domingo, 3 de fevereiro de 2019

Comentando A Favorita (The Favourite, 2018), um dos filmes favoritos do Oscar deste ano


Sexta-feira, fui assistir A Favorita, para quem está acompanhando as premiações, trata-se de um dos favoritos da corrida do Oscar, com dez indicações.  O mais interessante é que é um filme de época, apresenta-se como comédia e é centrado em mulheres.  Gostei do filme?  Não sei.  A melhor palavra para defini-lo é estranho.  Também, lamento que a parte histórica do filme tenha ficado muito nas entrelinhas, dificultando a compreensão do que estava em jogo para além dos aposentos da soberana.  Agora, o desempenho do trio atrizes formado por Olivia Colman, a rainha,  Rachel Weisz, a primeira favorita, e Emma Stone, que rouba o seu lugar, é espetacular.  É somente por isso que não lamento ter ido assistir outro filme, porque começavam no mesmo horário Vice e Assunto de Família,  além de um filme que está esperando somente eu assistir para sair do circuito, O Confeiteiro.  Então, vamos lá, acho que vai me dar um pouco de trabalho essa resenha.

Inglaterra, início do século XVIII, uma fragilizada Rainha Ana (Olivia Colman) ocupa o trono e sua favorita, Lady Sarah (Rachel Weisz), Duquesa de Marlborough, é quem tem as rédeas sobre o governo.  Ela também usa de seu excesso de intimidade com a soberana, fruto de vinte anos de amizade, para tiranizar a rainha e, não raro, humilhá-la.  A situação está nesse pé quando chega ao palácio, Abigail (Emma Stone), moça nobre caída na miséria, ela é prima de Lady Sarah e passa a ser sua dama de companhia.  Nessa condição, ela acaba tendo acesso à rainha e usa do seu charme e gentileza para se tornar a nova favorita.

Sarah não tinha problemas em ridicularizar a soberana.  Excesso
de intimidade, estraga uma amizade, já diziam os romanos.
Há várias formas de se analisar um filme, pelo menos, é essa a minha percepção, quando me proponho a escrever uma resenha crítica de alguma película que assisti.  Não tenho competência, por exemplo, para analisar enquadramentos e outras questões que críticos profissionais e gente que estuda e lê sobre esses aspectos, por conta disso, me foco no que eu sei que posso avaliar.  Pois bem, dito isso, comecemos de verdade.  Por exemplo, não conheço o trabalho do diretor do filme, Yorgos Lanthimos.  Quando escrevi que o filme me pareceu "estranho", um amigo disse que as obras dele eram assim.  Mas, assim como?  E o que eu quero dizer com o uso dessa palavra?

A Favorita não é um filme com uma narrativa convencional.  É uma comédia dramática, que quando parece caminhar do jeito que a gente espera, intercala alguma cena ou imagem que parece deslocada do contexto para, logo em seguida, retomar a narrativa.  Sabe a sensação que eu tive?  Você está sonhando, e é um sonho comum, banal, de repente, aparece uma imagem que faz rir, devia a atenção, choca, ou um acontecimento que desestabiliza você.  É nesse sentido que uso o "estranho".  Nas cenas de baile, por exemplo, inserem uns passos modernos no meio de danças de época.  Prestem atenção.  Há uma dama negra presente em algumas cenas e nada é dito sobre ela, a atriz simplesmente está lar.

Abigail agrada e sabe se fazer necessária.
Outros cortes inserem, do nada, as diversões frívolas da nobreza.  O país está em guerra, discute-se o tempo inteiro como obter mais verbas e mobilizar tropas, mas os mesmos sujeitos parecem pouco se importar com o que realmente está acontecendo fora do seu mundo de corrida de marrecos, bailes e outras banalidades.  Essas sequências são jogadas de repente no meio do filme, elas meio que interrompem ou se entrelaçam com a história que está sendo contada.  Qual o efeito?  A tal estranheza e uma certa repulsa.  Passasse a ideia de decadência de costumes e, talvez, de fim de festa, afinal, a Rainha Ana foi a última da Dinastia Stuart.

Quando falei em decadência, isso é acentuado pela maquiagem.  Já escrevi um texto para o blog comentando que o cinema deliberadamente evita colocar a maquiagem como ela era, seja na corte Heian do Japão, ou nos salões europeus do Antigo Regime.  O motivo é fácil de entender, a maquiagem utilizada não seria agradável aos nossos olhos.  Em A Favorita, os homens em especial, eles são maioria nessas sequências, usam maquiagem muito pesada e elaborada nessas cenas que quebram a narrativa principal.  A personagem de Emma Stone chega a repreender seu futuro marido, Samuel Masham (Joe Alwyn), quando ele aparece todo montado para seduzi-la. Abigail, a personagem de Stone, está jogando, claro, mas a sua reação de desgosto provavelmente seria a de uma mulher contemporânea diante desse tipo beleza masculina.

A Rainha e sua Favorita tinham seus segredos.
Chegamos então ao ponto alto do filme aos meus olhos, o trio de atrizes principais.  Rachel Weisz é a favorita da rainha, destronada pela prima.  Weisz transmite uma imagem de poder que não sabe que é transitório e frágil, ela realmente acredita que pode controlar a rainha com quem mantém amizade de 20 anos. Todos recorrem a ela e Lady Sarah não tem pudores em humilhar a rainha mesmo em público.  Algo que aparece constantemente no filme é a personagem de Rachel Weisz usando roupas de caça masculinas.  Ela comanda a relação, ela é ativa, enquanto a rainha está reduzida a uma condição de passividade, seja por sua saúde frágil, seja pelo lugar que ocupa no jogo político e sexual. Mesmo na relação com o marido, o Duque de Marlborough (Mark Gatiss), general mais importante da Inglaterra, ela é o elemento dominante.

Parece que o caráter dominador e desrespeitoso de Lady Sarah em relação à rainha está de acordo com as fontes de época, só que a informalidade e proximidade que seduziam a rainha antes de subir ao trono (1702), passaram a parecer inadequadas depois que Ana é coroada.  Tão segura de si, Sarah não leu os sinais, não percebeu o perigo.  No filme,  a personagem de Weisz percebe tarde demais que perdeu o poder sobre a soberana e que foi suplantada por uma parenta que acolheu sob suas asas.  Mas mesmo em desgraça, a personagem não perde a pose, a fleuma, por assim dizer.

Falsa submissão e certeza de domínio absoluto.
Emma Stone começa o filme com o ar de coitada, moça nobre, reduzida a uma situação de vida das mais miseráveis, porque o pai perdera toda a fortuna no jogo, inclusive a própria filha, que passara por várias mãos antes de partir em busca da prima poderosa com uma carta de apresentação.  Seu início no palácio real é como "scullery maid", a criada que ocupa o lugar mais baixo na hierarquia.  Sofre bullying, é humilhada, mas se mantém atenta ao seu redor e agarra as oportunidades.  Conhecedora de ervas, ela ajuda a diminuir as dores da Rainha que sofre de gota, a partir daí, é promovida à dama de companhia de Lady Sara.  Ter acesso á Rainha, apresentando-se como gentil, submissa e sempre pronta a servir, faz com que a soberana passe a prestar atenção nela.  

A mudança mais radical ao longo do filme é na aparência de Abigail.  Ela começa usando roupas modestas e, conforme vai subindo, tanto seu figurino quanto o seu cabelo se transformam.  No entanto, ao chegar ao poder, ela se comporta como uma nova rica, ultrapassando os limites do bom gosto, por assim dizer, assim como abandona a máscara de cordialidade e gentileza.  Ela é muito mais explícita, ou vulgar, no seu trato com aqueles que parecem dela depender, como os políticos, destaque para Robert Harley (Nicholas Hoult), a personagem masculina mais importante de um filme no qual as mulheres dominam, e o próprio marido, com quem estabelece uma relação abusiva.  Mas, enfim, a mutação da personagem, que se torna a favorita, mas nunca será Sarah aos olhos da rainha, fica sempre muito bem caracterizada.  As indicações tanto para Emma Stone, quanto para Rachel Weisz são justíssimas. 

Sarah usa calças literalmente, mas esse
fato não é excepcional, há outros casos.
E, no alto da pirâmide temos a Rainha Ana primorosamente construída por Olivia Colman.  o filme retrata a soberana depois de 1708, ela reinou até 1714, já viúva e depressiva.  Colman domina o filme, ainda que pareça que a disputa entre Stone e Wesz seja o ponto alto da película.  A Rainha é o elemento central, as favoritas orbitam em torno dessa mulher que se esforça mesmo doente e sofrendo para cumprir o seu dever, as reuniões com os ministros mesmo quando não consegue deixar sua cama, são um exemplo.  Uma mulher carente que sofre com a dominância de Sarah que não percebe quais são os limites, que não reconhece o seu lugar.  Ao longo do filme, percebemos como Ana vai adoecendo ainda mais e mesmo que não se fale, é possível perceber pela interpretação de Olivia Colman, que a rainha sofreu um derrame.

Falando da Rainha Ana (1665-1714), ela não deveria ser rainha, não se esperava que fosse necessário, mas ela acabou tendo que arcar com o peso enorme de garantir a continuidade da dinastia Stuart.   Antes de assistir o filme, retomei a parte sobre a rainha Ana do livro England's Queens - A Biography.  Ana tinha como um traço de caráter forte desde a infância a teimosia.  Fervorosamente protestante, ou, pelo menos, abraçou o protestantismo como bandeira, atormentou a tia, a rainha viúva Catarina de Bragança (*queria muito um filme sobre ela.  MUITO!*), depois conspirou contra o pai, Jaime II e a madrasta, Maria de Modena. Espalhou boatos sobre a ilegitimidade do filho dos dois, o príncipe herdeiro católico que muitos ingleses não desejavam. 

Sarah ensina coisas para Abigail sem se dar conta.
Deu uma mãozinha para a Revolução Gloriosa (1688-1689) que depôs o próprio pai, mas não ficou satisfeita quando o cunhado foi coroado como co-monarca junto com a irmã mais velha.  Ela aceitava uma Maria II, mas não um Guilherme III.  O casal era estéril e coube à Ana produzir um herdeiro protestante para o reino.  Casada em 1683, ela passou por pelo menos 17 gravidezes até a morte do marido em 1608.  Algo que estranhei no filme foi o uso do preto & branco em todas as roupas.  Encontrei um artigo falando que foi uma opção por economia, que rendeu excelentes efeitos estéticos, de qualquer forma, imaginei que a corte pudesse ainda estar saindo do luto pela morte do consorte de Ana, o príncipe George da Dinamarca.  Não houve uma única citação ao luto, ou ao consorte da rainha.

Sim, ela teve um marido e, não, eu não acredito que ela fosse lésbica como o filme tenta vender.  bissexual, talvez, lésbica, dificilmente.  As fontes sobre Ana sempre ressaltam seu sofrimento depois da perda do esposo com quem, contra todos os padrões da época, dividia o próprio quarto.  O filme tomou como verdade as memórias da favorita que perdeu seu posto.  Ora, já falei em outros textos que acusar uma rainha de ser lésbica, ou de ter demasiado apetite sexual, eram duas das formas mais comuns de difamação.  Vide minha resenha sobre o filme Troca de Rainhas.  Até hoje, mede-se uma mulher pelo seu comportamento sexual.  Então, não considero a representação de Ana no filme como justa, ela opta por acreditar no que convém à narrativa e a apresenta como uma quase idiota, atirada de lá para cá ao sabor dos caprichos de suas favoritas.  Outra coisa, um favorito não precisava ser uma amante, mas, de novo, o filme opta por esse caminho.

Abigail aprendeu a atirar.
Ana é a rainha inglesa com o pior histórico obstétrico.  Daí, vocês imaginam a pressão sobre ela e os efeitos que isso poderia ter sobre sua saúde mental e física.  Governar, engravidar, parir, perder filhos, governar... Se não produzisse um herdeiro, era o fim da Dinastia Stuart, o país poderia mergulhar em uma guerra civil e seu irmão católico iria pleitear o trono provavelmente com o apoio da França e outras potências católicas.  Ainda assim, Ana foi o monarca inglês que mais se reuniu com seus ministros, o último rei rei da Inglaterra a usar o seu direito de veto a uma lei do Parlamento.  Sim, essa história de "o rei reina, mas não governa" é uma falácia, a coisa não é bem assim. Foi no seu governo que foi criada a Grã-Bretanha como uma unidade entre Inglaterra, Gales e Escócia.  Foi no seu governo que se definiu o sistema bipartidário que o filme desenha de forma preguiçosa.  

Lady Sarah apoiava os Whigs, anti-católicos, envolvidos com atividades mercantis, e que desejavam ampliar o esforço de guerra.  Abigail se alia aos Tories, que não tinham apoiado efusivamente a derrubada do rei católico, por serem legalistas, e queriam limitar os investimentos na guerra e redirecionar a geopolítica britânica.  O filme dá a entender que a Inglaterra estava perdendo a Guerra de Sucessão ao Trono de Espanha  (1701–1714), afinal, a rainha era uma idiota, não é?  Na verdade, à despeito das pressões internas, o país saiu vitorioso e como maior potência da época. Aliás, essa guerra tem impacto nas fronteiras da América Portuguesa e do nosso futuro como país independente.  Enfim, mesmo doente, Ana era uma governante atenta e responsável, o filme reduz questão política ao humor dos problemas de alcova da rainha com suas poderosas favoritas.

O Parlamento tem muito poder, mas
monarcas como Ana não eram decorativos.
Sim, eu achei o filme superficial ao extremo em relação ao fundo histórico e, claro, injusto com a Rainha Ana.  Ela não foi uma Elizabeth I, tampouco uma Rainha Vitória, mas não era uma idiota, ou uma alienada da realidade.  Quanto a sua orientação sexual, repito que utilizar como fonte principal as memórias rancorosas de Lady Sarah não foi justo com ela.  Parece que quiseram colocar em Ana, assim como fizeram com Christina da Suécia no último filme sobre ela, o rótulo de lésbica, quando todos os indícios fortes eram de bissexualidade.  Agora, o filme é competente, ainda que por demais insistente nesse aspecto, em representar a fragilidade das mulheres em uma sociedade como a do filme A favorita, salvo exceções, claro, e como seu corpo poderia ser apropriado pela força, ou servir de moeda de troca, ou, ainda, vide o caso da rainha, estar ao serviço do Estado mesmo sacrificando sua saúde.  Apesar do olhar aparentemente neutro sobre a prostituição, o humor embutido, a violência está lá, para quem quiser ver.

Concluindo, e nem sei se minha resenha ficou boa de fato,  A Favorita cumpre a Bechdel Rule e, não, não vejo o filme como feminista, ser centrado em mulheres não o credencia como tal.  O filme é bom, é estranho, tem um belíssimo figurino, tem atuações maravilhosas que merecem, sim, serem premiadas, mas não consegui gostar dele.  Era a oportunidade de mostrar uma rainha Ana mais completa e menos insignificante, uma monarca que mediu forças com Luís XIV da França e venceu a parada, mas que, no filme, é somente uma inválida que usa coelhinhos para substituir seus filhos e filhas perdidas, incapaz de agir politicamente sem a tutela de suas favoritas.  Queria dizer que adorei esse filme centrado em mulheres, mas não consigo.  Não torço pela favorita para melhor filme, nem melhor diretor, nem melhor figurino.  Atriz, bem, Olivia Colman merece muito, mas Glenn Close merece, também, e gostei mais de A Esposa.

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