sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Comentando As Três Marias de Rachel de Queiroz


Por causa da resenha do canal "Ler Antes de Morrer", comprei uma nova edição de As Três Marias de Rachel de Queiroz (1910-2003).  Nova, porque quando eu tinha uns nove anos,minha mãe comprou uma edição do livro em um saldão e trouxe para mim.  Lembro que, criança, queria o livro do meu irmão, pois tinha gravuras e era sobre um grupo de meninos e meninas detetives.  Por que ela tinha me dado um clássico chato?  Publicado em 1939, As Três Marias é um dos grandes marcos da escrita da autora, a primeira mulher admitida na Academia Brasileira de Letras, e da literatura brasileira no século XX.  E, claro, não é um livro chato, mas a Valéria criança não tinha como entender a importância da obra.

As Três Marias é um romance é narrado por Guta, alter-ego da autora e uma uma das protagonistas da história.  O livro começa quando a meninas vai para um internato de elite em Fortaleza, no Ceará, aos 12 anos, lá ela conhece Maria José e Maria da Glória, e se inicia uma amizade profunda entre as três. Ficaram conhecidas como As Três Marias por uma freira que assim chamou-as por causa de seus nomes: Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória e porque viviam sempre juntinhas como a constelação de Órion.  Juntas, as Três Marias ajudavam as outras amigas a solucionar seus problemas.  O tempo passa e o estudo no internato acaba, agora já adultas cada uma segue um rumo, mas a amizade prevalece.
Foi eleita em 1977.
Terminei de ler o livro no último dia de 2018. Foi uma leitura que me propus a fazer para revisitar um livro que tinha lido penosamente no final da infância. Adorava a fase do colégio, com meninas próximas da idade que eu tinha, com experiências que poderiam me ser vagamente familiares, mas não tinha maturidade para ler o resto. O livro me deixou confusa, larguei. Era muito jovem para entender os amores, as frustrações, as dores, o sexo, a necessidade do retorno de Guta ao Cariri natal, como alguém que retorna ao útero materno.  Mamãe queria me dar livros, mas era um tanto descuidada quanto às adequações.

Relendo As Três Marias, continuei gostando da fase do colégio. Só conseguia ficar pensando no quão interessante seria ler shoujo ou josei mangá baseado nele.  É mesmo uma lástima que nossos clássicos sejam tão pouco adaptados ou que, na maioria das vezes, os mesmos clássicos sejam adaptados com exagerada frequência.  Não me lembro de livro de Rachel de Queiroz adaptado para quadrinhos pela EBAL, As Três Marias é certeza que não foi adaptado.
A capa da primeira edição que tive era essa,
mas laranja, se bem me lembro.
De qualquer forma, As Três Marias deveria ter sido adaptado para o cinema, ou TV.  Nunca foi.  Houve uma novela inspirada no livro e que teve o mesmo nome, porém ela se afastou tanto do original que pouco restou dele.  O fato é que As Três Marias teria que ser muito esticado para ser novela.  A narrativa dos tempos de escola é episódica.  Guta se recorda de momentos específicos.  A chegada ao colégio.  A amizade iniciada por Maria José, que lhe apresenta Glória, a mais segura das três.  A amiga Jandira, dura e orgulhosa, mas manchada, porque era fruto de um adultério e sua mãe era uma prostituta.  

Há a fuga de uma aluna, um episódio ao estilo Romeu e Julieta que encanta e aterroriza as meninas.  Traça-se aí a diferença entre a Irmã Germana, que ama as alunas, se preocupa com elas, e a madre superiora, que se preocupa com a imagem do colégio.  Essa madre lembra a direção de uma escola onde estudei.  Tradicional, elitista e muito mais preocupada com o bom nome da instituição do que conosco, os alunos e alunas.  Outra passagem importante é a do concerto de violino de Glória e o namoro com o moço sírio.  As meninas namoravam os namorados das amigas, dividiam as migalhas dos momentos ternos que as colegas dividiam com elas.

O Colégio Imaculada Conceição, onde as três marias estudaram.
Há a questão da educação sentimental e dos afetos através da literatura.  Livros clandestinos por seu conteúdo romântico desenham homens impossíveis, perfeitos.  Quando cai nas mãos das meninas Nada de Novo no Front, o livro sequer precisa ser censurado pelas freiras, as meninas o repelem.  Quando Guta é confrontada com homens reais, primeiro Raul, o pintor mais velho, depois com Isaac, ela, criada em uma redoma, não consegue entendê-los.  Confunde sentimentos, passa por quase estupro e tudo mais.  O descompasso entre homens e mulheres é visível. 

Uma passagem que daria um bom momento yuri no mangá é a amizade de Maria José com Hosana, uma órfã. De um lado do colégio ficavam as pensionistas, as pagantes, as senhoras.  Do outro, as órfãs que aprenderiam a costurar e  bordar os vestidos e as roupas de bebê das pagantes.  Amizades eram proibidas entre essas duas classes de meninas que só se encontravam nos momentos da capela, ou em encontros furtivos.  Maria José, tão ciosa das regras, desobedece e a amizade com Hosana é descrita como um quase idílio amoroso.  O rompimento  é obra das irmãs.  Hosana é mandada bordar  o enxoval de uma noiva rica no interior e não tem um bom destino, ou tem aquele que era o esperado das meninas de sua classe, trabalhar muito, casar e morrer cedo.  A amiga clandestina de Maria José morre de parto.
As três marias na novela.  Estreia de Maitê Proença na TV.
Das  três amigas, Glória, que sempre interpretava de corpo e alma os papéis que lhe caiam, é a que melhor se ajusta ao que a sociedade esperava dela.  Casa, tem um filho, vive uma aparente e feliz domesticidade.  Maria José, castigada por uma imagem negativa do casamento dos pais, torna-se a beata.  Sofre por desejar prazeres, penitencia-se por isso.  No entanto, é amiga e solidária com Guta, ou Jandira, que são tão diferentes dela.  Já a protagonista, perde sua fé e se lança em experiências e amores que lhe causam pouco prazer e muita dor. E ainda sofre com a infâmia de ser acusada de causar o suicídio de um amigo.  

Eu me lembrava vagamente da passagem,  mas ela evidencia muito bem a  forma diferenciada como homens e mulheres eram tratados.  Aluísio comete suicídio.  O moço era depressivo e cheio de problemas, mas deixa uma carta dizendo que se matou por amor.  Teve todas as chances de se declarar  para  Guta e não o fez. Talvez, se culpasse por tê-la apresentado a Raul, o pintor que tinha muitas amantes.  Talvez acreditasse que ele teria sido responsável por Guta ter se perdido, por assim dizer.  Já ela, ficou mal falada.
Edição ilustrada em inglês.
O livro é repleto dessas minúcias de diferenças de classe e questões de gênero.  Nessa época, Rachel de Queiroz estava próxima do partido comunista.  No futuro, a autora iria apoiar o golpe militar.  Apesar de seu comportamento muito avançado e pouco convencional, vide as experiências de Guta, a autora assumiu um feroz antifeminismo.  Há um lampejo dele quando ela fala das sufragistas, mas é coisa rápida.  A introdução de Heloísa Buarque de Holanda destaca  o fato de que, talvez, Rachel de Queiroz nunca tenha entendido os feminismos.  Pode ser, mas sua obra é carregada de crítica aos papéis de gênero, às humilhações e limitações impostas às mulheres, e tudo mais.  

O próprio tratamento da questão do aborto é sem julgamento, sem culpa para além daquilo que a própria Guta sentia.  A jovem sofre, daí ela voltar à terra natal para se regenerar, se recuperar da dor profunda da perda do filho fruto do amor.  A mãe de Maria José, Guta mora na casa da amiga depois que saiu do colégio, não a recrimina, a acolhe,cuida dela.  Mas o que está marcado é que Guta precisa voltar para casa, o lugar que ela antes não conseguia chamar de lar, para se recuperar.  De lá sairá mais forte?  Mais sábia?  
Edição alemã.
Rachel de Queiroz não apresenta uma narrativa do fato hostil para Guta, ela, a autora, como tantas mulheres de sua época e ainda hoje, compreendem que para a maioria das mulheres um aborto é fruto do desespero, do abandono, da solidão.  A solteira Maria Augusta, a funcionária pública, a filha de uma boa família, não poderia ser mãe solteira, isso era fora de cogitação.  Ela estaria perdida.  O importante, o consolo, é  que as Três Marias continuavam no céu, seja em Fortaleza, no Rio de Janeiro, ou no Cariri.  Apesar dos problemas, das diferenças, ela sempre teria as amigas.  E temos um livro feminista apesar de tudo.

Concluindo, a Valéria adulta e revisitando o livro, pode saborear a prosa de Rachel de Queiroz, enxuta, precisa, elegante. Poderia ler outros  livros da autora, ver se todos são deliciosos de se ler como As Três Marias.  Enfim, a edição da José Olympio  destaca-se por ter introdução crítica e vários apêndices úteis para melhor entender e aproveitar a leitura. Por exemplo, há um posfácio de Manuel Bandeira, a quem o livro foi dedicado. Infelizmente, a versão Kindle não tem as fotos.  O posfácio de Fran Martins fala das amigas de Rachel, colegas de colégio, Odorina Pinheiro Castelo Branco e Alba Frota, que inspiraram Glória e Maria José. Queria ver essas fotos, algumas edições Kindle não as deixam de fora.  Por conta disso, recomendo a edição de papel. Agora, o que eu recomendo mesmo, é a leitura do livro.

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