sexta-feira, 15 de maio de 2020

100 Anos da Canonização de Joana D'Arc: Por que demorou tanto?

Dante Gabriel Rossetti

Faz cem anos hoje que Joana D'Arc (1412-1431), a camponesa que liderou os exércitos da França no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e foi morta na fogueira pelos ingleses, foi reconhecida como santa pela Igreja Católica.  Processos de canonização podem ser rápidos, ou demorados.  Eu estudei Clara de Assis e ela foi canonizada rapidinho, aliás, todos os fundadores da Ordem Franciscana o foram, mas quando você é uma personagem problemática, ou polêmica, ou quando não há interesse político, ou estratégico, as coisas podem demorar.  Joana D'Arc tinha tudo a seu favor para se tornar santa e tudo contra, por assim dizer.

Joana D'Arc nasceu em Domrémy, na região de Lorena na França e era filha de camponeses.  Com 13 anos, ela começou a ter visões e ouvir vozes que, posteriormente, foram identificadas como São Miguel, Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida de Antioquia.  Essas vozes lhe conferiram algumas missões, libertar os franceses do cerco imposto à cidade de Orleans, fazer com que o rei fosse coroado em Reims, mas há controvérsias quanto a tomar Paris. Quando ela tinha 16 anos, o rei Carlos VII (1403-1461) ainda não havia sido coroado quando a recebeu, em Chinon.  Segundo consta, ele estava disfarçado entre os cortesões e a moça o identificou sem titubear.  Joana teria ido até ao verdadeiro rei, se curvado e dito: "Senhor, vim conduzir os seus exércitos à vitória".  O delfim decidiu confiar nela.

Leelee Sobieski como Joana d'Arc (1999).
Joana foi vitoriosa em Orleans e, um mês depois, em 17 de julho de 1429, Carlos foi coroado na cidade de Reims.  A partir daí, a teríamos um impasse, Joana acreditava ter cumprido sua missão, mas o rei e seus soldados não queriam abrir mão de sua presença na guerra.  A jovem era um símbolo patriótico em um momento no qual não havia uma França unificada, alguns senhores feudais, como o poderoso Duque de Borgonha tinham uma agenda própria, e os franceses precisavam se unir para expulsar os ingleses.  Carlos tentou tomar Paris, mas a empreitada foi um fracasso e a jovem foi ferida.  

Na primavera de 1430, Joana d'Arc retomou a campanha militar e passou a tentar libertar a cidade de Compiègne.  Lá ela foi capturada durante o combate pelos burguinhões (*súditos do Duque de Borgonha*), foi mantida prisioneira por alguns meses, interrogada pelo próprio duque e foi vendida aos ingleses.  Continuou presa, agora na cidade de Ruão, onde foi julgada pela Inquisição, afinal, ela era uma jovem mulher, que dizia ouvir vozes, se vestia com roupas masculinas e comandava exércitos.  Herege, claro.  Ela estava no lugar errado e era uma ameaça não somente aos ingleses, mas à ordem patriarcal.

Única representação contemporânea de Joana D'Arc. 
Desenho de Clément de Fauquembergue (10/05 /1429)
Chegamos a um ponto em que precisamos fazer uma ressalva.  A sede da Igreja Católica Apostólica Romana estava em Avinhão, era a época do chamado Cativeiro da Babilônia (1309-1377).  Se a sede da Igreja Católica tinha sido capturada pelos franceses, agora, estava nas mãos dos ingleses.  Então, a instituição não tinha autonomia para decidir e era interesse dos ingleses e seus aliados condenar Joana D'Arc.  Eu subordinaria qualquer argumento religioso ao interesse político nesse ponto.

Não há nada que comprove que Joana tenha sido fisicamente torturada, algo mais que comum na época, mas psicologicamente ela foi. Escárnio, ameaças, a possibilidade do estupro, além disso, ela era uma adolescente sozinha, uma camponesa, provavelmente analfabeta e sem condições de oferecer uma defesa em um julgamento que já tinha o resultado pré-decidido.  Foram cerca de cem acusadores e os interrogatórios duraram quatro semanas. Foi condenada por usar roupas masculinas, algo inadmissível para uma mulher e, por ouvir vozes que foram consideradas obra do demônio.  Joana também foi acusada de relapsa, isto é, ela aceitou a sentença, aceitou se arrepender, vestiu roupas femininas para em seguida, voltar atrás, e retornar ao "pecado".

Iluminura de Joana D'Arc do século XV.
Citando agora a matéria da BBC: ""O julgamento que a levou à fogueira é repleto de iniquidades e mentiras", afirma à BBC News Brasil o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, chefe do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).  "O processo buscava destruir a reputação de Joana para invalidar a posse de Carlos VII como rei da França. Afinal, se uma bruxa o fez rei, ele não pode ser reconhecido como rei — eis a tese inglesa que usou Joana como pretexto ideológico. Não foi um processo legítimo e com garantias legais. Já havia a sentença de morte antes das oitivas.""  Bom dizer que durante esse tempo todo, o rei que ela ajudou a coroar, não mexeu uma palha para salvá-la.

Em 30 de maio de 1431, Joana foi conduzida a Praça do Velho Mercado de Rouen e queimada viva.  A morte na fogueira era meio que regra para um herege, porque permitia a destruição do seu corpo impedindo qualquer forma de veneração.  Isso, porque o corpo do santo dentro do pensamento católico também tem virtude, por isso, o culto às relíquias.  Suas cinzas foram lançadas no Rio Sena.

Sobrevivem três cartas ditadas por Joana D'Arc. 
Ela sabia assinar seu nome.
Quatro anos depois, em 1453, os franceses expulsaram os ingleses. O rei Carlos VII quis a revisão do caso da jovem, entre outras coisas, porque não queria estar ligado a alguém condenado por heresia. O papa Calisto III (1378-1458) a anulação póstuma da condenação de Joana d'Arc.  Então, por qual motivo ela não foi canonizada de imediato?  Porque ela era, sim, uma figura controversa.  Mulheres não deveriam ser militares.  Ela era uma camponesa.  Ela ouvia vozes.  Como lidar com uma figura como Joana.  Ela entrou na fila da canonização.

Nesse meio tempo, a heroína foi tomada como símbolo nacionalista.  Mais tarde, depois da Revolução Francesa, católicos ultraconservadores franceses e  monarquistas passaram a colocá-la nos seus estandartes.  A própria bula de canonização acena para esse pessoal, apontando o interesse da Igreja Católica de estimular a fé dos franceses.  Já no século XX, as feministas passaram a olhar para Joana como alguém que poderia ser incluída entre suas heroínas.  Ela despertou a atenção dos espíritas.  Há quem defenda que ela era bruxa mesmo, mas que, na verdade, ela era praticante de cultos pagãos antigos junto com Gilles de Rais (*esse cara é um dos mais notórios serial killers da história, gosto dessa teoria, não*)   Outros começaram a teorizar sobre sua orientação sexual e identidade de gênero.  Sua imagem é até usada em projetos de empoderamento de meninas.  

Estátua de Joana D'Arc, place des Pyramides, Paris.
Na verdade, a Donzela de Orleans pode ser apropriada por muita gente e, no fim das contas, como os relatos sobre ela não são muito precisos e ela nada deixou por escrito, não podemos dizer nada com muita certeza, salvo que ela era muito jovem, muito católica, carismática (*poque convenceu uma galera a apoiá-la e segui-la*) teve uma carreira meteórica e foi morta.  Ficou esquecida por séculos para retornar no século XIX e ser finalmente canonizada por papa Bento 15 (1854-1922), que a exaltou como católica, guerreira por amor ao seu país, condenada injustamente e que graças ao seu sacrifício possibilitou a vitória dos franceses e os ingleses perderam tudo.  Quer dizer, quase tudo, sobrou o porto de Calais, mas isso, comparado com os domínios que os ingleses tiveram na França, era nada.

Não sei se o texto ficou interessante, mas queria marcar a data.  Aliás, acho que deveriam ter sido lançado algum material sobre Joana D'Arc este ano.  Fazer agora, no meio da pandemia, não rola.  Mas há muitos filmes sobre ela, vou listar alguns: Jeanne d'Arc. França (1899) de Georges Méliès, Joan the Woman (1917) de Cecil B. de Mille, La Passion de Jeanne d'Arc (1928) de Carl Theodor Dreyer (*considerado um dos melhores*), Joan of Arc (1948) de Victor Fleming e Giovanna d'Arco al rogo (1954) de Roberto Rossellini (*ambos estrelados pela Ingrid Bergman*), Saint Joan (1957) de Otto Preminger, Procès de Jeanne d'Arc (1962) de Robert Bresson, The Messenger: The Story of Joan of Arc ou Jeanne d'Arc (1999) de Luc Besson, Joan of Arc (1999) de Christian Duguay  (*Leelee Sobieski faz Joana D'Arc e é um dos meus favoritos*).  

Joana D'Arc, acho que é um fanart de Hetalia.
Joana D'Arc aparece em vários mangás e animes, dentre eles, Hetalia (ヘタリア) e  Baraou no Souretsu (薔薇王の葬列). Nessa pesquisa acabei descobrindo que Joana D'Arc apareceu em uma série que eu gosto muito, Forever Knight (1992–1996).  Vi uma foto do episódio e lembrei, o protagonista, que foi transformado em vampiro no século XII, conheceu Joana D'Arc e lembra dela quando investiga um caso, ele é policial, que poderia ser resolvido se um padre rompesse seu voto em relação ao sigilo de confissão.

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