quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Estamos mais perto de The Handmaid's Tale do que imaginamos


Para quem não conhece, The Handmaid's Tale, O Conto da Aia, em português, é um livro de Margaret Atwood foi publicado em 1985.  Na obra, a ação se passa em Gilead, uma república fundamentalista surgida da fragmentação dos Estados Unidos.  Nesse país, as mulheres são categorizadas por seu potencial reprodutivo e as aias, as únicas mulheres férteis, são tratadas como meras encubadoras para os comandantes desse país e suas esposas inférteis.  A série de TV do canal Hulu segue na mesma linha e mostra as aventuras e desventuras de June, a aia e protagonista da história.

"É assim que começa", diz um cartaz.
As aias não tem controle algum sobre seu corpo, os fetos são o bem mais precioso.  E por qual motivo coloquei esse título alarmista no meu post?  Enfim, acabo de ler no The Intercept sobre uma nova resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que confisca das mulheres a sua autonomia em favor da  (*suposta*) proteção do feto. E a quem cabe decidir?  Ao médico, claro.  E cito o trecho:
"Art. 5º A recusa terapêutica não deve ser aceita pelo médico quando caracterizar abuso de direito. (...)
§ 2º A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.
Art. 6º O médico assistente em estabelecimento de saúde, ao rejeitar a recusa terapêutica do paciente, na forma prevista nos artigos 3º e 4º desta Resolução, deverá registrar o fato no prontuário e comunicá-lo ao diretor técnico para que este tome as providências necessárias perante as autoridades competentes, visando assegurar o tratamento proposto."
Sem autonomia, você é somente uma hospedeira.
Não é a primeira vez que o CFM tenta confiscar a autonomia das mulheres sobre seu corpo, havia franca reação do órgão contra o parto domiciliar ou a presença das doulas a insistência pelo parto normal (*mais ainda pelo parto humanizado*), quando é mais cômodo para a equipe médica fazer uma cesariana, o questionamento das mulheres em relação à procedimentos como a episiotomia.  Poderia listar mais coisas.  Membros proeminentes do CFM  no Rio de Janeiro comemoraram a vitória do atual governo como uma forma de minar a influência das feministas esquerdistas nas políticas de saúde. 

Enfim, recomendo a leitura do artigo do The Intercept, eles entrevistam a Dr.ª Melania Amorim, referência em discussões sobre parto humanizado.  Essa resolução do CFM aproxima a entidade de projetos como o Estatuto do Nascituro que efetivamente reduziriam a mulher a uma hospedeira sem direito de escolha sobre o seu corpo.  Aliás, nos EUA, de onde esse tipo de visão foi importada, há legisladores que já usam essa terminologia.  Convém não esquecer do caso Adelir, levada de sua casa pela polícia e submetida a uma cesariana forçada, porque ele pode virar regra.

"Não sou uma hospedeira",
diz a camiseta dessa mulher.
Em São Paulo, agindo em consonância com os interesses de planos de saúde e entidades médicas, a deputada estadual  Janaina Paschoal conseguiu passar um projeto que garante a cesárea eletiva no SUS, como se fosse um direito das mulheres diante da ditadura do parto normal e, não, um procedimento de emergência para salvar vidas.   No Brasil, o percentual de cesarianas chega à 52% no setor público podendo atingir 88% no setor privado, contraria as recomendações da OMS. A taxa ideal de cesáreas, de acordo com a organização, é entre 10% e 15%.  Em muitos casos, médicos já perguntam na primeira consulta se a mulher quer marcar a cesariana.  Eu acompanho essas discussões de perto e, bem, minha filha tem somente cinco anos, nem faz tanto tempo assim que estive nessa ciranda.

Não se trata de alarmismo, estamos, sim, caminhando para o pior.  Este ano mesmo, o Ministério da Saúde tentou proibir o uso do termo "violência obstétrica" dos documentos oficiais em uma tentativa de negar uma realidade que marcou a experiência de gestação e parto de muitas mulheres.  Depois de muita grita, recuou, e liberou um novo documento garantindo às mulheres a liberdade de usar o termo, porém não se comprometia a retomar o seu uso em políticas públicas.  E, só para constar, são as mulheres negras (*e pobres*) que mais sofrem violência obstétrica e morrem no parto em nosso país.  A quem interessa não discutir esse problema?

São elas as que mais sofrem violência
obstétrica e morrem no parto.
Não se enganem, estamos diante de um projeto que parte de vários lugares: grupos do governos, entidades médicas, das igrejas etc.  No horizonte, o que temos é mais mulheres sofrendo e morrendo, mais mulheres sem o direito de fazer escolhas sobre seu corpo que em países realmente civilizados e laicos são coisa mais banal.

3 pessoas comentaram:

minha filha vai fazer 6 o mes que vem... em nenhum momento falaram sobre minha saude, minhas escolhas, minhas decisões... um dia chego na consulta e o medico ja marcou minha cesaria... o que importa pra eles não é nós e sim o falso moralismo

Sim, é terrível. Mas, para muita gente, questionar o médico é inimaginável.

Faz tempo que o CFM é uma entidade corporativista, que nada faz na direção do que é melhor para os pacientes, somente o que for mais conveniente e lucrativo para o médico.

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