quinta-feira, 26 de março de 2020

As histórias que distorceram a memória popular norte-americana da guerra civil (Artigo Traduzido)


Comecei a traduzir esta entrevista da revista Time acreditando que iria falar de E o Vento Levou, o filme completou 80 anos em 2019 e eu nada comentei no blog.  Mas era só um engodo, o assunto da entrevista com Cody Marrs, que é especializado em literatura norte-americana e mais especificamente a Gerra de Secessão, é discutir a memória sobre a guerra, o falseamento das narrativas com o intuito de anular a questão da escravidão e, de uma certa forma, oferecer consolo ao Sul derrotado.  

A memória pode pertencer a um grupo específico ou transcendê-lo de alguma forma, mas é sempre um campo de batalha.  Vivemos isso hoje, no Brasil, em relação à Ditadura Cívico-Militar (1964-85).  Há o que os historiadores e historiadoras dizem tendo as fontes como parâmetro, há a memória dos que viveram a época, participaram dos acontecimentos.  Por serem indivíduos, sua memória é limitada pela sua experiência pessoal, seu pertencimento social (*classe, raça, gênero, filiação religiosa etc.*) e, ao mesmo tempo, é uma reconstrução do passado a partir do presente e sob uma ótica afetiva.  Há, também, os grupos que disputam essas memórias com fins políticos.  

A escravidão foi a principal motivação da Guerra de Secessão
 e os negros lutaram na frente de combate.
Para alguns desses grupos, as memórias seletivas, localizadas, compartilhadas por grupos específicos, são mais concretas  e universalizáveis que a narrativa histórica.  E não pensem que estou dizendo que nós, historiadores, somos neutros, mas que estamos pautados por fontes, limitados por uma metodologia e orientados por um quadro teórico-conceitual.  Além disso, espera-se de um profissional de História o mínimo de responsabilidade. Sobre isso, recomendo um vídeo do Tese Onze com a participação do Icles do Leitura Obrigahistória. Já a literatura, assunto do artigo, também é orientada, mas não tem o compromisso com os fatos, pode fazer vôos que os historiadores não devem fazer.  

Enfim, como já tinha começado a traduzir, segui até o final, mas acaba sendo interessante e não sendo, por assim dizer.  Ainda preciso encontrar algo sobre E o Vento Levou para marcar a data.  E, só para constar, eu gosto muito de e o Vento Levou, do filme, que por milagre consegue ser muito bom, e do livro que é extremamente interessante, mesmo que com todos os problemas de sua época, com o racismo, por exemplo.  E eu considero a Scarlet O'Hara uma personagem de uma imensa riqueza para discutir uma série de questões, especialmente, papéis de gênero, no livro ainda mais e não somente ela, mas a Melanie, também.  Cada uma de sua maneira, são mulheres muito poderosas e guiam a história.  Mas segue o artigo. 


O livro de Cody Marrs.  Eu compraria,
se o dólar não estivesse descontrolado.
As histórias que distorceram a memória popular americana da guerra civil
OLIVIA B. WAXMAN 

Mais de oito décadas depois de lançado, E o Vento Levou, de 1939, permanece, ajustado pela inflação, o filme com maior bilheteria de todos os tempos. O filme e o romance de Margaret Mitchell, de 1936, no qual ele se baseia, continuam a dominar a memória da cultura pop americana sobre a Guerra Civil - e um novo livro analisa mais profundamente por que esse é o caso e por que é importante.

Cody Marrs, autor de Not Even Past: The Stories We Keep Telling about the Civil War, falou à TIME sobre quem direcionou a memória americana da guerra em suas conseqüências imediatas, por que E o Vento Levou é tão popular e quais outras histórias da guerra devem ser melhor conhecidas.

Seu trabalho analisa as histórias que moldaram a memória americana da Guerra Civil. O que faz uma história da Guerra Civil durar?

Surpreendeu-me o fato de ter muito pouco a ver com o que é historicamente preciso ou não, e muitas vezes tem muito menos a ver com sua qualidade como narrativa do que você imagina. O principal determinante em termos de se uma história será bem-sucedida ou não, se decolará ou será esquecida é: Ela nos diz algo sobre nós mesmos como pessoas?

E o Vento Levou fornece uma resposta muito particular, um senso de ordem, significado e pertencimento ao público branco, segundo o qual a escravidão era uma instituição benigna e a Guerra Civil não precisava acontecer, mas era um processo de amadurecimento necessário para o país .

Desculpe, mas E o Vento Levou fala de superação
e isso é importante durante uma grave crise econômica.
Como o que estava acontecendo na década de 1930, quando o livro e o filme E o Vento Levou foi lançado, influenciou sua popularidade?

Durante a Grande Depressão, as pessoas têm essa falta de comida, segurança, necessidades básicas que precisamos para o bem-estar. Quando você vê o livro e o filme, o que vê é luxo. [1] É uma fantasia poderosa e atraente em um momento de falta. [Mas] acho que a razão pela qual o E o Vento Levou persistiu na cultura americana é diferente e tem mais a ver com raça e identidade. Também é uma história de romance. Quem não gosta de uma boa história de romance? Isso faz parte disso.

Então, o que E o Vento Levou está certo e errado sobre a Guerra Civil?

O que está certo é que a guerra foi uma crise existencial para muita gente no sul. Isso criou uma oportunidade real para a "Causa Perdida" - os propagandistas intervieram e usaram essa crise para seus próprios fins. O equívoco mais comum sobre a Guerra Civil é que não se tratava realmente de escravidão. Essa é uma ideia fundamental em E o Vento Levou, de que é um ato de brutalidade do norte.

A representação da escravidão em E o Vento Levou
é típica de sua época e, sim, a gente tem que discutir
esse ponto, porque era aceitável (*apesar de inaceitável*) e deixou de ser.
Como a causa perdida passa a dominar a memória da Guerra Civil? Existe alguma coisa sobre as origens dessa ideia de que as pessoas entendem errado hoje?

Se você precisar resumir, a Causa Perdida é uma versão revisionista da Guerra Civil, segundo a qual a guerra não era uma luta pela escravidão, mas por interpretações constitucionais. Segundo a causa perdida, a secessão era um direito legal e a guerra era o resultado da agressão do norte. O motivo é falso, porque a Guerra Civil foi, sem dúvida, sobre a escravidão e todos na época sabiam disso. Mas após a Guerra Civil, várias partes interessadas, principalmente políticos confederados e soldados confederados, desempenharam um papel importante na reformulação do que se tratava a guerra. Alexander Stephens, vice-presidente da Confederação, escreveu um livro chamado Uma visão constitucional do fim da guerra entre os Estados. Jefferson Davis escreveu um livro semelhante, assim como Edward Pollard, editor e influenciador da época.

Acho que o que aprendi que ainda não havia compreendido antes é que a razão pela qual [a ideia] se tornou poderosa é por causa de um coquetel peculiar de circunstâncias e propaganda. A circunstância tem a ver com a destruição do sul. As pessoas estavam tentando descobrir como juntar as peças novamente, e a causa perdida forneceu isso.

O mito do "Irmão contra Irmão" e a culpabilização
dos negros pelo conflito andam juntas.
Alguma história sobre a Guerra Civil chegou perto de E o Vento Levou em popularidade?

Um que era muito popular que não é tão popular agora é Brother Against Brother (Irmão Contra Irmão)[2]. Foi provavelmente a narrativa principal da Guerra Civil em todo o Norte e em partes do Sul por um longo período no século XIX e no século XX. Definitivamente, havia alguns casos reais de algumas famílias importantes nos estados fronteiriços que dividiam suas lealdades, e parte disso tinha a ver com o modo como as pessoas pensavam sobre identidade e lealdade na época e suas lealdades eram muito mais locais e familiares do que se tornaram mais tarde. Mas essas histórias foram contadas e mitologizadas.

O que dizem os recentes debates sobre memoriais confederados sobre como nos lembramos da Guerra Civil?

Ao longo do livro, tento situar os memoriais confederados como não memoriais da Confederação, mas histórias retroativas sobre o que era a Confederação e sobre o que era a Guerra Civil. Há uma diferença. Na minha perspectiva, eles não são realmente lições da história da Guerra Civil. São lições da história das memórias americanas sobre a Guerra Civil, precisamente porque todas foram criadas após a Guerra Civil, às vezes décadas depois, para garantir que a memória da Confederação permanecesse viva.

A escultora Meta Vaux Warrick Fuller,
procurem pelas obras dela.
Que história real sobre a Guerra Civil merece ser mais lembrada?

O livro começa com André Callioux, que lutou por sua liberdade e desempenhou um grande papel na comunidade negra de Nova Orleans nas décadas de 1850 e 1860, até sua morte. Ele foi o primeiro soldado negro que morreu de uma morte muito pública, comentada nos jornais. Sua memória foi transmitida em poemas, mas sua vida foi desconsiderada quase imediatamente assim que ele morreu. Atiradores confederados garantem que os soldados da União não possam recuperar seu corpo, de modo que seu corpo se decompõe lentamente no campo de batalha por semanas a fio, e há esse tipo de desrespeito pelas vidas negras contidas nisso, que é redobrado no fato de que sua lembrança vai se apagando da memória dos americanos. Parte do que estou tentando fazer no livro é garantir que essas histórias sejam contadas.

Quais artistas e escritores capturaram o espírito da Guerra Civil com precisão?

Há alguns que eu gostaria que fossem discutidos mais. The Wave (1929) de Evelyn Scott se apresenta através dessa metáfora de rolhas flutuando no oceano e para a autora, essa é uma metáfora do nosso papel na história. Cada capítulo é da perspectiva de uma pessoa diferente - livre, escravizada, norte, sul. Jubilee (1966) de Margaret Walker é um romance impressionante, uma espécie de reescrita negra de E o Vento Levou. É extremamente consciente do fato de que a liberdade não é apenas algo feito de cima para baixo, mas pelo qual se deve lutar e que é continuamente alcançado, adquirido, protegido e mantido ao longo do tempo. O livro me levou à obra de arte de Meta Vaux Warrick Fuller, uma escultora negra e um dos grandes artistas do século XIX e grandes artistas americanos. Ela estudou escultura clássica e esculpiu pessoas livres e alguns dos líderes da União.

Martin Luther King Jr.
Como os aniversários da Guerra Civil afetaram a memória pública do conflito?

Esses aniversários desempenham um grande papel, porque são ocasiões públicas em que se deve lembrar a luta. A década de 1950 é importante para influenciar a memória da Guerra Civil, mas é o centenário que me parece o maior. Não apenas o discurso de Martin Luther King Jr. "Eu tenho um sonho" acontece no Lincoln Memorial, mas também faz um discurso notável à Comissão do Centenário da Guerra Civil do Estado de Nova York que foi recentemente transcrita na íntegra. Ele diz que a Proclamação da Emancipação é um dos grandes atos históricos, mas também diz que isso é incompleto, situando-o no contexto da segregação imposta pelas leis Jim Crow.[3] Para mim, esse é um dos atos definidores da memória daquela época. Esse discurso de King realmente liga as décadas de 1860 à década de 1960 e diz que você não pode entender o que está acontecendo agora sem entender o que estava acontecendo naquele momento.


[1] Acho que ele dormiu na parte que mostra de sofrimento, fome e superação da adversidade.  Aliás, como entender E o Vento Levou sem isso?  O juramento de Scarlet, a luta para salvar Tara, o vestido de cortina e tudo mais.
[2] Acredito que o Norte e Sul, na verdade, a trilogia inteira, do John Jakes, flerte com esse mito do "Irmão contra Irmão".  Eu gosto dos livros, ainda que o autor não saiba criar personagens femininas.  A série de TV conserta um pouco essa inabilidade dele.
[3] Jim Crow foi o nome do sistema de castas raciais que operou principalmente, mas não exclusivamente, nos estados do sul e da fronteira, entre 1877 e meados da década de 1960. Jim Crow era mais do que uma série de leis rígidas contra os negros, mas algo que permeava toda a vida das pessoas e suas relações sociais.

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