenos.  

De resto, não vejo o filme como um novo Brokeback Mountain, o tema é semelhante, a forma de tratamento dada, não é.   Ademais, ninguém em Moonlight usa mulheres como saco de pancada para suas frustrações e isso faz muita diferença para mim.  Outra coisa, gostei mais de Lion, me emocionei mais com Lion, mas Moonlight é melhor.  Lion tem duas partes distintas, mas a primeira é superior, mais criativa, enquanto a segunda, ainda que tocante, é convencional.  Moonlight consegue brilhar em suas três partes, pena que não tenham lhe dado uns vinte minutos a mais.  É isso.

2 pessoas comentaram:

Vi hoje também. Fui ao cinema e já peguei a sessão desse filme e logo em seguida Eu, Daniel Blake. Moonlight virou meu filme favorito desse Oscar (aliás, como esse ano está com o padrão alto). Só por retratarem um homem pobre, negro e gay já valeria a pena dar uma olhada, mas a sensibilidade do filme me comoveu demais. Acho que faz toda a diferença ver no cinema mesmo, mas nem sempre dá. Me arrependo até hoje de não ter visto Cisne Negro em tela grande.

Eu achei a terceira parte a mais fraca de todas pelo momento em que mostram o reencontro do Chiron com o Kevin. Mas concordo com você sobre a cena final, principalmente no momento em que o Chiron diz "You're the only man who ever touched me". Essa frase mostra tanto do personagem. E o tom de voz, o olhar do ator, tudo ficou tão bonito. As cenas na praia, aprendendo a nadar e depois a primeira vez dele também foram lindas.

Porém a cena que me fez chorar assistindo foi o reencontro com a mãe dele depois de adulto. Falei que estou torcendo pela Viola Davis, mas a Naomie Harris está fantástica nesse filme.
O Mahershala Ali muito provavelmente vai levar o Oscar. Ele levou tudo até agora. Fora que é muçulmano; isso ajuda no momento atual. Acho que fora esse, o outro Oscar que parece ser certo é para roteiro adaptado. O filme levou o WGA de roteiro original, mas no Oscar mudou de categoria e parece que vai tomar o lugar de A Chegada que era o favorito.

Agora, eu realmente não vejo nenhuma semelhança com Brokeback Mountain, fora os personagens serem gays. Se fosse para comparar com outro filme assim, eu diria Sommersturm - filme coming of age de um garoto gay. Mas mesmo esse filme alemão só lembra vagamente em alguns pontos. Moonlight é drama, Sommersturm é dramédia. Vejo muitos filmes com a temática e Moonlight é realmente um ponto fora da curva. Nunca vi nada igual. (Se quiser um filme mais próximo de Brokeback Mountain, tem outro - na netflix, inclusive - alemão: Freier Fall; que inclusive é chamado de "o Brokeback da Alemanha"). ^^

Valéria, acabei de assistir a esse vídeo e achei que você, e quem mais vir este post, poderia ter interesse nele. Explica certinho porque Moonlight está sendo tão aclamado pela crítica. E me fez gostar ainda mais do filme. É uma obra-prima.

https://www.youtube.com/watch?v=Ot9DX5S8aHk&lc=z12vvbipzuq1dvgds23ythlhgqegcxpxj04

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