sábado, 8 de agosto de 2020

Quando foi que todo não-branco se tornou negro? Algumas reflexões sobre o racismo nosso de cada dia.

Uma coisa que me incomoda, e não é de hoje, é que todo mundo que não é socialmente branco virou negro. Veja, eu não vou entrar em disputas sobre auto-identificação.  Não estou, também, discutindo colorismo.  Não sabe o que é?  Eis a definição de um artigo sobre o tema do site Geledés "O colorismo* ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é muito comum em países que sofreram a colonização europeia e em países pós-escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer.".  

Colorismo é utilizado sistematicamente para dividir os oprimidos, fazer com que aqueles que tem a pela mais clara se sintam mais próximos do seu opressor (socialmente) branco do que dos negros de pela mais escura.  Existem negros de várias cores e existem pessoas que não são brancas e que não são necessariamente negras e elas podem sofrer racismo, também.  Tomei como exemplo o título da matéria do Leonardo Sakamoto.  Nesses últimos dias, vieram à público dois casos de racismo  (*Rio - São Paulo*), dois exemplos em que a cor da pele do sujeito, por acaso, dois jovens entregadores de nome Matheus, foi determinante na violência sofrida por eles.  Os dois eram negros?  Para mim, não.  Isso torna um deles branco?  De forma alguma.  Deixa de ser racismo?  Definitivamente, não.

Olha, há racismo contra indígenas, porque é repetido, nos últimos tempos ainda mais, que índio é vagabundo, é preguiçoso, indolente, para usar uma palavra que parece menos ofensiva, que tem isso no seu DNA.  Curiosamente, anos atrás discuti com uma moça do movimento negro que dizia que "índio fora da tribo era branco", porque todos os signos associados aos indígenas em nosso país eram positivos.  Não sei de qual Brasil ela falava, mas, enfim... Retornando, há racismo contra quem é visivelmente miscigenado, especialmente,  quem se enquadra no estereótipo do "nordestino que é antes de tudo um forte". Trabalhador e resistente, verdade, mas feito para as atividades braçais, porque intelectualmente não seria tão desenvolvido, e feio, indiscutivelmente feio, porque não tem os traços "finos" do branco, porque normalmente não é alto e "elegante", afinal, traz no corpo as marcas da miscigenação e da pobreza.  Pode fazer o tipo cômico em novelas, em filmes, programas como Os Trapalhões, mas para galã não serve, não em condições normais.  Chamado de cabeça chata, pau de arara, paraíba, baiano. Nada disso é elogio, são todas formas de discriminar e racializar nordestinos e seus descentes.  

Não sei as origens familiares do Matheus de São Paulo, mas eu seria muito mais propensa a apostar em uma dessas duas alternativas - indígena, ou nordestina - do que na identificação genérica de negro.  Abaixo coloquei a foto de Matheus e sua mãe, ela falou publicamente sobre a humilhação sofrida pelo filho.  Olha para eles.  Será que estaremos refletindo melhor sobre o racismo transformando todos os não-brancos em negros?  Acho que não.  O próprio agressor, que a família "provou" que é esquizofrênico, tinha um histórico interessante de atacar entregadores, pedreiros, seguranças do condomínio... Percebem o viés de classe?  De qualquer forma, ultimamente há muita gente boa defendendo essa lógica e tentando colocar judeus (*para muita gente todos os judeus são brancos, vocês sabem*) e todos os orientais  (*afinal, eles são todos iguais e se amam, provavelmente*) nesse balaio dos brancos.  Pergunte aos supremacistas brancos o que eles acham disso, perguntem aos coreanos se eles são iguais aos japoneses, pergunte aos judeus... Ah, mas esse tipo de gente nunca pergunta nada, eles montam suas teorias e tentam enquadrar a realidade nos seus esquemas de explicação do mundo.

Curiosamente, porque racismo não é monopólio dos (socialmente) brancos e é algo importante para dividir os mais fracos, quando estive em Sergipe pela primeira vez, em 1994, meus primos que se viam como brancos discriminavam os indígenas e negros.  E na minha família ainda é possível ouvir dos mais velhos "Tal pessoa é negra, mas é limpa e educada.".  Isso na mente enviesada dos que se pensam brancos nessa hierarquia de cores e traços físicos (*fenótipo*) e que nunca foram expostos aos que se veem como brancos de "verdade" (*pensem em Bacurau, ou sujeito que ofendeu o Matheus*) e tem dinheiro para afirmar seu ponto de vista, é um elogio.  

Meu pai, quando criança foi acusado de roubar o dinheiro de uma tia e apanhou muito, porque, bem, o autor da façanha só podia ser ele, afinal, era o mais preto da família.  O dinheiro foi encontrado dois dias depois dentro de um livro, minha tia-avó tinha esquecido que o colocara lá.  Meu pai nunca esqueceu, mas nunca conseguiu fazer reflexões sobre racismo para além do óbvio.  O apelido do meu pai entre os parentes do lado paterno (*meu pai e minha mãe são primos em primeiro grau*) é "Nêgo" e eu, filha de "Nêgo", sou "Neguinha".  Em alguns momentos de minha vida, sofri discriminação por ser vista como negra, mas, também, porque carrego aqueles signos associados à pobreza e que se mesclam com minhas origens nordestinas.  Abaixo: ""Ainda bem que ela nasceu clarinha".  Uma pessoa negra uma vez me disse isso falando da Júlia.  É racista?  Sem dúvida, mas eu entendo que aquela mulher deve ter passado por umas boas na vida por não ser clarinha.  Este quadro é o famoso "A Redenção de Can"."  Colocar legenda nesse novo blogger é impossível.

Eu posso ter subido vários degraus na pirâmide social em relação aos meus avós retirantes e boias frias, mas isso não vai me fazer ser reconhecida como branca.  Aliás, recentemente, perguntaram se eu era babá da minha filha em um ambiente elitizado de Brasília.  Era algo que eu esperava que acontecesse mais cedo, ou mais tarde, afinal, eu me pareço muito mais com as babás do que com as patroas.  Júlia provavelmente será reconhecida como socialmente branca NO BRASIL, eu nunca serei.  Posso alisar o cabelo, posso tentar mimetizar os comportamentos e a aparência das classes médias aburguesadas, mas tenho escrito no meu corpo as minhas origens mestiças.  Mas não me vejo como negra, não assumo esta identidade, ainda que, eventualmente, alguém possa me colocar nessa caixinha.  Eu não me importo, me dá mais material para análise, aliás.  Mas vou contar outros causos.

Houve uma professora do Colégio Militar de Brasília, muitos anos atrás, que foi discriminada por um responsável, não lembro se pai, ou mãe, porque era nordestina e a filha da criatura não entendia o que ela falava. O caldo ferveu e não terminou bem para a pessoa que ofendeu. A professora era socialmente branca, PORÉM tinha aqueles traços associados ao Nordeste, era baixinha, troncuda, parecida com muita gente da minha família pelo lado materno e com os parentes do meu marido. Enfim, havia motivos suficientes para discriminação. Convido, também, a lembarem do caso do presidente Lula, não precisa gostar dele, considerá-lo inocente, nada disso, só pensem que há forte dose de racismo e classismo na perseguição que ele sofreu e sofre. 

O fato de ser nordestino e trazer nele todas as marcas associadas à região, nunca foi esquecido pelos seus detratores.  E não adiantou se refinar, usar ternos bem cortados, ele não se tornou palatável por causa disso. Você será sempre visto como inferior e, pior, será visto como uma aberração, uma ofensa por aqueles que só tem como seu capital social a branquitude e/ou um sobrenome europeu, mas continuam nas classes menos favorecidas.  Não entendem que seu maior problema é não serem herdeiros, não o fato de não-brancos terem conseguido alguma ascensão social, ou, simplesmente, terem saído da miséria em número significativo graças ao ajuste do Plano Real e aos anos de governo petista.  Se não quiser ir até Max Weber para ler sobre essa questão, Jessé Souza tem feito livros e livros sobre o tema.  A leitura é bem acessível.

Tudo isso é racismo, também, que se mescla com classismo, ter cara de pobre torna você uma vítima em potencial da discriminação. E, no caso do entregador de São Paulo, ele era indiscutivelmente pobre e o moço (socialmente) branco e herdeiro não teve dúvida em tentar humilhá-lo. Os racismos são plurais e a questão de classe muitas vezes é determinante, especialmente, quando se trata de discriminar alguém que não seria visto como (socialmente) negro, mas que é não-branco e, portanto, inferior.  E não pensem que estou negando que um negro sempre será reconhecido como tal, que, mesmo enriquecendo, mais cedo, ou mais tarde, o racismo baterá na sua porta.  Alguns clubes de elite não aceitavam negros, e isso perdurou abertamente até os anos 1980, não por serem pobres, mas por serem negros.  Agora, fato é que o dinheiro pode agir como agente branqueador, tal e qual no livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão na qual um médico que era meio mulato, mas, ao ascender na vida, passou a ser visto como quase branco. 

Não basta ser educado, é preciso ser submisso.  E ouçam a música "Preto de alma Branca" se ainda não entendeu a mensagem. (*Esta seria a legenda*)  Enfim, espero que tenha deixado claro meu ponto de vista e que algumas reflexões precisam ser feitas sobre a multiplicidade do racismo, suas nuances e como o fator classe social, mesmo que seja somente o "ter cara de pobre",  tem papel em certos eventos absurdos que aconteceram nos últimos dias.  E, não, quem não vê a coisa como eu vejo não é mal intencionado, simplesmente, vê a questão de forma diferente, pode, inclusive, estar correto e eu, não.  Agora, quem sempre está errado é o racista envolvido nessas histórias horrorosas de agressão física e verbal.


4 pessoas comentaram:

Quando eu soube de ambas as notícias estava almoçando no momento, e tive vontade de vomitar, tamanho asco e incredulidade que senti. O caso de SP eu só conseguia ver um branco nojento que ajeitava o pint0 a todo instante, jorrando racismo e classismo com seu cúmplice que aparecia de costas. Esse Matheus avançou o passo, questionou, mas fico imaginando a pilha de nervos que não estaria naquela hora.

O caso do Rio eu vi, mais uma vez, uma truculência absurda e ninguém sabia quem eram os dois sujeitos que levaram o Matheus para "um cantinho ali conversar" (policiais à paisana? Seguranças do shopping? Da loja?). Colocaram o rapaz no chão, apertando-o e ameaçando-o. Mais uma vez vira notícia o caso de um homem negro ou não-branco (poderia ser uma mulher) perseguido "discretamente" dentro de um local/estabelecimento.

Eu ainda me assusto e me indigno com isso e acredito que continuarei porque nunca vou aceitar esse tipo de gente/conduta. Os responsáveis por esses atos violentamente racistas têm que ir todos presos, são o esgoto da sociedade, na verdade não têm capacidade pra conviver em uma.

(Ouvi a música Valéria.)

Sobre o abuso sofrido pelo rapaz no shopping carioca. Os 2 agressores tavam a paisana... e eram seguranças do shopping (segundo algumas fontes). Que eu saiba se eles forem realmente seguranças do shopping eles deveriam estar uniformizados! Eles se portaram como a Gestapo e outras polícias secretas. A paisana e prendendo de forma arbitrárias as pessoas.
Nem falarei das demais barbaridades. O pior é que tem "gente de bem" que passou a mão na cabeça desses brucutus. "Tem que jogar duro nos vagabundos" etc.

Sobre a injustiça que seu pai sofreu. Muitas pessoas que costumam ser arbitrárias com os filhos podem pagar caro quando ficarem velhas. Me falaram de um pai desnaturado que acabou passando necessidade na velhice e ainda por cima falava: - Meu filho não presta! Não me ajuda!

Ótimo texto! Eu concordo que classe também é um fator muito importante nessa análise. Acredito que colocar todos os "não-brancos" como "negros" é em parte responsabilidade do próprio poder público, quando passou a considerar todos os pardos como sendo negros na hora de divulgar os dados do IBGE. Um problema disso, como você apontou no texto, é o apagamento de todos que são de outras origens. Como ficam os descendentes de indígenas e os próprios indígenas? Os nordestinos, os orientais, aqueles com descendência árabe, os judeus e tantos outros grupos étnicos? Aposto também que tem uma influência norte-americana nisso, com a divisão entre "white" e "people of color". Eu sou de Goiás e sempre achei questionável classificarem todos os "pardos" goianos como negros - no meu caso mesmo, sempre fui confundida com oriental, considerada exótica e estrangeira, e sofri um tipo de racismo quando era criança e tinha a pele morena, cabelos pretos lisos e olhos "puxados" escuros, igualzinho meu pai, eu também era a "Neguinha" e a "bolacha queimada". Mas minha etnia provavelmente é resultado de uma miscigenação com presença indígena forte. Hoje eu estou mais para socialmente branca exótica, mas será que isso muda o que eu vivi na infância? Não sei. É uma discussão complicada e talvez essa divisão binária possa ser o melhor caminho para combater o racismo. Contudo, fico pensando em como mesmo brancos pobres também são alvo de preconceito de classe e não é porque não temos uma expressão como "white trash" que não signifique que não sejam vistos assim por aqui também. Vide o próprio Lula, "o bêbado, o analfabeto, o burro" para a imprensa.

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