domingo, 25 de fevereiro de 2018

Muito Além do Mangá: Comentando A Morte de Stalin (La Mort de Staline)


Faz umas duas semanas que terminei de ler A Morte de Stalin (La Mort de Staline), de Fabien Nury e Thierry Robin, publicada no Brasil pela editora Três Estrelas.  Foi uma leitura rápida, quer dizer, não tanto, mas depois de começar a ler não houve jeito de parar.  Achei que mesmo não sendo um quadrinho centrado em mulheres, seria interessante resenha-lo para engrossar a seção “Muito Além do Mangá”, na verdade, ele pode fazer par com Bando de Dois, uma graphic novel brasileira sobre cangaço, que resenhei alguns anos atrás.  Quer dizer, não é sobre mulheres, mas quem detona toda a situação, isto é, o AVC sofrido por Stálin, é uma mulher, a pianista Maria Yudina, uma das maiores pianistas de sua época e favorita de Stálin.

Nossa história começa em 28 de fevereiro de 1953, uma orquestra toca o Concerto para Piano nº 23 de Mozart na Rádio do Povo.   O telefone toca na diretoria da emissora e uma ordem partida do próprio Stálin solicita a gravação do concerto.  O ditador havia adorado.   Pânico geral, ninguém havia gravado.  Músicos são retidos e lhes é exigido que toquem de novo, de forma idêntica, para que Stálin não descubra o engodo.  A pianista, Maria Yudina, peça fundamental para a gravação, se recusa.  Depois de muita insistência, ela aceita, mas o maestro tem uma síncope e desmaia, outro é chamado.  Gravação feita, a pianista, cuja família tinha sido mandada para a prisão por Stálin, escreve um bilhete e o coloca dentro da capa do LP.  Ninguém tem coragem de retirá-lo.  Stálin lê e tem um AVC.
A pianista detona todo o drama.
Beria e Malenkov, as duas figuras mais próximas de Stálin, são chamados, mas se recusam a mobilizar serviço médico.  E se Stálin acordar?  E se o grande líder se aborrecer? Beria imagina, também, que pode ser sua chance de chegar ao topo.  Stálin não se recupera e, 12 horas depois, uma equipe médica é mobilizada.  Diante da morte certa do ditador, o Politiburo começa a se organizar para saber quem seria o herdeiro de tamanho poder.  Beria acredita que será ele e manobra para neutralizar seus opositores, especialmente, Nikita Khrushchev, que conta com o apoio de ninguém menos do que o General Zhukov, herói da II Guerra.  A partir daí, é uma corrida que Beria acredita já ter vencido.  Mas há questões mundanas a resolver, como manter o filho e a filha do ditador morto sob controle enquanto participam do espetáculo que serão os funerais de seu pai.

Lembro que quando me passaram uma review do lançamento, lá de 2015, não me interessei, mas meu marido folheou o álbum em uma livraria e comentou comigo que parecia valer a pena.  Estava disposta a comprar, quando assisti o trailer do filme franco-britânico A Morte de Stálin.  Me empolguei, mas aviso uma coisa, o quadrinho não tem nada do tom cômico que o filme parece ter abraçado.  É denso, é sinistro, é como uma história sobre mafiosos muito perigosos e se há algum humor, é nigérrimo.   De qualquer forma, o quadrinho é muito bom e historicamente possível, mesmo tomando algumas liberdades com os fatos, afinal, trata-se de uma obra de ficção.

O Politiburo.
A Morte de Stálin consegue transmitir de forma eficaz o terror que Stálin inspirava tanto em seu círculo interno, quanto no povo em geral, no entanto, não consegue mostrar de forma tão satisfatória a veneração, que a propaganda insistente e a vitória na II Guerra Mundial também inspiravam.  É complicado começar pela crítica, mas um dos poucos pontos baixos do álbum é exatamente a sequência dos funerais de Stálin, da participação do povo.  Houve pânico, houve comoção, mas não militares atirando em seus compatriotas.  Mesmo que desgostemos de Stálin – e os autores não deixam dúvida de sua posição – é preciso perceber a grandeza da figura do ditador, das fidelidades que inspirava.

Falando em fidelidades, uma das figuras mais interessantes do quadrinho é Molotov, aquele que assinou o pacto de não-agressão e cooperação econômica com a Alemanha Nazista.  Um político da velha guarda, um dos poucos sobreviventes da Revolução Russa, ele finalmente tinha caído em desgraça com Stálin.  Iria ser preso, sem dúvida, mas a morte do ditador o salva.  Beria – que tinha dedo nessa história – barganha o apoio de Molotov libertando a esposa dele, Polina Zhemchuzhina.  Apresentada somente como a esposa de Molotov que havia sido mandada para um Gulag, Polina era uma das mulheres mais importantes da política soviética, um campo dominado por homens, mas, sim, para os autores ela é somente a moeda de troca com Beria.  

Quem será o sucessor de Stálin?
Só que Molotov é responsável pelo plot twist da história que garante que Khrushchev vire a mesa sobre Beria.  Fosse ele uma raposa, ou não, e deveria ser, ou teria sido eliminado, ele e a esposa parecem ter continuado fiéis à figura de Stálin, do tipo que não acreditam que ele tenha sido o criminoso que foi, ou, talvez, que tenha feito tudo o que fez, porque era necessário.  Há gente desse tipo por aí até hoje.  Já ouvi a frase “Stálin matou pouco” algumas vezes e, raramente, era piada.  De resto, chegamos até Beria, o vilão da nossa história.

Primeira coisa, já tinha uma imagem montada de Beria antes do quadrinho.  Assassino, conspirador e estuprador, até pouco tempo atrás estavam desenterrando corpos de mulheres, a maioria adolescentes, da antiga residência de Beria.  Não tenho simpatia por Stálin, mas acredito – e é crença mesmo – que Beria deveria ser o instigador maior dos crimes do ditador, sussurrando nomes de gente para ser exterminada.  Em sua primeira cena no quadrinho, Beria está estuprando uma mulher.  Em a Morte de Stalin, o desenhista, Thierry Robin, imprime nele uma aparência simiesca.  Olhinhos pequenos, um ar de conspirador, sempre tramando e acreditando-se um ou mais passos a frente de seus inimigos, especialmente, Khrushchev.

Beria acreditava ter ganho o jogo.
O quadrinho pinta o Politiburo como uma máfia, todos os membros do grupo tem uma aparência distorcida e é interessante ver os estudos feitos em cima das fotos.  Os autores falam que todos deveriam ser diferente e reconhecíveis.  Acredito que salvo por Khrushchev, todas as personagens atingiram o objetivo.  Enfim,  Beria crê controlar Malienkov, o segundo em comando, mas a dinâmica do Politiburo, a astúcia e crueldade de Molotov, colocaram em cheque os planos do vilão.  Só que há um aspecto curioso, apesar de descrevê-lo como a segunda pessoa mais terrível do quadrinho, o primeiro, claro, seria Stálin, os autores deram para Beria uma certa dignidade que ele não teve, especialmente, em seus últimos momentos.

Beria e alguns de seus aliados foram condenados à morte e executados.  Segundo os relatos, Beria teria implorado por sua vida, suplicado, berrado, chorado.  O Beria do quadrinho é frio, racional, e segue impávido para a sua morte.  Não um tiro na testa, como ficou registrado, mas um pelotão de fuzilamento completo.  Os autores também assumem a defesa de que Beria era horroroso, ele é o vilão da história, afinal, mas não poderia ser responsável por tudo o que tentaram jogar em suas costas.  Daí, a tese de que os membros do conselho, o Politiburo, fizeram com que Beria entrasse para a História oficial como o grande vilão, como uma forma de limpar-lhes o nome. O historiador francês, Jean-Jacques Marie, corrobora essa ideia.  Nunca li nada dele, mas ele é trotskista, então, é preciso dar um desconto, também.  Tenho um livro dele sobre a Guerra Civil Russa (1917-22) aqui em casa.

Beria liberta Polina.
Já caminhando para o fim, os filhos de Stálin são as personagens que recebem mais atenção dos autores para além dos membros do Politiburo.  Vasily Stalin, o segundo filho de Stálin (*o mais velho tinha morrido na II Guerra*), é pintado como um playboy que só tinha chegado a general por ser filho do ditador.  Acredito que a segunda parte, a ascensão rápida é verdadeira, a parte playboy inconsequente, nem tanto.  A reunião pública com a imprensa estrangeira, um ato de extrema coragem (*ou fruto do excesso de álcool mesmo*), foi muito exagerada, ainda que Vasily tenha sido acusado de revelar segredos de Estado para diplomatas estrangeiros.  Ao contrário do que fizeram com Beria, que tem sua culpa redistribuída entre os outros membros do Politiburo, os autores dão para Vasily uma dimensão maior do que ele teria.

E Stálin tinha uma filha, Svetlana, e o quadrinho pinta a relação entre os dois como péssima com o pai humilhando a filha.  Realmente, não tenho informação sobre isso, tudo o que li aponta para um relacionamento relativamente normal entre pai e filha.  Há até o relato em que Stálin teria perguntado onde estava sua filha e que teria sido informado que Svetlana, na época uma adolescente, estaria visitando a esposa de Beria.  Ao saber que a filha estava na casa do ministro, cuja fama já comentei, ele teria berrado que mandassem chamá-la imediatamente.  Agora, levem em conta que não deveria ser fácil ser filha ou filho de Stálin.  

Ensaio geral do velório.
De qualquer forma, o caso de amor frustrado de Svetlana relatado no quadrinho ocorreu, mas o que os autores esqueceram de pontuar é que ela tinha 16 anos e o sujeito uns 40.  Stálin não gostou nada de saber dessa história, reagiu com o jeitinho carinhoso que lhe era peculiar, mas acredito que poucos pais, ou mães, teriam tolerância com um relacionamento desses, enfim... Svetlana chocou o mundo ao pedir asilo político nos EUA, em 1967.  Ela era esposa de um diplomata, estava na Índia, e simplesmente atravessou a rua.  E, bem, quem negaria asilo para a filha de Stálin?

Cabe elogiar a edição nacional.  O formato grande, capa, papel e impressão de boa qualidade.  Além do álbum em si, vários extras como entrevista com os autores e o historiador que citei, os estudos de arte, páginas do projeto de biografia de Stálin de Thierry Rodin.  Acima da média e vale os 50 reais que é cobrado na maioria das livrarias. Para quem se interessar, deixo o link para compra no Amazon, o Shoujo Café participa do programa de associados, mas na Saraiva e nas Americanas está pelo mesmo preço. Quando comprei, estava por 20 reais, agora, o preço é 30,90.  É um título que pode interessar para muita gente, especialmente, quem gosta de ficção histórica ou sobre mafiosos. 

Embalsamando o grande líder.
Concluindo, A Morte de Stálin foi publicado originalmente pela editora francesa Dargaud em dois volumes, Agonie (2010) e Funérailles (2012).  Foi republicada em 2014 em um volume único, a edição brasileira deve se pautar por esta publicação.  Recebeu uma série de prêmios: DBD Award (Les Dossiers de la bande dessinée), Melhor Roteiro, 2010; Prêmio Historia (*dado pela revista de mesmo nome*), melhor álbum, 2010; Prêmio Saint-Michel (Bruxelas), melhor álbum, 2012; melhor Graphic Novel Histórica, BD Boum Festival (França), 2012.  É uma boa leitura, especialmente, para os interessados em ficção histórica.  Aí embaixo está o trailer par ao filme, que, bem, parece se desviar bastante do original:

2 pessoas comentaram:

Ficou marcado em muitos dos figurões soviéticos da época que, ao ser trazida de volta do gulag para onde Stalin a mandara, a esposa de Molotov logo começou a defender a memória do falecido ditador (consta que ela desmaiou quando a contaram que ele havia morrido!). Ela havia sentido na pele a crueldade de Stalin mais do que qualquer um dos outros dirigentes - e essa persistente lealdade os surpreendeu.

Eu sei disso. Mas nem foi tão difícil, basta culpar Beria e está tudo bem. E Molotov e Polina dividiram AP com Stálin e a segunda esposa, havia um certo grau de amizade entre eles.

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