domingo, 22 de julho de 2018

Comentando Ali & Nino e aproveitando para aprender um pouco da História do Azerbaijão


Coleciono em papel somente uma revista, a espanhola Historia Y Vida.  Ela sempre chega em atraso no Brasil, então, a última edição que comprei é de setembro de 2017.  A revista tem uma seção sobre cinema e já descobri uns bons filmes graças a ela.  Pois bem, a capa era genérica dessa vez, alguma coisa sobre Egito.  Na época que Naruto era o anime da moda, meu marido e eu brincávamos que Egito era o Naruto das revistas de História.  Enfim, mas a contracapa era do filme Ali & Nino, visto por cima, alguém reduziria a película a um Romeu e Julieta entre um muçulmano e uma moça cristã ortodoxa na época da I Guerra Mundial.  Grande engano.  Dentro ainda há mais duas matérias curtas, uma sobre o filme e outra sobre a importância do petróleo do Azerbaijão para a Rússia (*Imperial e da Revolução*) e para a URSS nos seus primórdios e de como esse fator foi determinante para o fim da primeira república democrática islâmica do mundo.

Como professora de História confesso que sei quase zero sobre o Azerbaijão.  Se me apresentarem o mapa da região do Cáucaso sem indicações, talvez só consiga apontar os países mais que conhecidos do seu entorno, como o Irã, a Turquia, a Rússia.  Localizar Azerbaijão, Armênia e Georgia seria um desafio.  Daí, a surpresa ao assistir Ali & Nino, além de descobrir que o filme é baseado no romance nacional do Azerbaijão, foi entender um pouco melhor o impacto da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa na região.  Sair da Europa, por assim dizer.  Então, e vou terminar a introdução do texto aqui, se você pegar o filme para assistir um romance bonitinho (*e um tanto trágico, mas não muito*) entre dois jovens, você terá.  Se você pegar o filme para aprender um pouco de História e geopolítica, você também sairá satisfeito.  Nada muito pesado, nada muito profundo, mas um bom filme, sem dúvida.

Já tinha visto imagens desse monumento
na Georgia e não sabia que era
em homenagem à Ali & Nino.
Resumo básico do filme é o seguinte: Azerbaijão e Geórgia, 1914, Ali (Adam Bakri) é um jovem muçulmano que recebeu uma educação ocidentalizada e Nino (María Valverde), uma moça cristã georgiana, cujo pai trabalha no ramo do petróleo, a maior riqueza da época na região.  Ambos são ricos e frequentam os mesmos círculos sociais.  Terminam se apaixonando, mas o casamento dos dois não é bem visto pela família da moça, que recém recebeu um título de nobreza do Czar.  O pai de Nino (Mandy Patinkin) não recusa a mão da filha, mas tenta esfriar o amor dos dois ao dizer que é melhor esperar pelo fim da guerra.  

Ali conhece então Malik Nakhararyan (Riccardo Scamarcio), um parceiro de negócios do pai de Nino, que se dispõe a ajudar o jovem casal a conseguir a permissão da família da moça.  Na verdade, Malik, que é armênio e cristão, deseja Nino para si e tenta resolver a questão da forma tradicional: raptando a moça.  O caso termina mal para ele, porque Ali os alcança e mata o moço.  Ferido, Ali é enviado para fora do Azerbaijão para fugir da fúria da família do morto.  Já Nino passa a ser vista como uma mulher caída, pois pela tradição, Ali deveria ter matado a ela também.  Com a família do moço contra o matrimônio e a guerra que está longe de terminar, a moça precisa de muita coragem para ir atrás do amado nas montanhas do Daguestão.  Ainda assim, em um mundo em guerra, talvez nem o amor mais forte talvez não tenha sido feito para durar.

"Cadeiras estreitas", o pai de Ali aceita o
casamento, mas não gosta da idéia.
Descrevi em linhas gerais a trama Romeu e Julieta do filme.  Não pensem que ele se resume ao romance, ainda que fosse somente uma confirmação do título do romance original.  Lançado em alemão, em Viena, no ano de 1937, ninguém tem muita certeza de quem foi o autor de Ali und Nino.  Kurban Said é somente um pseudônimo.  Naquele momento, talvez houvesse muitos refugiados do antigo Império Russo na Europa.  Gente que vinha dos mais diferentes lugares empurrados por guerras e revoluções.  A própria Nino, no livro, refugiu-se em Paris.

O que se sabe é que a pessoa que escreveu conhecia bem a cidade de Baku, capital do Azerbaijão, os costumes locais, esse conflito entre tradições e costumes antigos e a pressão pela ocidentalização, ou, pelo menos, uma russificação.  Nino, que recebeu uma educação moderna, sonha com Paris.   Ali deseja que o Azerbaijão se torne uma nação independente e democrática, segundo os moldes ocidentais, ainda que mantendo sua identidade própria.

Estou dando um grande spoiler, mas vocês não acreditaram
 que um filme assim termine com uma família feliz.
Vendo o filme, descobri que na confusão que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e à Revolução Russa, foi criada, em 1918, no Azerbaijão a primeira república islâmica democrática, o primeiro país muçulmano a dar o direito de voto às mulheres e defender que não houvesse discriminação nem por raça, religião, ou gênero.  Era muita modernidade para a época.  E só.  80% do petróleo que alimentava a Rússia vinha do Azerbaijão, território incorporado no século XIX mediante guerra com a Pérsia.  A Revolução Russa precisava tanto do petróleo de Baku, quanto os czares.  O sonho durou 23 meses.  

O primeiro ministro, Fatali Khan Khoyski (Halit Ergenç), parece efetivamente acreditar que nesse projeto, os olhos azuis do ator brilhavam durante os discursos, ele parecia crer que os acordos internacionais seriam respeitados, mas, logo, a realidade vem pesada na forma do Exército Vermelho invadindo o Azerbaijão.  Quando vi o ator Halit Ergenç sabia que lembrava dele de algum lugar, é o protagonista de uma das novelas turcas que a Bandeirantes exibiu, Mil e Uma Noites.  Aliás, os atores e atrizes do elenco dessa coprodução da Grã-Bretanha e do Azerbaijão tem diversas origens, mas dos países mesmo onde se passaram os acontecimentos são poucos.

Os primos de Ali acreditavam que a guerra seria divertida.
Outra questão tratada no filme é a riqueza étnico-cultural do Império Russo e de como os vários povos que o compunham, mais de cem, eram tratados de forma desigual.  Ali se recusa a se alistar.  Seus primos, Mehmed Heydar (Ekin Koç) e Ilyas Bey (Assaad Bouab), se alistam voluntariamente.  Mehmed repete mais de uma vez que era melhor a guerra do que a escola.  Eles vão pela aventura e na esperança de que a I Guerra será curta.  Lembram de Juventudes Roubadas?  Quase a mesma coisa.  Quase, porque os russos não permitem que oficiais muçulmanos (*os dois jovens são ricos e de boa família, logo, oficiais*) sejam enviados ao front.  

Eles são treinados, mas ficam aquartelados no próprio Azerbaijão, longe da ação.  O Czar teme que muçulmanos não queiram lutar contra muçulmanos, nesse caso, os turcos otomanos.  Os próprios moços dizem que não estariam dispostos a tanto.  Os russos não querem, também, que cristãos tenham que obedecer ordens de oficiais islâmicos, afinal, o sentimento de aversão aos muçulmanos é grande e alimentado com afinco pela propaganda oficial, pois os turcos estão dando muito trabalho para os russos.  Ali não quer lutar pelo Czar, ou por esse império, ele olha para o futuro.  Pensa em Nino, claro, mas pensa no seu país e na possível independência.  E ele terá que escolher entre um amor e outro, ou melhor, ele terá que escolher entre sua vida pessoal e o sonho coletivo, a independência.

Antes da guerra, tudo parece bonito e promissor.
As questões de gênero são discutidas de forma muito competente através de Nino.  Ela é uma mulher moderna. Ela faz Ali jurar que se se casar com ele, será a única esposa e que não será confinada a um harém.  Ela se recusa a usar véu, quando obrigada a se refugiar em Teerã, ela prefere permanecer reclusa a ter que sair velada às ruas.  A mãe da moça, Tamar (Connie Nielsen), que é absolutamente contra o enlace com Ali, a avisa que os homens mentem para conseguirem o que desejam.  Climão na mesa de jantar quando ela diz isso olhando para o marido muito constrangido.  Depois de casada, como uma mulher poderia ter certeza de que o marido manteria a palavra empenhada? 

O fato é que ninguém me convence, e o livro talvez explique melhor, que os pais, ou pelo menos a mãe de Nino, não tenham sido coniventes com o sequestro da moça por Malik.  A mãe expressa mesmo alguma satisfação quando sabe que ela foi levada pelo armênio.  Se Nino fosse obrigada a se casar com Malik, e tal se faria mediante um estupro, que fique claro, pelo menos ela estaria casada com um cristão.  Seria uma forma "honrosa" de se livrar do muçulmano, ainda que o caso gerasse algum escândalo dentro da boa sociedade.

Os pais de Nino não vêem futuro em um casamento com um
muçulmano, mesmo que ele seja nobre e rico.
Quando o primo de Ali, Mehmed, devolve a moça com grande desprezo estampado no rosto, os pais de Nino lamentam e se desesperam.  Pelo que li sobre o livro, Mehmed queria que Ali matasse Nino.  Isso não fica claro no filme, a coisa foi cortada, mas quando os pais da moça vão suplicar ao pai de Ali, Safar Khan (Homayoun Ershadi), que ele faça o casamento para salvar a honra de Nino.  É uma humilhação, especialmente para gente tão orgulhosa, o sujeito deixa claro que ela não presta mais, é uma perdida.  No belo reencontro com Ali, meses depois, Nino perguntará se ele ainda a quer, manchada como está.

De qualquer forma, é assim que Nino é tratada por todos.  As boas famílias cristãs mandam uma comissão à casa da moça para dizer que não a querem mais na missa.  Vejam bem, o casamento mediante sequestro era - acontece até hoje em algumas regiões - um expediente válido.  Ali e Nino pretendiam fugir juntos.  É Mailik quem demove o rapaz disso.  É uma prática válida quando a família é contra, quando o noivo não tem condições de pagar o dote (*entre os muçulmanos, normalmente, é o rapaz e sua família quem pagam o dote*), mas se a coisa não funcionar, se a noiva for devolvida, ela é uma mercadoria sem valor.  É a mulher, que não tem grande escolha em uma sociedade patriarcal, a parte mais desprotegida dessa história toda. Pior para ela, se não escolheu ser sequestrada.

As coisas não terminam bem para o
sequestrador, tampouco para a vítima.
O agravante do caso, e que faz com que Ali fique mal com seu pai, é que ele não lava sua honra por completo, matando a moça.  A família de Nino decide mandá-la para Moscou.  Lá, talvez, o escândalo ainda fosse desconhecido, ou alguém aceitasse casar com ela mesmo manchada.  Nino decide, então, ir atrás do amado.  Ela iria só, mas vai em busca de ajuda.  Seyid Mustafa (Numan Acar) é um mulá, e esse tipo de personagem raramente é simpática, grande amigo de Ali e a testemunha ocular do sequestro de Nino, não fosse ele, ninguém acreditaria que Malik obrigou a moça.  Ele também se dispõe a ajudar o jovem casal.  É um alcoviteiro de mão cheia.

Como o filme é relativamente curto para esse tipo de película, não se fala das dificuldades do percurso, mas deveriam ter dado um pouco de atenção a isso.  Dá-se mais atenção á vida de Nino e Ali nas montanhas.  É o momento de felicidade dos dois.  A vida é muito dura, Nino se vê obrigada a enfrentar uma pobreza grande e o rapaz comenta que eles estão vivendo como a maioria do povo do país vive, mas é feliz.  Estão longe da guerra, longe da política, mas, obviamente, isso não iria durar.  A forma como a moça enfrenta a situação faz com que o sogro aceite a união e lá vão eles para Baku.

Nino aprende a ser uma camponesa por
amor a Ali, agora, usar o véu, JAMAIS!
Guerra civil.  Guerra de independência.  Nino grávida e sendo remetida junto com o sogro para Teerã.  Fica meses sem notícias no marido.  De novo, as questões de gênero ganham o foco.  Nino tem que viver em um harém.  A lei exige que esteja velada para andar nas ruas e ela se recusa. A esposa principal do dono da casa, acho que tio de Ali, comenta com ela como deve ser difícil ser a única esposa de um homem.  Segue-se uma inquirição sobre doenças venéreas e vícios.  Ela recomenda que se o moço se tornar muito exigente, que o envie para os garotos dançarinos... Bem, a prática de prostituição de meninos é conhecida no Afeganistão, talvez fosse corrente em outros lugares islamizados.

O fato é que Nino é muito mais firme em relação a uma séries de coisas, mas elas sempre se remetem ao pessoal, não ao coletivo.  Ali é capaz de consumir álcool para não fazer desfeita ao pai de Nino e se mostrar um homem educado.  Ela jamais usaria o véu, ela jamais se converteria.  Ou Ali a aceita como ela é, ou jamais a terá como esposa.  De resto, Nino é uma moça rica bem convencional.  O filme, de certa maneira, traça uma linha, que deve estar no livro, suponho, entre público e privado, assim como são traçadas as linhas entre os cristãos e os muçulmanos, o oriente e o ocidente.  

O idílio amoroso na pobreza, mas o mundo exterior os chama.
Ali pensa o mundo, pensa no futuro.  Nino quer ser feliz com o homem que escolheu e a filha que amos tiveram.  Quer ver Paris.  Não digo que ela seja apresentada como egoísta, simplesmente, o filme trabalha com representações de gênero que são reiteradas.  Elas são críveis, porque podem ser percebidas no social, no entanto, havia mulheres na mesma época que estavam pensando a sociedade e como transformá-la e homens que se preocupavam somente com seus interesses pessoais.

Já concluindo, o filme cumpre a Bechdel Rule.  Não é um filme feminista, até por não extrapolar as questões de Nino para o coletivo, mas é feliz em mostrar as contradições entre a suposta vida moderna de algumas mulheres  e os costumes patriarcais aos quais estavam assujeitdas.  Vide o caso do sequestro para casamento.  De resto, apesar de retratar os bolchevique como ameaçadores (*e como não ser?*), o filme não tem um discurso anticomunista.  O mais próximo de uma crítica direta , no caso ao tratamento da questão religiosa, será a última cena de Seyid Mustafa, o mulá mais gente boa do cinema.  

"Da próxima vez será um menino", Nino repete a
frase duas vezes no filme.  Uma menina nunca é tão
importante quanto um garoto.
A película, como pontuei em algum lugar, tem um elenco multicultural.  Os protagonistas são um palestino e uma espanhola.  A mãe de Nino, Connie Nielsen, é dinamarquesa e é a rainha Hipólita da Mulher Maravilha.  Há britânicos, turcos, iranianos.  Imagino que alguns atores tenham sido dublados e o filme deve ter circulado com áudios diferentes.  O primeiro trailer que achei com legendas em português estava em uma língua que desconheço. A cópia que eu baixei, tem letreiramentos em alemão.

O diretor, Asif Kapadia, nascido em Londres, de família muçulmana (*não achei suas origens, mas provavelmente é de  origem indiana, ou paquistanesa*) ficou famoso como documentarista, recebendo vários prêmios, incluindo Baftas e um Oscar (Amy).  Seu documentário sobre  Amy Winehous é  um dos de maior bilheteria da história no gênero, mas ele também foi premiado por um documentário sobre Ayrton Senna e está concluindo um filme sobre Maradona.  O olhar que lança sobre Ali & Nino e o Azerbaijão é um olhar amoroso, compreensivo com todos, por assim dizer.  Fora Malik, o amigo traidor, que tem aquela postura física e o olhar que denunciam a perfídia, não há vilões.

Queria essa cena da dança com a música de fundo. 
Ela só aparece em flashback, ou com
o tema do filme já nos créditos.
Concluindo, Ali & Nino é bonito visualmente, figurino e locações são interessantes, e tem dois protagonistas que convencem com seu drama e seu romance e, ao mesmo tempo, coloca em tela questões de geopolítica que me escapavam totalmente.  Agora, quando eu estiver dando aula de Primeira Guerra, ou de Revolução Russa, não me esquecerei de falar do Azerbaijão.  Não acredito que Ali & Nino, que foi lançado no final de 2016, tenha sido exibido em nossos cinemas, talvez, em um festival, deve ter ido direto para as TVs por assinatura, ou streaming.

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