sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Comentando O Estranho que Nós Amamos (Beguiled, 2017)


 Ontem, assisti com meu marido a versão de Sofia Coppola para o conto de terror gótico A Painted Devil, de Thomas P. Cullinan.  Apesar de ser, aparentemente, uma releitura do livro, o filme traz o mesmo título da versão de 1971 da mesma obra, estrelada por Clint Eastwood.  Por isso mesmo, e por ter visto a primeira filmagem, sei que a nova película bebeu nas duas fontes, e minha empolgação inicial se foi conforme lia sobre o novo filme de sofia Coppola.  E, bem, a fotografia é belíssima, os silêncios e barulhos são inspirados, a construção da intimidade e repressão do colégio feminino funcionam, porém o filme é corrido e não consegue construir uma história impactante como o filme de 1971, uma produção B e considerada, por muita gente, quase pornográfica (*eu discordo*).  Vamos ao resumo.

1864, estamos já no final da Guerra de Secessão.  Miss Martha Farnsworth (Nicole Kidman) é a dona e diretora de um colégio interno para moças no Sul.  Os escravos partiram, muitas alunas, também, e ela tem somente cinco alunas e uma professora, Edwina Morrow (Kirsten Dunst), que é melancólica e reprimida.  Um dia, uma das alunas, Amy (Oona Laurence) encontra um soldado inimigo ferido na floresta perto da escola.  Apesar das resistências, John McBurney (Colin Farrell) é acolhido na instituição, por dever cristão.  A presença de um homem no local desperta a curiosidade e interesse das alunas, especialmente a adolescente Alicia (Elle Fanning),  e das mulheres adultas presentes.  O que poderia parecer uma situação paradisíaca para McBurney, no entanto, acaba em tragédia.

A ostentação da religiosidade é parte da rotina repressora.
Não sei se a resenha será curta como eu desejaria, de qualquer forma, fui ao cinema quase na certeza de que me decepcionaria, que na comparação com o quase esquecido filme de Eastwood, a película de Copolla teria seus problemas expostos.  E eu tenho que comparar os filmes, porque eles não tem o mesmo título à toa, e, pelo que li das resenhas do livro, o soldado da obra literária era um homem de vinte poucos anos, mais próximo da idade das e alunas e que não flertava com a diretora, enquanto, de novo,  preferiram um homem de quarenta anos para o papel.  Ou seja, a referência era Eastwood, não o McBurney original.  O que a versão nova trouxe do livro é o fato do sujeito ter origem irlandesa, algo que não estava no filme de 1971.

No que o filme atual é melhor?  E, não, não vou falar de olhar feminino, porque, sim, ele impera na versão de 2017, porque não é isso que torna uma película melhor ou pior, vou falar de questões que foram muito bem trabalhadas.  O filme constrói de forma bem consistente a escola, o vazio da vida daquelas meninas, o medo da guerra que está tão perto e tão longe.  O Estranho que Nós Amamos de 2017 individualiza as alunas, coisa que o original não é muito capaz de fazer.  Obviamente, há personagens em destaque, Miss Martha, Edwina, Alicia e Amy, mas as outras não estão ali somente para preencher vazios.  Há, também, um laço forte entre as mulheres da casa, algo que será decisivo para o desfecho do filme.

Parece um paraíso, mas não é.
O filme também é muito feliz na fotografia e na escolha dos silêncios.  Ele é barulhento, pois ouvimos a guerra ao longe, porque os assoalhos gemem, porque a floresta tem seus sons, mas não há uma música imperativa.  O figurino também é interessante, ainda que historicamente pouco acurado, mas se vê onde o dinheiro foi investido, o filme original não tinha como superar aí, afinal, era um filme B dos anos 1970.  De qualquer forma, me incomodou especialmente o figurino de Miss Martha, que mais parecia coisa do final do século XIX, início do século XX, e, não as vestes desgastadas de uma dama sulista.  

Algo irritante, é o desalinho de Alicia, a garota rebelde e provocadora que tem seus cabelos soltos quando todas as mulheres da casa estão adequadamente com seus cabelos presos.  Ela deveria ser corrigida pelas mulheres adultas, afinal, está em uma escola para isso e, não, ser deixada para fazer o que quisesse.  Ademais, a Miss Martha do filme é bem estrita nos cuidados e na disciplina, ela de fato se preocupa com suas meninas e em nenhum momento, pelo menos nesse filme de Copolla, o interesse pelo homem invasor obscureceu este afeto.  É mais evidente, ainda que tênue, a rivalidade entre as duas mulheres adultas, não havendo simetria entre a diretora e a professora e as meninas.

Ele é uma ameaça, precisa ser eliminado.
Esse tipo de abordagem, vira quase que totalmente o que foi feito no filme original, no qual o olhar era masculino, a leitura feita das relações, ou melhor, rivalidades e mesquinharias das mulheres, também.  O original, e acredito que o livro seguisse na mesma linha, era uma fantasia machista na qual o sujeito se sentia feliz e seguro como um galo em um galinheiro para descobrir, tarde demais, que ele estava em uma armadilha.  E, bem, ter quase anulado essa questão não favoreceu o filme de 2017.

O que faltou ao filme?  Um roteiro bem desenvolvido.  O McBurney de Colin Farrell é menos sedutor e agressivo que o de Eastwood.  E, opinião minha, nunca que Colin Farrell será um Eastwood.  Parece, em alguns momentos, que o novo McBurney é um cafajeste que está disposto, sim, a seduzir as mulheres - cada uma a sua maneira - e ficar em segurança naquele paraíso.  O problema é que o filme não desenvolve a relação de McBurney e Edwina, com quem ele estabelece uma relação romântica e propõe casamento; do sujeito com Alicia, a  adolescente curiosa e mimada; e com a diretora, que o deseja, também.  Faltaram aquelas pequenas cenas que fazem diferença.

A "castração" foi necessária, ou proposital?
Estava no cinema com meu marido, que viu, como eu, o filme original (*eu fui conferir quando cheguei*) e algo que sentimos falta é de McBurney sendo alimentado.  Ele chega ferido, o tempo passa e em nenhum momento ele aparece comendo.  Há, no filme de 1971, pelo menos uma cena na qual Edwina está dando comida para ele.  São essas cenas pequenas e não um papo furado jogado em cima de Edwina de repente que cria o laço entre eles.  As mulheres naquele ambiente fechado, de repressão sexual, estão vulneráveis, mas é preciso construir as coisas.  Da mesma forma, eliminou-se boa parte da tensão sexual do primeiro filme, daí, fica meio jogada a situação que detona a desgraça de McBurney, o fato dele ter sido encontrado por Edwina na cama com Alicia.

Mesmo quando se pode construir uma maior tensão sexual, como quando McBurney está trabalhando no quintal e o olhar das meninas mais velhas e das mulheres está sobre ele, isso não é explorado.  Meu marido até brincou que poderia ter uma cena de camisa molhada (*Ele comparou Colin Farrel com Colin Firth e quase apanhou por conta dessa heresia*).  Nada, nenhum estímulo é oferecido, mesmo que ele pudesse fazer diferença para o andamento da história.   Tentar tirar o sexo, se preocupar com questões como pedofilia, algo que efetivamente não estava em questão em 1971, reduziram e muito a força do filme.

Edwina se entrega à McBurney bem depois do que no filme de 1971.
O filme novo toma partido das mulheres, e isso não fez bem à película.  Elimina-se a dúvida em relação ao acidente na escada.  Miss Martha fez o que fez, porque era necessário, ou por vingança?  Em 1971, não havia dúvidas, foi de propósito.  Em 2017, apesar de toda frustração e desejo reprimido, pendemos mais para o lado do ela queria salvar a vida dele.  Da mesma forma, McBurney enfurecido maltrata Amy, a menininha que o salvara, é violento com ela. Lembro que na versão de 1971, quando Eastwood lança a tartaruga da menina contra a parede, ele prontamente se desculpa, pede perdão.  Na versão atual, ele não tem remorso.  

O homem é uma ameaça e precisa ser eliminado.  Só Edwina não percebe isso.  Está apaixonada, mas o filme sequer mostra as conversas entre os dois, a relação que se constrói, o perdão da traição, mesmo a competição das meninas.  É triste ver que o roteiro eliminou isso, quando se poderia reforçar sororidade sem esconder as rivalidades e mesquinharias tão humanas.  Mesmo as pequenas vinganças, tudo sumiu.  Só o fato de McBurney ser violento, uma ameça, já poderia justificar o rearranjo de forças, a união das meninas e da diretora no final.  

A única personagem negra do original foi cortada.
Enfim, um grande filme precisa de roteiro e isso é o ponto fraco desse novo O Estranho que Nós Amamos.  Cumpre a Bechdel Rule, é centrado nas mulheres, está sendo celebrado como feminista, tem o mérito da direção feminina, porém, é fraco onde precisava ser forte, onde o filme de 1971 não falhou, ainda que não gostemos de certos temas.  E, pior, parece corrido, quando poderia trabalhar de forma bem mais inteligente uma série de outros temas.

Além disso, o filme eliminou a única personagem negra, uma escrava da casa que também caiu sob o encanto do McBurney de Eastwood.  Ela estava no livro.  O argumento de Copolla, que não queria que aquela representação triste dos afro-americanos estivesse no filme, não é só whitewashing é apagar o principal motivo para aquela guerra fratricida, a questão da escravidão.  Melhor não ter nenhum negro, então, deve ser a lógica, daí a presença do branco nas roupas, nas pessoas, criando uma atmosfera estranha. Outra coisa, a Edwina do livro é mestiça.  A do filme de 1971, não era.  Poderiam corrigir em 2017, mas deixaram como estava.  É por essas e outras coisas que eu sei que o filme de 1971 foi a maior referência e, pelo menos aos meus olhos, continua sendo melhor filme, mesmo mais sujo, mesmo com uma abordagem machista, porque, bem, ele contava melhor uma história que deveria ser tensa, angustiante e não foi o suficiente.


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