quarta-feira, 6 de maio de 2020

"Quem lava as mãos, o faz em uma bacia de sangue": Preciso dividir meu mal estar com vocês


Anteontem, o ator Flávio Migliaccio tirou a própria vida.  Quando a notícia vazou, dada a idade do ator, 85 anos, pensei que era mais um caso lamentável de COVID-19, mas era algo mais simples por assim dizer, algo mais melancólico, também.  Migliaccio, assim como Daniel Azulay que se foi também este ano, marcou minha infância por causa do programa As Aventuras do Tio Maneco.  A série passava na TVE (1981-1985) e mostrava as aventuras do protagonista que morava em uma casa no interior com seu pai cientista e recebia a visita dos sobrinhos.  Qualquer coisa que ele tenha feito antes, ou depois, e ele fez muita coisa, não tem o significado afetivo que Tio Maneco tem para mim.  



Anteontem, enquanto digeríamos sua morte, Migliaccio teve sua carta de suicídio exposta ao público.  Um texto curto, mas doído, e que refletia toda a amargura que alguém que viveu a Ditadura Cívico-Militar em nosso país (1964-85) e envelheceu para ver a tragédia que se desdobra diante de nossos olhos, da PEC dos gastos, passando pela reforma trabalhista e da previdência até o coronavírus e o "E daí?" do atual presidente pode sentir.    Como vivemos em um momento em que os maus parecem testar os limites para descobrir o óbvio, que não há limites, além de vazarem sua carta, que falava, entre outras coisas, de como os velhos são maltratados em nosso país, ainda fotografaram e divulgaram seu cadáver por aí.  A família irá processar o Estado, espero que tenha algum alento.



Mas quando estávamos ainda digerindo tudo isso, e olha que Aldir Blanc, autor do hino da Anistia (*vídeo acinma*) tinha morrido na véspera (*talvez por não ter conseguido uma UTI no tempo certo, apesar do CEO da XP festejar o fato da curva do COVID-19 ter se achatado entre os mais ricos*), o grande Lima Duarte veio à público não somente externar o seu pesar pela perda de alguém que, a julgar pelo vídeo, foi seu amigo, mas para falar do seu póprio desespero: “Eu te entendo, Migliaccio, quando sentimos o hálito putrefato de 64, o bafio terrível de 68... eu não tive a coragem que você teve”.  Domingo, mais uma vez, houve gente na rua junto com o presidente, inclusive, pedindo para que o país seja definitivamente arrastado para o passado sombrio que muitos deles nunca viu, um passado no qual aquele tipo de manifestação não seria admitido, enquanto bradando por "liberdade", essa palavra que, junto com "democracia", costuma rolar de boca em boca, inclusive dos mais vis ditadores, sempre desprovida de qualquer sentido.  Enfim, o vídeo de Lima Duarte está aí embaixo:


Eu acordo todo dia me sentindo mal, sentindo nojo, busco as forças que sei que tenho dentro de mim para seguir sorrindo e trabalhando, inclusive para que a minha Júlia possa ter, enquanto isso depender de mim somente, uma infância feliz.  Agora, esse nojo que habita em mim é muito maior pelos que lavaram suas mãos, do que pelos que conscientemente foram lá e apertaram 17.  Havia outros caminhos, vocês preferiram "lavar as mãos" e a bacia, como citou bem Lima Duarte, está cheia de sangue dos pobres, dos velhos, das crianças cuja mortalidade dispara, dos índios e por aí vai.  Para quem quiser se envergonhar mais um pouco, segue uma análise do Brasil em 2 minutos e 20 segundos feita por um jornalista português importantes.

1 pessoas comentaram:

Estão vencendo os lúcidos pelo cansaço. Infelizmente. Porque cansa ver tanta gente que considerávamos pessoas comuns, gente de bem, defendendo um governo tão vil e normalizando esse discurso insano de violência de todos os tipos.

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