terça-feira, 2 de julho de 2019

Comentando The Slipper and The Rose (Inglaterra/1976)


Tenho que resenhar Mônica Laços e A Vida Secreta dos Bichos 2, mas decidi colocar na frente esse filme divertidíssimo e simpático que assisti no domingo.  The Slipper and The Rose estava no meu HD faz tempo, lembrava vagamente de ter assistido, ou visto cenas dele em algum lugar, mas baixei mesmo por conta de um post do Frock Flicks, especializado em figurinos em filmes de época.  Daí, por causa de Pássaros Feridos, lembrei do filme, afinal, Richard Chamberlain faz o papel do príncipe nessa versão musical de Cinderella.  Assim, não é o melhor dos musicais, ainda que tenha a grife dos criadores de Mary Poppins, mas é uma versão muito interessante de Cinderella, com alguns ingredientes únicos e tem um elenco de apoio muito bom, com destaque para Annette Crosbie, a fada madrinha barraqueira e com um humor muito peculiar.


Casar por amor?  Que absurdo!

O filme começa com o retorno do príncipe Edward (Richard Chamberlain) para o pequeno reino de Euphrania.  Ele havia frustrado mais um possível casamento para grande consternação do rei (Michael Hordern), da rainha (Lally Bowers) e do grande chanceler (Kenneth More) do reino que temem que o país seja atacado por vizinhos mais poderosos.  Um casamento é uma aliança, uma garantia de apoio militar, mas o príncipe sonha em se casar por amor, algo visto como absurdo por toda a corte, afinal, o mundo é o que é e o herdeiro do trono tem deveres a cumprir.


Por baixo de capas negras, essas roupas.  Luto? 
Só nos detalhes da roupa da viúva.
Mudamos para uma mansão nobre e quatro mulheres em capas negras que retornam para casa.  Elas tinham acabado de enterrar o chefe da família.  Cinderella (Gemma Craven), filha do falecido, é surpreendida pela madrasta (Margaret Lockwood) que lhe comunica que, a partir daquele dia, ela não teria mais quarto, ou privilégios, e seria criada da casa.  A moça reage, mas a madrasta lhe assegura que a lei está ao seu lado, afinal, o pai lhe deixara a guarda da moça, ou ela se submetia, ou seria mandada para um orfanato, ou pior.  Cinderella passa a ser tratada pela madrasta e pelas irmãs – Isobella (Rosalind Ayres) e Palatine (Sherrie Hewson) – como uma escrava doméstica.


Ao ver o convite com o retrato de Richard Chamberlain,
 a princesa nariguda desmai
a.
Apesar da resistência do príncipe, uma suposta ameaça de invasão faz com que ele concorde na convocação de um baile para a escolha de uma noiva.  Como mais da metade das princesas convidadas não virá, o rei estende o convite para as moças da nobreza local.  Cinderella havia visto o príncipe no mausoléu real e se apaixonara por ele, mas não tinha nenhuma esperança de poder encontrá-lo, quanto mais falar com ele.  Pois bem, a jovem termina permitindo que uma pobre senhora, a fada madrinha (Annette Crosbie) disfarçada, se aqueça junto ao fogo, apesar de temer que a madrasta descubra seu ato de bondade.  A partir daí, a fada madrinha deixa um cachorro, na realidade uma entidade mágica, como companhia de Cinderella e passa a ajudá-la em momentos de necessidade culminando com o auxílio para que ela vá ao baile.


Um cachorrinho mágico por companhia.
Cinderella e o príncipe se apaixonam de imediato, dançam juntos, conversam, mas, como em todas as versões do conto, ela tem que fugir quando o relógio toca as doze badaladas.  O sapatinho fica para trás, mas apesar dos esforços de Edward, ele não encontra sua dona.  O tempo passa e o príncipe atira o sapato em um matagal.  O sapatinho é encontrado pelo cachorro.  Um dia, John (Christopher Gable), o fiel valete e amigo pessoal do príncipe, vê Cinderella no campo dançando com o sapato na mão.  Ele vai atrás de Edward e ele vem ao encontro da moça.  O reencontro, no entanto, não é o final de nossa história, porque Cinderella não é a noiva certa para um príncipe, ela não tem fortuna, ela não trará o apoio de um exército e o amor dos dois ainda será provado até que tenhamos o "E viveram felizes para sempre".


Um rei ridículo e obcecado por protocolo e etiqueta.
The Slipper and The Rose é um musical bem capenga, digamos que metade das músicas são boas, a outra metade só é passável.  Alguns números musicais são longos demais o que se reflete na duração do filme, que tem quase 2h30.  De qualquer forma, a história em si é bem interessante, usando o conto de fadas na sua versão mais genérica para estabelecer uma série de discussões sobre classe social, dever e tudo mais.  E apesar de ser um filme apresentado em "Royal Command Performance" (*diretamente a pedido da família real britânica*), no caso, a Rainha Elizabeth, mãe da atual soberana do Reino Unido, ele faz uma série de críticas à monarquia como instituição e ao Antigo Regime como sistema perpetuador de desigualdades e infelicidade.  Mas não há revolução no final, claro, todo mundo se acomoda.
O príncipe é estrela do filme.
Para início de conversa, o príncipe, que é o protagonista mais que a própria Cinderella, é um solteirão (*Richard Chamberlain tem seus 40 e poucos anos e aparenta a idade que tem*) que resiste em se casar e questiona a todo tempo as diferenças de classe.  Em determinado momento do filme, ele termina usando seu poder para transformar seu valete, apaixonado por uma mulher nobre (Polly Williams), uma das damas de sua avó, a divertidíssima rainha viúva (Edith Evans), em cavaleiro.  O moço acreditava que sendo filho de dois serviçais estava condenado a lamentar o amor que jamais poderia ter.  Já o príncipe lamenta o tempo inteiro o fato de não ser um homem  comum e poder casar com a mulher que lhe aprouver.


Amor à primeira vista.
Quando ele fala para seu pai, mãe e avó sobre seu desejo, casar por amor, temos uma das melhores músicas do filme.  O rei, um inspiradíssimo Michael Hordern, fica horrorizado.  Ele tinha se casado aos 14 anos.  Onde já se viu isso?  Um príncipe querendo casar por amor? O que casamento tem a ver com amor?  Ele mesmo tinha se casado com a mulher que lhe impuseram e sentindo que pode ter magoado a esposa, diz algo como "sem ofensas".  A rainha também não compreende o delírio do filho, muito menos sua avó que exige que ele case e comece a procriar logo.  O fato é que o reino de Euphrania é arcaico e decadente.  Quando o rei se reúne com seus ministros e delibera sobre o baile, fica evidente que eles estão parados no tempo.  

Ela é boa, mas não boa da forma correta para um príncipe.
O ministro da marinha falando da importância de sua pasta, enquanto o rei se espanta que tenham uma marinha, já que nem mar eles tem.  "Mas temos um lago, Majestade!".  E acerta-se o baile cantando-se a música "Protocoligorically Correct" (*que lembra um pouco "Supercalifragilisticexpialidocious" de Mary Poppins*), ressaltando-se que o mais importante no evento seria definir quem tinha precedência sobre quem, quem poderia sentar perto de quem, e tudo mais.  Como muitos convites são recusados (*inclusive pelo menos um mensageiro é morto*), o rei cede e permite que se convide a nobreza local, somente para não ter um salão vazio, porque nem pensar seu filho não se casar com uma princesa.  E ainda fala em aumentar os impostos para cobrir o rombo da festança.
O príncipe perde a esperança de encontrá-la.
E temos o príncipe visitando o mausoléu e mostrando para John, o valete, seu túmulo já pronto.  Sua vida inteira planejada e condenado a ser enterrado junto com seus ancestrais.  Ao comentar cada um deles, somente um de uma dezena, ou mais, foi um rei memorável positivamente e não por um bom governo, mas por ter fama de santo.  Com tantos reis cruéis, covardes, incompetentes, perversos, sexualmente depravados, não imagino que esse filme não fosse propaganda republicana.  Assim, por qual motivo não se livraram dessa família real que só tem trastes?


Essas coisas não são para você.
Falando de Cinderella, ela não é uma mocinha submissa, mas está em uma situação de fragilidade dentro de uma sociedade na qual seu lugar é determinado pelo nascimento.  Ela é órfã e mulher, uma eterna menor dentro daquela estrutura.  A rebeldia inicial em relação à madrasta, uma mulher nada sutil e muito autoritária, resulta em punições e humilhações.  E ela canta o solo "Once I Was Loved" expressando toda a miséria de alguém que um dia teve mãe, pai e uma condição social privilegiada, mas foi reduzida ao borralho.  Algo interessante do filme é a presença da fada madrinha, a esfuziante Annette Crosbie, testando o coração da mocinha e, não, dando-lhe tudo de mão beijada.


A melhor fada madrinha de todas.
A madrasta e as irmãs, que não conseguem mandar preparar roupas novas (*todo o tecido de qualidade do reino tinha se esgotado*), ordenam que Cinderella faça novos trajes a partir de vestidos antigos.  A moça se esforça, mas em vão.  A Fada Madrinha é chamada pelo cachorro e tem que abandonar outras tarefas, como ajudar a Pequena Sereia e Sherazade das Mil e Uma Noites, e resolver o problema.  Ela resmunga algo como "Eu trabalho e, depois, Hans Christian Andersen leva a fama.".  Andersen foi um dos maiores autores, ou, eu diria, compilador criativo de contos de fada.  A Fanda Madrinha termina por preparar para Cinderella o mais lindo dos vestidos e o par de sapatinhos de cristal mais bonitos que já vi em qualquer filme desta princesa.  


Essa peruca, para mim, é proposital.
Daí, temos a sequência de transformação dos bichos, que foi uma das mais legais do filme, especialmente, levando em conta as limitações de efeitos especiais da época.  Olha, essa parte supera em muito o filme de Cinderella da Disney.  Aliás, falando francamente, mesmo com algumas músicas ruins e a ideia de que basta colocar um rabo de cavalo que o cabelo de um homem é século XVIII, esse filme deixa o live action da Disney no chinelo.  Não falo da animação, porque a discussão seria diferente.  Outra sequência belíssima da película é quando Cinderella escapa do príncipe durante as doze badaladas do relógio e quando ela termina de correr, suas roupas vão se transformado e ela retornando aos seus andrajos.  Só resta o sapatinho que ficara para trás e permanece como uma lembrança daquela noite de sonhos.  Por isso, quando ela reencontra seu sapato, demonstra tanta alegria.


O fato é que não temos Cinderella calçando o sapatinho de cristal para reencontrar seu príncipe.  Ela nem foi cogitada, não foi chamada.  O reencontro da mocinha e do príncipe ocorre de forma diferente.  Edward tinha desistido, estava deprimido e encontrá-la é um alívio para ele.  A cena em que ele "pede" a mão da mocinha para a madrasta (*protocolo, vocês sabem*) é uma das mais curiosas do filme, porque todo mundo interpreta bem os sentimentos que quer esconder.  A madrasta constrangida e ciente de que nada pode negar ao herdeiro do trono, o príncipe com raiva nos olhos, porque já estava sabendo de todas as humilhações sofridas por Cinderella; a mocinha com um ar de triunfo dizendo que perdoava todo o mal que lhe tinham feito (*mas duvido*); e as irmãs quase uivando, mas sendo reprimidas pela mãe.
Vestidos mágicos.
A Fada Madrinha faz 4 vestidos lindos para o primeiro baile.
O fato é que não terminamos nosso filme aí.  A mocinha é recebida pelos monarcas com fria educação para, um pouco mais tarde, ter o grande chanceler em seu quarto dizendo que ela deve partir, que mesmo sendo uma boa moça, ela não é o tipo de moça para casar com um príncipe.  Ela parte e canta uma das melhores músicas do filme "Tell Him Anything (But Not That I Love Him)".   A pobre Cinderella é levada para uma casa afastada, onde deve permanecer bem longe de Edward.  Acredito que ninguém teve coragem de dizer para o príncipe que ela partiu por ser leviana, ou que nunca o tinha amado. O príncipe, ciente de que seu pai ordenou que a moça partisse, diz que se casa com quem eles desejarem, mas que o sangue da família morrerá com ele.  O casamento não será consumado.

Eles lançam o Ländler, a mesma dança de A Noviça Rebelde.
E temos outra intervenção da Fada Madrinha, um deus ex-machina básico, ela vai catar Cinderella, lhe dá uma bronca por ser tão banana e a obriga a ir parar o casamento real.  Ora, se o rei tem todos os poderes (*e tem, isso é piada em vários momentos do filme*), ele pode mudar a lei para que seu filho se case com qualquer mulher.  E a princesa que iria se casar com Edward?  E a possível guerra?  Olha, essa parte do final do filme foi meio que feito nas coxas, mas a princesa acaba se casando com o primo mais solteirão ainda do príncipe, o Duque de Montague (Julian Orchard), uma criatura cômica que desde o início era enxotado pelo rei que via nele um idiota que cobiçava o trono do filho.  Não deixou de ser divertido. 

Reprodução perfeita de um quadro lindo e 
famosíssimo de  Jean-Honoré Fragonard.
Bem, um dos motivos para que o Frock Flicks falar do filme, além de alguma delas ser fã do Richard Chamberlain como eu, é que o figurino é muito bom, especialmente, para a época.  Com os pés bem firmes no século XVIII, a maioria dos vestidos e roupas masculinas são excelentes.  A madrasta e sua roupa de viúve alegre ficou maravilhosa.  E ela ainda paquera o rei no casamento de Cinderella, assim, na cara dura!  Cinderella na cena do baile parece inspirada em Norma Shearer em Marie Antoinette (1938).  As irmãs más são exageradas por motivos de humor e eu acredito que as perucas do rei, também.  Elas são meio desleixadas, para ressaltar que o sujeito era meio lunático, tentando manter as aparências de um regime que estava ruindo.  Com certeza, Edward deve ser o último rei de Euphrania, se não mudar a forma como o reino é administrado.

Ecos de Norma Shearer.
Enfim, foi um espetáculo divertido.  Se você quiser baixar o filme, é fácil encontrar um torrent.  Há legendas em várias línguas.  No Youtube, não sei se tem o filme completo (*tem*), mas tem pedacinhos dele.  Vários.  O filme, claro, cumpre a Bechdel Rule.  Tem um número considerável de personagens femininas com nome, com destaque para a maravilhosa fada madrinha (*a melhor coisa do filme*), a madrasta e Cinderella. Agora, uma curiosidade machista: Annette Crosbie e Richard Chamberlain tem a mesma idade, mas ela é a matrona, ele continuaria por muito tempo no papel do galã que ficaria com parceiras muito mais jovens.  Não tive como pesquisar (*internet ruim*), mas queria saber se esse filme teve impacto no Japão, porque daria, sim, um excelente shoujo, indo além do conto e incorporando elementos bem interessante.

1 pessoas comentaram:

Eu gostei da sua crítica desse filme, fiqeui com vontade de vê-lo. Você por acaso já viu alguma versão de Rodgers & Hammerstein's Cinderella? Na primeira versão de 1957 a protagonista foi interpretada por Julie Andrews, embora a única versão que eu vi do filme e que eu gostei bastante foi a de 1997 com Brandy Norwood como Cinderella e Whitney Houston como a Fada Madrinha. Eu gostaria de saber qual é a sua opinião sobre essa versão.

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