quinta-feira, 5 de abril de 2018

Comentando Preenchendo o Vazio (Fill in the Void, 2012)


No fim de semana, assisti ao filme israelense Fill the Void (למלא את החלל‎ - lemale et ha'ḥalal), Preenchendo o Vazio, em português.  Cheguei até ele por acaso.  Estava montando a resenha de Maria Madalena, daí, quando fui ver a bio da atriz que faz Maria, mãe de Jesus, Irit Sheleg, acabei assistindo ao trailer deste filme.  Gostei.  Fui procurar informações, Fill in the Void tinha recebido prêmios e indicações, e todas as resenhas normalmente apontavam que o filme lembrava a obra de Jane Austen (*Ex.: 1 - 2 - 3 - 4*).  OK, já que estamos no embalo das adaptações de Jane Austen, a isca estava jogada, acabei assistindo e gostei bastante.

A história do filme é a seguinte, Shira Mendelman (Hadas Yaron) é uma adolescente de 18 anos e faz parte de uma família haredin (*ultra-ortodoxa*) que mora em Tel-Aviv.  A jovem já tem um noivo escolhido, que lhe é apontado de longe pela mãe no supermercado, e está ansiosa pelo seu futuro, casar, ter filhos, essas coisas “normais”.  Na festa do Purim, sua irmã, Esther (Renana Raz), que está nos últimos dias de gravidez, vem com o marido Yochay (Yiftach Klein), passar o feriado com a família.  Só que Esther se sente mal e termina morrendo.  O bebezinho, que recebe o nome de Mordechai, sobrevive e fica tempo considerável com os avós maternos e a jovem tia.  As semanas passam, mas o luto permanece, assim como as esperanças de futuro depositados no menininho, só que a comunidade começa a planejar o novo casamento de Yochay e a noiva escolhida é uma viúva que mora na Bélgica.  

Esther (centro) parecia saudável,
mas a tragédia se abate sobre a família.
Diante da possibilidade de perder o neto, Rivka (Irit Sheleg), mãe de Shira, decide investir em um plano que poderá ser satisfatório para todos, casar a menina com o cunhado, mantendo Mordechai em Israel.  À princípio, Yochay recusa, afinal, ele via Shira como uma criança, a irmãzinha de sua esposa, mas com a sugestão, ele passa a observar a moça e os sentimentos começam a se transformar... No fim das contas, caberá à adolescente decidir se aceita, ou não, o arranjo e, mais ainda, se o faz por ter sentimentos pelo cunhado, ou por dever familiar.

Descrevi o drama central de Fill in the Void, mas há outras questões na história, especialmente, se pensarmos nas personagens femininas, que são as mais importantes da película.  Depois de assistir ao filme, descobri que ele foi dirigido e escrito por uma mulher, Rama Burshtein, ela mesma uma ultra-ortodoxa.  Burstein trouxe não somente um olhar feminino para o drama, que é sério, sim, mas, também, o olhar de dentro da comunidade religiosa.  Não lembro de ter assistido outro filme com essas características.  Daí, depois de ter refletido um pouco, entendi as referências à Jane Austen nas resenhas.  Não se trata somente dos diálogos, algo em que a britânica era mestra, ou no humor muito sutil e na crítica dos usos e costumes de seu tempo, mas é o olhar de dentro para dentro.  Vou explicar, aguardem.

Sempre espreitando por trás das cortinas.
Uma das críticas que alguns fazem à Austen é que ela fala de seu grupo social e somente dele.  Praticamente não temos classes se misturando em seus livros.  Se acontece, é algo periférico, ou a personagem estranha ao círculo social da autora, uma Fanny de Mansfield Park, por exemplo, se vê envolvida por ele, tal e qual uma refém, ela não tem escolha.  Austen também é pródiga em detalhes quando no seu elemento – casas da pequena nobreza, dos clérigos, como seu pai – e nem tanto quando, por necessidade, ela precisa sair de sua zona de conforto.  Em Fill in the Void, apesar de estarmos em Tel-Aviv, vemos quase nada da cidade cosmopolita e moderna.  O que observamos em detalhes é a comunidade hassídica das personagens, gente “moderna” aparece no pano de fundo, sem falas, estão somente compondo o ambiente.  Tudo é para dentro e, ainda assim, o resultado é muito rico.

Por princípio, não tenho simpatia por comunidades religiosas radicais, caso dos ultra-ortodoxos em seus múltiplos matizes, e, na minha vida inteira, acredito vi três filmes que retratavam comunidades hassídicas modernas (*Yentl, O Violinista no Telhado, não contam*), mas os tais filmes sempre estavam comparando o grupo com o mundo secular, seja para criticá-lo, seja para exaltá-lo.  Conheci os judeus ultra-ortodoxos em um filme, o primeiro que vi sobre eles, chamado Uma Estranha entre Nós (A Stranger Among Us).  Nele, a protagonista, Melanie Griffith, é uma policial que, para resolver um caso de homicídio, tem que se infiltrar em uma comunidade hassídica de Nova York.  

O que mais esses homens fazem é comer, rezar e cantar.
Logo de saída ela é avisada que ninguém naquela singela comunidade seria capaz de cometer um crime, ainda mais tão brutal, daí, o título do filme e, sim, de certa forma, ela comprova isso, como bônus, sai espiritualmente transformada do processo.  Eu gosto do filme, tem um dos momentos de tensão sexual mais eróticos que eu já vi, Fill in the Void tem um também, segue a mesma linha.  Voltando, Uma Estranha entre Nós é um filme complacente e elogioso em relação aos ultra-ortodoxos e seus costumes.  Se você se interessou, pode assistir ao filme aqui.

O segundo filme que vi sobre os haredin é israelense e do renomado Amos Gitai. Kadosh - Abençoados (Kadosh) é uma crítica tocante à condição de inferioridade das mulheres nessas comunidades religiosas.  Ele já abre com um sujeito orando e agradecendo por não ter nascido mulher, algo que todo ultra-ortodoxo faz diariamente.  Kadosh trata do drama de duas irmãs, a mais nova, que quer escapar do ambiente repressor em que nasceu, e a mais velha, casada com o filho do rabino chefe e motivo único para que a primeira não vá embora.  A irmã mais velha é acusada de esterilidade, apesar de seus exames serem normais, enquanto o marido, que a ama, que é um sujeito legal, sequer pode checar se é  ele que não pode ter filhos, é impensável.  Handmaid’s Tale feelings?  Pois é... 

Yochay acredita que Shira é a melhor
pessoa para cuidar de seu filho.
A mais nova acaba, por pressão da comunidade e da mãe, se casando com o fanático religioso que abriu o filme e as coisas não terminam bem... A irmã mais velha é repudiada pelo marido (*ele é obrigado pelo pai*) e cai em depressão profunda.  E há ainda o moço que a mais nova ama e foge para ver de vez em quando, que era da comunidade e foi expulso, porque quis servir ao exército do seu país e os ultra-ortodoxos tem isenção e, na maioria dos casos, consideram inadmissível terem qualquer outra carreira que não seja estudante da Torá.  Tem o  filme aqui, caso você queira assistir.

E há um terceiro filme, outra película norte americana, que quando foi lançado, foi festejadíssimo em certos círculos, porque mostrava a amizade entre uma judia ultra-ortodoxa e uma muçulmana.  Lindo, não é mesmo?  Alguém que me Ame de Verdade (Arranged) tem como protagonistas duas professoras primárias, ambas pressionadas pelas suas respectivas comunidades a se casarem, a judia mais que a muçulmana, aliás.  OK, mas qual o problema desse filme?  A todo tempo ele faz o contraste entre a vida religiosa da comunidade, que pratica os tais casamentos arranjados do título original, e como o mundo secular é horroroso.  Começando pela irmã (*ou prima*) da moça judia que saiu da comunidade, escolheu com quem casar, e vive uma vida miserável com um marido detestável.  E, além disso, se há uma vilã no filme é a diretora feminista da escola na qual as moças trabalham.  Imagina!  Querer escolher o que ser, como viver, como se vestir!  Horror!  Horror!  Mas querem um detalhe?  Cada vez mais crescem os divórcios dentro dessas comunidades ultra-ortodoxas.  Postei uma matéria sobre isso dia desses.  Ou seja, esse mundo perfeitinho não existe, salvo para criticar as feministas.  Sim, eu odeio esse filme.  Quer assistir?  Está aqui.

Um homem não pode ficar sem esposa, especialmente,
quando há uma criança envolvida.
E voltamos para Fill in the Void, o que esse filme tem de especial?  Ele não critica, ele não compara, ele mostra o drama das personagens sem se preocupar com o resto do mundo.  É uma comunidade com costumes e práticas muito próprias, a gente percebe isso, mas o que importa é contar a história daquelas personagens tentando superar o luto e, de certa forma, a culpa.  O viúvo, que é o ator mais bonito do filme, era um marido amoroso e devotado, ele sofre com seu luto, com a experiência de ser pai sozinho em uma comunidade que não aceita esse tipo de situação.  No início, ele recusa a proposta da sogra, mas na sua tentativa de fuga, ele termina vendo Shira com outros olhos e parece, sim, se apaixonar por ela.  Algo que ele mesmo não esperava.  Daí, quando a moça titubeia, tenta se afastar, tenta atirá-lo para a amiga (*ou prima*) solteirona, ele se magoa muito.

Há a tia (Razia Israeli), que é deficiente física, que nunca se casou por causa disso, mas diz com orgulho que rejeitou pelo menos um noivo (*Será?*), ela lembra muito as matronas de Jane Austen.  A tia parece satisfeita com sua condição e cobre a cabeça como se fosse casada – algumas judias ortodoxas e todas as ultra-ortodoxas o fazem – por conselho do rabino-chefe.  Afinal, para que atrair comentários e perguntas indesejáveis?  Ela alerta a mãe de Shira, Rivka de algo que ela se recusa a ver, a diferença de idade entre Yochay e Shira.  

O momento em que Rivka tem a ideia.
Dentro das comunidades ultra-ortodoxas tanto os homens, quanto as mulheres, se casam muito jovens.  Normalmente, a diferença de idade entre eles, quando existe, é pequena.  Todos os candidatos à noivo de Shira são adolescentes como ela (*e feinhos, coitados...*), é a ideia de que devem começar juntos a vida e, quanto mais cedo, melhor.  Um casamento com um homem mais velho – Shira parece ser bem mais nova que a irmã que faleceu – não seria privar a moça de uma casamento mais equilibrado?  De uma relação saudávell?  Obviamente, se você assiste ao filme, vai ver que a tia solteirona está tentando, também, manobrar para que Freida (Hila Feldman), a tal sobrinha, ou amiga, que nunca é pedida em casamento, consiga desencalhar.  

Freida chora toda vez que vê uma amiga, ou parenta, ter seu noivado encaminhado.  Apesar de jovem, prendada, bonita até, ela está sendo deixada de lado.  Há uma tentativa da parte dela e da tia deficiente de afirmarem que a vida de uma mulher é mais que um casamento, mas como nenhuma mulher no filme é mostrada fazendo outra coisa a não ser esperar marido ou arranjá-lo para alguém, é difícil se convencer disso.  Ou você se casa, ou você se casa.  Simples assim.  

Freida eventualmente consegue um marido. 
Ele é velho, é viúvo, mas é um marido.
Em Fill in the Void, até tirando pela cena da distribuição de dinheiro no Purim, todos parecem se ricos, ou muito bem de vida.  Ainda assim, além do casamento, o cuidado da casa aparece como central para as mulheres.  Shira sabe que terá que cuidar de sua casa, lavar, cozinhar, limpar.  Não há empregados domésticos visíveis e a mãe de Shira, que via de regra está arrumadíssima, aparece lavando louça e cozinhando.  Assim, não sei como alguém mantém tanta elegância fazendo todo o serviço de casa e, eventualmente, cuidando do neto.  Shira até é mostrada em uma escola para meninas tocando acordeão.  

Não fica claro se ela ainda é estudante, ou se é um emprego, mas a cena dela tocando para as menininhas dançarem e, de repente, aparecendo uma mulher para lhe dar os pêsames ritualmente (*a mulher estava viajando quando da morte de Esther*) é uma das mais tocantes do filme.  A protagonista se perde na música e passa a tocar algo triste, uma melodia absolutamente inadequada ao tempo e lugar, mas totalmente de acordo com o luto e a angústia que vai dentro dela..  Hadas Yaron, que interpreta Shira, é muito competente.  Ela consegue passar todo o turbilhão de sentimentos, dúvidas e medos que agitam a personagem que é pouco mais que uma menina.  

Indo se aconselhar com o rabino-chefe.
Shira que era a caçula, vivia uma existência calma e sem atropelos, e, por força das circunstâncias, é alçada a centro das atenções de toda a família e mesmo da comunidade, seus pais (*especialmente o pai*) não querem forçá-la a nada, mas, ainda assim, ela se sente constrangida.  A tia, tal e qual Lady Russell (de Persuasão) ,quer convencê-la de que casar com o cunhado não é uma boa ideia e há Yochay e toda a tensão sexual que começa a se acumular.  Sim, ninguém se toca, ninguém se beija, vemos pouquíssima pele, homens e mulheres mal se aproximam, mas há uma boa quantidade de erotismo nesse filme.

E o que Shira decide?  Assista ao filme.  Se você desconfia que ela irá aceitar o cunhado, há todo o como ela chegará à cerimônia para acompanhar.  O filme cumpre a Bechdel Rule, mas não é um filme feminista, na medida em que ele não é crítico ao sistema em nenhum momento.  E quando se questiona o casamento por dever, pois Rabino-chefe não aceita as desculpas esfarrapadas de Shira para aceitar o casamento, defendendo que se deve casar por sentimento, a gente vê bem em tela a carga de pressão para que uma mulher se case.  Imagino que não seria muito bem vista a moça que decidisse noivar – e curiosamente, nesta comunidade específica, há espaço para encontros e conversas privadas com os pretendentes – e romper noivados por não desenvolver sentimentos pelo noivo.

As indecisões e medo de Shira, magoam Yochay.
É isso.  Trata-se de um bom filme, quase uma experiência antropológica, com um elenco muito bom, destaque para Hadas Yaron, mas outros membros do elenco não ficam muito atrás, especialmente o bonito (*jogue o nome dele no Google, se não acredita*) Yiftach Klein.  Agora, apesar do filme atrair empatia, simpatia, até, trata-se de um ambiente extremamente repressivo.  E não importa quanto se cante ou dance – parece que os homens cantam e dançam muito – a vida das mulheres parece ser claustrofóbica, sempre à espreita por trás de cortinas, sempre sentadas em um cômodo à parte, sempre esperando que se chegue sua hora de ir ao altar.  E se quiser ler o comentário de uma cena específica, que será um grande spoiler, que eu considerei bem perturbadora, pule para depois do trailer.


Se você está aqui, não se importa com spoiler, ou viu o filme.  Enfim, Shira se casa com Yochay e eu fui levada a ver seu casamento como um ato de amor, mais do que dever.  Há toda uma química entre eles.  Agora, depois de todas as idas e vindas, causadas pela compreensível indecisão, culpa e medo de Shira, eles parecem se entender.  Vemos toda a cerimônia ultra-ortodoxa e, bem, a última cena do filme é quando os dois, finalmente, podem ficar sozinhos.  Não há mãe sentada na mesinha ao lado de fora, nem ninguém os observando.  O que temos então?  O noivo começa a se despir e há muita coisa pra tirar.  Aliás, em A Estranha entre Nós, o jovem rabino que tem uma recaída, tem tempo suficiente para se arrepender, porque é tanta roupa para retirar que ele consegue fugir da tentação... Voltando, a câmera segue para a mocinha, ela está na parede, como acuada, seu olhar é de desconforto e medo, ela engole seco, não há nenhuma sombra de desejo, ou felicidade, só apreensão e aparente desconforto.  

Shira se casou por amor, ou por dever?
Todo o meu encanto pelo filme congelou e eu fiquei me perguntando, afinal, qual a mensagem?  Tratava-se do medo de uma adolescente que, pela primeira vez, estava só com um homem que não era da sua família? Medo do sexo, que a depender de como é encaminhado, pode ser um estupro?  Medo enfim foi o que eu vi.  Mas parem e pensem no quanto esses casamentos arranjados, ainda que culturalmente compreensíveis, podem representar um choque, especialmente para a mulher que, de uma hora para a outra, passa para a tutela de alguém que terá, inclusive, acesso ao seu corpo.  Enfim, não sei se quem foi a ideia, mas todo o romantismo do momento foi dissolvido pelo olhar aterrorizado de Hadas Yaron.  E esse olhar, esse medo, eu não imaginaria nas mulheres de Jane Austen, foi um final bem perturbador para o filme. 

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