sábado, 12 de maio de 2018

Post Aleatório do Dia: As Angustias de uma Medievalista Aposentada

Gustave Doré (1832 -1883) representando
a prima nocte no século XV.
Sou medievalista de formação, já escrevi isso no Shoujo Café.  Aposentada, porque não tenho projeto de pesquisa na área, não estou na Universidade e, no trabalho, leciono História Contemporânea.   Ossos do ofício.  Este post nasceu de uma discussão com meu marido ontem e acredito que devesse vir para cá como forma de arquivo, porque encontrar no Facebook depois será complicado.  Pois bem, é difícil quando as pessoas não entendem que livros escritos por não especialistas em Idade Média tendem a usar clichês absurdos sobre o período sem pensar duas vezes. Não somente livros, mas filmes e seriados. Por exemplo, a novela porcaria (*não é porcaria por ser novela, é porcaria por ser ruim mesmo*), Deus Salve o Rei, é chamada de medieval o tempo inteiro, foi vendida assim, e de medieval tem muito pouco.  Esse tipo de produto, que costumo chamar de pseudo-medieval, faz um grande sucesso em nossos dias.  

Clichês e (pre)conceitos não são ancorados em pesquisa, são mera reiteração de idéias familiares ao grande público, com as raízes fincadas no senso comum. E, como é de conhecimento geral, todo mundo sabe História, a gente que vai para a faculdade está perdendo tempo e se desgastando à toa.  Agora, se, um dia, a historiografia os reproduziu, a coisa pode seguir dentro de textos acadêmicos como uma espécie de eco, sem questionamento, sem contraponto; agora, quando a própria historiografia já os derrubou, eles são repetidos pela ignorância, ou propositalmente, afinal, essas ideias podem envolver reforço de papéis sociais e de gênero, algum arranjo de poder que seja interessante para quem utiliza as idéias que já foram contestadas pelos especialistas.  

Franciszek Żmurko (1859-1910), Jus Primae Noctis, 1892.
Por exemplo, como especialista em estudos feministas e de gênero, eu sei que são particularmente agradáveis ao patriarcado (*e mesmo para alguns segmentos que o querem derrubar*) dentro e fora da universidade a repetição de idéias de que as mulheres - todas elas - eram sempre vítimas, que estavam sempre na condição de objeto, subordinadas, sem autonomia, sem direito de escolha até que, no século XX, as coisas mudaram.  Para alguns, para melhor, afinal, agora, nós, mulheres, podemos ser livres; para outros, se trata de uma quebra de contrato social daninho à civilização ocidental, ou mesmo, vejam só, para uma ordem natural das relações entre homens e mulheres.

O problema é que, diferente de outras épocas, ou temas, Idade Média parece ser aquele período da História - só uns mil anos (*segundo um Jacques Le Goff, muito mais*) de uma diversidade absurda  de arranjos sociais - que todo mundo conhece e todo mundo sabe que era ruim, sujo, marcado pela ignorância, pela violência e pelo desmando da Igreja Católica. Aliás, o mesmo tipo de pessoa que acredita que a Igreja Católica podia tudo, quando convém defende a ideia de que Idade Média era um vale tudo em termos de violência, especialmente, sexual. Ah, sim! E só há Europa na cabeça desse povo e quando a criatura se acha muito ilustrada, tende a acreditar que fora da Europa era paraíso na Terra (*Oh, aquela exaltação do Mundo Árabe-Muçulmano!  E do Japão quase ninguém lembra...*) , ou um inferno, talvez... Ou nem pensa, o que é muito comum, também.

Me espanta muito ver Coração Valente entre os melhores
 filmes históricos, ainda que, como filme, seja um
grande espetáculo.  Percebem a diferença?
Este texto nasceu por causa da tal prima nocte (jus primae noctis, Droit du seigneur) que meu marido leu que existia, que entregar sua noiva na primeira noite de núpcias ao seu senhor, era um dever normal do servo, em uma enciclopédia de educação sexual que deve ter sido escrita nos anos 1960, início dos anos 1970. Quem escreveu era especialista em Idade Média, ou tinha pesquisado a questão à fundo? DU-VI-DO! E a discussão se originou de uma  famigerada lista da revista Aventuras na História (*Os 10 melhores filmes históricos, segundo os historiadores*) que colocava Coração Valente, filme que já foi detonado em um número absurdo de artigos acadêmicos e sites especializados, como um dos melhores filmes históricos de todos os tempos.  Argumento principal?  Ganhou DEZ OSCAR!  É a mesma lógica de dizer que O Outro Lado do Paraíso é uma novela maravilhosa, porque, bem, terminou com pico de 48% de audiência

Já disse que odeio listas, não é mesmo? Pois é... Só explicando meu ponto de vista, um filme pode ser ótimo e pode não ser um bom filme histórico; um filme histórico pode ser todo certinho e ser péssimo como cinema, pode ser chato, sem graça, pretensioso.  Nesse caso, as duas coisas precisam andar juntas, ainda que algumas liberdades históricas precisem e possam ser tomadas.  É preciso entender, também, que um filme normalmente fala mais do momento em que foi produzido do que do momento que julga retratar.  Aliás, isso vale para qualquer produto da indústria cultural, quadrinho, novela, seriado, bestseller.  Estou produzindo um texto sobre Sinhá Moça e pontuando isso, como a versão de 2006 reduziu situações que poderiam ser consideradas machistas e estavam na primeira adaptação de 1986, mas que, efetivamente, faziam sentido se o objetivo era retratar o século XIX.  Veja as contradições...  Agora, outro ponto da tal lista, é que ela foi  montada com base na opinião de 5 ou 6 historiadores homens, porque não deve ter nenhuma mulher lecionando nas universidades públicas para opinar...  Mas essa seria outra discussão... Não vou entrar nela.

Vasily Polenov (1844-1927), Le Droit du Seigneur, 1873.
Enfim, essa história de prima nocte como dever feudal é uma invenção dos críticos da Idade Média, se vigorou em algum lugar, foi coisa de algum senhor abusivo, poderoso o suficiente para impor tal desmando.  O fato é que esse "direito" nunca foi algo consolidado e muito menos reconhecido dentro dos códigos jurídicos da época, ainda mais em meios cristãos, menos ainda quando o sistema feudal estava em sua maturidade (*séculos XI-XIII*) e vigor, que bate exatamente com o momento em que a Igreja Católica mais atuou legislando e, quando podia, regulando as relações matrimoniais e sexuais. Isso quer dizer que as pessoas eram certinhas e não descumpriam as regras?  Não.  Isso quer dizer que a depender de quem você fosse e se lhe pegassem, poderia dar uma dor de cabeça enorme.  E isso valia para gente comum e poderia valer para reis e imperadores, também.  Trocar de esposa, por exemplo, poderia ser uma missão impossível se você pegasse um papa meio enviesado de frente, ou a família dela fosse muito poderosa, ou sua situação não fosse de muita força.  Era mais fácil tomar uma amante e pagar penitência...   

No mais, a difusão da ideia de que um senhor teria direito à primeira noite de TODAS as moças que casavam em seu feudo, parece fantasia de tarado, sabe, aquelas coisas que a gente vê em literatura pornográfica? E a história ganha corpo no século XVIII (*sua primeira menção é do século XVI*), quando a literatura pornográfica difamatória floresceu absurdamente, quando Maria Antonieta foi infamada em panfletos e pintada como um monstro cheio de luxúria, foi o século do Marquês de Sade etc.  Só para reforçar, literatura pornográfica circula faz séculos, ainda que muita gente acredite que é coisa nova.  No geral, com algumas exceções, as mulheres, nesse tipo de literatura, são objetos e nunca agentes ou senhoras de seu prazer, ainda que pareçam ser. 

O Senhor da Guerra, a provável fonte de informação 
de muita gente sobre a prima nocte  antes de Coração Valente,  
é um grande filme e que trabalha bem com essa ideia.
Senhor feudal quer se valer desse "costume antigo", 
porque gostou de uma camponesa?  OK, mas tem que 
cumprir as regras e  devolver a moça.  
Não devolveu?  Vai dar m****.  Sim, a sociedade
feudal tinha regras, mesmo o senhor deveria cumpri-las
 e isso é o importante a se entender nesse caso.
Agora, fui catar representações da tal prima nocte na arte e apareceram várias e várias do século XIX.  Parecia uma fixação por retratar o poder de um homem sobre outros homens e suas mulheres.  E eram artistas das mais diferentes origens: franceses, belgas, ingleses, russos, poloneses etc.  Vom tantas referências visuais (*tardias*) a tal prática só poderia ser verdade... E essa representação da violência sexual continua influenciando os escritores de ficção e aparece na boca de professores, que tiveram uma formação ruim em Idade Média, em sala de aula. Se alguém repete uma história, ela se torna verdade.  Agora, imaginem o sujeito ter o direito de estuprar virgens dentro da lei? E não somente uma, sua esposa, mas as esposas de outros homens.  Trocando em miúdos, a tal prima nocte é uma fantasia machista, uma reafirmação do patriarcado, afinal, as mulheres são objeto e há machos que são mais machos que outros, e não é surpresa que um sujeito como Mel Gibson colocasse essa questão em Coração Valente.  Aliás, seria surpresa se não colocasse.

Vejam que forma mais espetacular de mostrar a superioridade e potência dentro de uma sociedade patriarcal? Quer melhor motivação para uma revolta, que é o que vemos no filme, do que impedir que os ingleses invasores malvados colonizem não somente a terra, uma propriedade primordial, mas, também, as mulheres, outra propriedade dos homens?  E, ao mesmo tempo, a tal "lenda" se prestava, também, para desqualificar o outro, o bárbaro, ou o medieval, em relação ao civilizado que desejava o fim do Antigo Regime. A nova ordem instalada pela burguesia não admitiria esses abusos, cada homem só poderia, no máximo, violentar sua própria esposa... É isso.  Espero que não tenha sido um texto chato, ou arrogante, é meio que um desabafo mesmo.  E tenho que corrigir provas, nem comecei, e voltar com Júlia ao hospital à tarde.  O dia será longo...

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