quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Comentado Torre das Donzelas (2018): É preciso romper o silêncio, apesar da dor


Esta semana, a programação do Liberty Mall, o cinema "de arte" que fica perto do meu trabalho, deu-me um presentão, colocou dois filmes que eu queria assistir na primeira sessão, um deles, Torre das Donzelas.  Eu não esperava que viesse para duas da tarde, porque documentários normalmente passam nas sessões noturnas.  Enfim, Torre das Donzelas, da diretora Susanna Lira, revisita a ala feminina do Presídio Tiradentes, demolido em 1972, e entrevista algumas das prisioneiras que lá estiveram durante a Ditadura Cívico-Militar (1964-85), dentre elas, a Presidenta Dilma Rousseff.

Não será uma resenha longa, mas gostaria de destacar algumas coisas.  Torre das Donzelas não é um documentário histórico, mas um trabalho de memória e memórias são seletivas (*recomendo o vídeo do Leitura ObrigaHistória sobre o tema*).  O que lembramos e como lembramos tem a ver com quem somos como indivíduos e quais são os nossos grupos de pertencimento.  No caso de Torre das Donzelas, trata-se das memórias de mulheres de esquerda que foram presas nos anos de 1968-69 (*acredito*) e resistiram, não se deixaram destroçar pelo cárcere.

Elas foram convidadas a desenhar a prisão.  Algumas não conseguiram
lembrar, ou lembravam e não conseguiam desenhar.
A maioria, como Dilma, que tinha somente 19 anos, eram muito jovens e participavam da luta armada em um momento no qual os grupos de oposição não tinham mais direito à voz, ou ação política organizada.  Uma delas, então estudante da USP, fala da inevitabilidade da luta armada.  Os melhores professores tinham ido embora, ou sido presos, os alunos mais legais, ou melhores amigos, estavam na clandestinidade, só tinham sobrado os chatos e os reacionários.  Ela não queria ser um deles.

A tal Torre das Donzelas era o pavilhão feminino do Presídio Tiradentes.  Lá, as presas políticas ficavam apartadas das presas comuns.  Havia o medo de que alguma presa fosse uma espiã infiltrada, mas, no fim das contas, a experiência da prisão estreitou laços.  Umas ficaram meses.  Outras, como Dilma, três ou até mais anos.  Uma fala que foi levada de lá para cá, mas era na Torre, com as companheiras, que se sentia segura.  Os carcereiros e agentes lhes diziam que comparado à sede da OBAN (Operação Bandeirantes), ou o 2º Exército, onde nem registro os presos tinham, ou ainda o Doi-Codi, a Torre era como o paraíso em contraste com o inferno e o purgatório.  Só que algumas ainda eram tiradas da Torre para serem torturadas e, ao voltarem, eram apoiadas pelas colegas de infortúnio.

A prisão reconstituída. Interessante foi a fala sobre as arquitetas
presas que decidiram reorganizar o espaço, tomar posse
dele, humanizá-lo, à revelia dos carcereiros.
A narrativa do filme fala do momento do AI-5 e o que se desdobrou a partir desse ponto.  Em um dado momento, uma das entrevistadas diz que em 1970-71, o governo não prendia mais, ele simplesmente matava.  Sim, foram os anos mais pesados do Regime Militar.  E aquelas mulheres tiveram que sobreviver à muitas torturas, temendo não resistir e denunciar os companheiros de luta, enquanto outros morreram.  Todas sonhavam como um mundo melhor, o manifesto lido por uma das ex-presas falava de princípios fundamentais como liberdade.  Aliás, o direito de lutar contra a tirania, e era assim que elas liam o sistema, estava assentado na Declaração de Independência dos EUA, na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e em muitos outros. 

É preciso ressaltar, no entanto, que Torre das Donzelas não é um documentário padrão, não é como Os Militares da Democracia: os militares que disseram Não (2014) ou Os Advogados contra a Ditadura: Por uma questão de Justiça (2014), por exemplo, que também trazem memórias de pessoas que sofreram durante o Regime Militar.  Primeiro, porque todas as entrevistadas de Torre das Donzelas, talvez, menos Ilda (*falo dela daqui a pouco*), eram militantes de esquerda convictas, elas tem lado, portanto.  Segundo, porque trata-se de um  documentário experimental que reinventa os acontecimentos, tomando como referência algumas ferramentas do psicodrama, articuladas num jogo de reconstrução cênica com o apoio de uma instalação de arte semelhante ao ambiente da prisão.  Para muitas daquelas ex-presas, foi uma imersão difícil.

De volta ao cárcere.
Era visível a emoção das mulheres que participaram do documentário, as que puderam revisitar a prisão e as que gravaram de longe, como a presidenta Dilma.  Eu iria criticar a ausência dela na gravação conjunta, mas acabei de ler que as  gravações ocorreram durante o impeachment.  Dilma não podia se deslocar para as gravações e foi, sim, muito generosa em gravar seu depoimento.  E corajosa, também, aliás, coragem é seu principal traço de caráter.

Outro depoimento feito à parte foi o de Ilda Martins da Silva, viúva de Virgílio Gomes da Silva.  Ela conta que nunca foi militante, mas era casada com um quadro importante Partido Comunista Brasileiro (PCB).  Vê-se que tratava-se de uma mulher humilde, não como a maioria das mulheres que foi aprisionada, de classe média, universitárias, enfim, mas esposa, mãe e dona de casa.  Seu depoimento fala da dor de ser separada dos filhos, quando foi presa, ela tinha um bebê de 4 meses.  Deram-lhe uma injeção para cortar seu leite, a torturaram e ameaçaram torturar seus filhos na sua frente.  Ela nada tinha a falar.  Ilda comenta das companheiras que a recriminavam por chorar pelo marido morto e pelos filhos.  Revolucionário não chora.  Já outras, a acolhiam e enxugavam suas lágrimas.  Formas diferentes de encarar a dor, eu diria.

Senhorinhas sorridentes, um dia foram mocinhas aprisionadas.
Uma das questões que são trazidas marginalmente, mas de forma contundente, é o sofrimento das torturadas que poderiam falar e denunciar companheiros levando-os a morte.  Dilma diz que tem orgulho de ter mentido e desfaz qualquer ideia de heroísmo.  A residência se dava minuto à minuto, mais cinco, mais três e, assim, se conseguia sobreviver à tortura.

Mas a tortura é somente o início do filme, o objetivo do documentário é falar da Torre das Donzelas e de como aquelas mulheres fizeram o melhor da situação terrível da prisão.  Os laços que criaram, os livros que leram juntas, as discussões, os trabalhos manuais feitos para ajudar a família a ganhar algum dinheiro (*crochê, tricô, bordados etc.*), a manutenção da autoestima, a segurança que era maior no cárcere do que na rua.  Claro que essa visão do cárcere é romantizada, é uma forma de proteção, de conseguir sobreviver sem quebrar.  A própria Dilma comenta sobre isso.

Como lidar com as lembranças?
Algo que aparece marginalmente, mas é citado de forma contundente é de como as mulheres eram torturadas de forma especial, isto é, o fato de serem mulheres parecia dar mais raiva aos torturadores e tudo assumia um caráter sexual e misógino.  Em dado momento, elas comentam que os companheiros de luta também as discriminavam.  No geral, não as queriam nos treinamentos, porque engravidavam e menstruavam, enfim, elas seriam excluídas se não lutassem.  E elas tomavam como exemplo as mulheres que lutaram na Guerra Civil Espanhola e na clandestinidade na II Guerra Mundial.

Enfim, um dos problemas que aponto no filme é que o nome das participantes só aparece no final.  Queria aquela legenda embaixo da pessoa, quando ela aparecesse da primeira vez.  Participam do documentário, além de Dilma,  Ana Bursztyn-Miranda, Maria Aparecida Costa, Rita Sipahi, Rioco Kayano, Rose Nogueira, Elza Lobo, Dulce Maia, Nair Benedicto, Leslie Beloque, Eva Teresa Skazufka, Robêni Baptista da Costa, Guida Amaral, Marlene Soccas, Maria Luiza Belloque, Nair Yumiko Kobashi, Ieda Akselrud Seixas, Lenira Machado, Ana Mércia, Ilda Martins da Silva, Iara Glória Areias Prado, Ana Maria Aratangy, Darci Miyaki, Vilma Barban, Telinha Pimenta, Sirlene Bendazzoli, Nadja Leite, Leane Ferreira de lmeida, Maria Aparecida dos Santos, Lucia Salvia Coelho e Janice Theodoro da Silva.

O portal tombado é o que resta do Presídio Tiradentes.
A parcialidade não é algo que deve ser apontado como defeito, porque é um trabalho de memória e o nosso lembrar é somente nosso.  De qualquer forma, a pesquisa histórica corrobora as informações sobre prisões, torturas, desaparecimentos, notícias falsas lidas em horário nobre no Jornal Nacional.  A mensagem forte do filme, algo que me deixou particularmente tocada, é que muitas daquelas mulheres, devido às torturas, às violências sofridas, não conseguiram falar sobre a sua dor e suas experiências.  

Eu as entendo muito bem, mas o silêncio sobre a nossa Ditadura possibilitou que chegássemos onde estamos.  Se tivéssemos mais documentários, se eles fossem exibidos nas escolas, nas universidades, talvez não tivéssemos entrado nessa situação horrorosa com gente negando a violência dos anos de Ditadura, ou justificando atos desumanos com base em "Ah, mas eles queriam instalar uma ditadura no Brasil, os militares estavam salvando a democracia."  Sei...  Aliás, estamos vivendo ainda hoje na Ditadura, ela nunca terminou, nunca foi exorcizada, porque ficamos calados, sem expor os seus horrores da forma ampla como nossos vizinhos fizeram.  

A diretora.
Torre das Donzelas não é o melhor documentário que eu vi sobre o período do Regime Militar, mas é aquele que dá voz às mulheres, seus sentimentos, percepções, como muita sensibilidade.  Sobre o período, há várias vozes que precisam ser ouvidas: operários/as, índios/as, religiosos/as, professores/as etc.  E é preciso correr.  Duas das mulheres que participaram do filme, não o viram lançado, o "in memoriam" aponta para a finitude da vida.  Sim, podemos partir, mas as nossas memórias e a história precisam ficar e, em muitos casos, filmes são mais contundentes que livros.  Se puder, assista ao documentário e aos outros dois que eu linkei na resenha.  Eles estão no Youtube.

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