domingo, 25 de outubro de 2020

Comentando Chocante (Brasil/2017): A recusa em sair dos anos 1990 e como isso pode render um filme divertido.

Sexta-feira, enquanto Júlia estava assistindo aula on line e eu acompanhando, decidi assistir ao filme Chocante.  Lembro de ter visto o trailer no cinema em 2017, 2018, mas não tinha con seguido ver o filme.  Não sei por qual motivo, lembrei dele e fui atrás do arquivo.  Enfim, começo escrevendo que Chocante é um filme mediano para bom que ganha brilho aos meus olhos, porque conseguiu reconstituir de forma competente a primeira metade dos anos 1990, aquele momento muito constrangedor da TV brasileira.  O filme é basicamente sobre um grupo de sujeitos que continua preso nos anos 1990, frustrados com o sucesso que eles acreditam que lhes foi roubado.  Mas vamos ao resumo da história.

Em 1995 a boyband Chocante era febre no Brasil inteiro com o hit Choque de Amor, porém o sucesso durou meros 8 meses.  A separação foi conturbada e nunca ficou explicado por qual motivo um dos componentes da banda, Téo  (Matheus Corcione), esmurrou o galã do grupo, Tarcísio (Rafael Canedo), no palco do programa do Gugu. Após 20 anos sem se verem Tim (Lúcio Mauro Filho), Téo (Bruno Mazzeo), Cley (Marcus Majella) e Toni (Bruno Garcia) tomaram rumos diferentes na vida e se reencontram no funeral de Tarcísio. 

Nostálgicos e estimulados pela presidente do fã clube da banda, Quézia (Débora Lamm), eles decidem retomar a banda para fazer um show comemorativo.  Por sugestão de Quézia, eles procuram o antigo empresário da banda, Lessa Vigário (Tony Ramos), que tinha perdido muito dinheiro quando da separação do grupo.  Ele topa empresariar o revival do Chocante, mas impõe a inclusão de Rod (Pedro Neschling), uma sub-celebridade de 20 e poucos anos, como quinto integrante visando atrair o público jovem. Só que ninguém pediu a volta do Chocante e mesmo eles não acreditam muito na possibilidade de um retorno bem sucedido.

Olha, Chocante é um filme muito gostosinho de se assistir e tem umas piadas que quem foi adolescente, ou jovem, na época em que o Chocante bombou irá entender muito bem.  Ao mesmo tempo, a película brinca com a defasagem - estética, tecnológica, musical - dos membros do Chocante em relação ás expectativas da juventude atual.  O filme não se furta de discutir mesmo que sem ser ácido demais temas sérios como a frustração com a perda da fama e a homofobia no meio artístico.

Todos os ex-membros do Chocante são adultos frustrados e que mentem sobre sua vida e carreira.  Téo e Tim são irmãos, mas mal se falam.  A personagem de Lúcio Mauro Filho é o mais ressentido, ainda que seja o único com uma profissão estável, uma família e condições de vida razoáveis, já que é médico oftalmologista do Detran.  Tudo o que ele tem não preenche seu vazio.  Tim acreditava ter talento, ser dentro do grupo aquele que poderia ter seguido uma carreira musical estável.  Em dado momento, ele diz "Eu poderia ser o novo Afonso (do Dominó) e para me tornar um novo Fábio Júnior, seria um pulo."  Não foi e ele culpa o irmão, Téo.  Por qual motivo ele esmurrou Tarcísio, afinal?

É interessante que Tarcísio, o galã, é o exemplo perfeito de como o racismo operava e opera no Brasil.  Ele era o único louro e com olhos claros do grupo e, consequentemente, o mais bonito dos rapazes.  Téo não conta os seus motivos, mas  ele guarda para si uma mágoa muito grande em relação ao ex-colega.  Se eu escrever o motivo, é um grande spoiler, mas acredito que vocês vão matar a charada, porque, enfim, é um segredo meio óbvio.  Mas Téo era o único dos rapazes que tinha uma namorada fixa e que os acompanhava nas turnês.  Eles se casaram, tiveram uma filha, mas o casamento não deu certo.  

Téo é cinegrafista, faz vídeos de casamentos, batizados e outros eventos, ele mal tem tempo para ver a filha e culpa a esposa por afastá-lo da menina e se sente humilhado, porque a ex-mulher casou-se com um engenheiro bem sucedido que ocupou o seu lugar no coração da filha.  A menina, que tem 13, ou 14 anos, Téo não consegue se lembrar direito, é interpretada por Klara Castanho e é muito compreensiva em relação ao pai, madura para a idade, por assim dizer, mas uma personagem bem crível.  Ela ama o pai e Téo, na medida do possível, tenta evitar que a imagem da mãe da menina seja arranhada por qualquer coisa que ele diga, mas a ex-esposa não o poupa de nada.

Toni e Cley formavam o outro duo do grupo.  Toni era o engraçadinho, o piadista.  Acabou tornando-se motorista de táxi e aplicativo.  Também não conseguiu montar uma família, é visto como traidor por seus colegas taxistas por ter virado Uber, e sente-se muito nostálgico em relação ao passado e o momento mais feliz de sua vida.  Já Cley, que mente trabalhar no setor de marketing de um supermercado, quando, na verdade, só anuncia as promoções do dia, era o pegador do grupo.

Se Tarcísio era o galã de cabelos louros, Cley era quem saia com as meninas, namorava com Paquitas, participava da piscina do Gugu.  Só que Cley, como fica meio óbvio desde a primeira aparição da personagem de Marcus Majella é gay.  A graça é que nenhum dos colegas jamais sonharia com isso e Cley quer continuar no armário caso o Chocante volte a se apresentar.  Pede para os colegas o policiarem para que ele não use expressões gays, por exemplo.  Toni é quem fica mais chocado, porque ele meio que se comprazia de contar as proezas do amigo.

O caso de Cley era incomum?  De forma alguma.  Um dos maiores galãs da época, Leonardo Vieira, explodiu na novela Renascer de 1993.  Ele demorou mais de 25 anos para assumir publicamente a sua orientação sexual e somente o fez por ter sido exposto.  E vejam, eu não estou dizendo que um artista, homem, ou mulher, precise publicizar esse tipo de coisa, tampouco que seja legítimo arrancar qualquer pessoa do armário, mas que um galã não seria galã nos anos 1990 se se assumisse homossexual.  Da mesma forma, não seria membro de boy band para o público adolescente.  Ele seria marcado e mesmo agora recebe mensagens de ódio, acredito que boa parte de ex-fãs furiosos.  

A TV brasileira da época era muito cruel e só admitia o homossexual caricato, que servia para fazer humor.  E não era somente aqui.  Lembro que quando se tornou público que o galã desde os anos 1960, Richard Chamberlain, era homossexual, isso lá em 2003, a mulherada de um grupo que eu frequentava no Orkut quase fez coro dizendo que não conseguiria mais assistir Pássaros Feridos e outros papéis românticos do ator.  Ele estava estragado.  É comum achar comentários em vídeos do ator no Youtube dizendo que ele parece fingir ter prazer em beijar uma mulher.  Em 2010, o ator recomendou a atores gays que ficassem no armário para conseguir trabalhar.

As coisas mudaram?  Um pouco eu diria, mas não muito.  Basta ver a entrevista do Vítor diCastro do Canal Deboche Astral sobre por qual motivo ele, que tem formação sólida como ator, preferiu a internet.  E não sei se colabora para a inclusão, aceitação e repeito pelos artistas discursos "progressistas" defendendo que atores gays devem interpretar personagens gays e não heteros.  O bom ator, gay, ou hetero, deveria poder interpretar qualquer papel, o problema é um artista ter que se fechar no armário para conseguir trabalhar, mais ainda, ter que performar o garanhão para não levantar suspeitas.  Cley fez isso.

Falando dos coadjuvantes, Toni Ramos aparece muito pouquinho.  É quase propaganda enganosa, porque, no trailer, ele tem uma participação longa.  A atriz que faz Quézia está ótima.  Ela é aquela figura que venera seus ídolos, que tem um altar em casa, que comprou tudo o que saiu deles e que vai apoiar os rapazes no seu retorno. A família de Tim é disfuncional, seu casamento é um fracasso, e um dos pontos altos do filme é quando os sujeitos, cada um em um espaço diferente decide chutar o pau da barraca cantando "Tô P da Vida", um dos maiores sucesso do grupo Dominó e uma música bem legal, diga-se de passagem.

Ah, sim, faltou falar de Rod.  Pedro Neschling está ótimo como a sub-celebridade em busca de cliques no Instagram e outras redes sociais e invocando o nome de Deus a todo momento, enquanto exibe seu corpo lascivamente para as fãs.  Ele não sabe nada sobre as boy band dos anos 1990 e os sujeitos do Chocante estão totalmente deslocados dessa cultura exibicionista das redes sociais.  Há um descompasso.  E Rod sempre está feliz e satisfeito mesmo quando tudo dá errado e tenta arranjar um jeito de ganhar cliques mesmo nesses momentos.  Seu maior triunfo é anunciar que foi chamado para Malhação.  Aliás, a primeira temporada de Malhação é exatamente de 1995.

Há participação especial de Sônia Abrão, que anuncia a morte de Tarcísio, algo que ela faria, com certeza, temos Gugu, mas são imagens de época com dublagem para anunciar o Chocante.  As sequências dos ensaios são muito boas, porque expõe tanto a breguice das coreografias dessas boy bands, quanto a falta de forma dos sujeitos.  Ah, um problema do filme, Tim mora em Macaé.  Gente, Macaé é bem longe do Rio, 184 km de estrada, com sorte, duas horas e meia de viagem.  Não seria em um piscar de olhos que Tim chegaria na capital, não.  O filme não cumpre a Bechdel Rule, mas ele é sobre um grupo de homens que não conseguiram crescer e se livrar do passado.

Enfim, o Chocante consegue seu retorno triunfal?  Veja o filme.  Eram muitas as bandas de garotos nessa época, algumas somente com uma música, um suspiro e eram esquecidas.  Nos anos 1980, eram clones do Menudo, uma boy band porto-riquenha, das similares brasileiras, Dominó teve uma durabilidade maior, ainda que a ideia fosse a mesma.  E, vamos combinar, o mesmo molde continua visível nos grupos coreanos que agora estão na moda.  Ah, sim, no final de Chocante temos o clipe "original' da banda com a música chiclete Choque de Amor.  Ela está logo no início do texto.  Não é um filme espetacular, longe disso, mas foi muito divertido assistir Chocante.

3 pessoas comentaram:

Essa resenha me convenceu a ver o filme! Obrigada!

Uma coisa que me chamou atenção nesse filme é que sem querer ele endossa o mito da "mulher destruidora de banda". Como se uma banda formada por homens fosse naturalmente um mundinho perfeito e harmônico, e a presença de uma mulher fosse sempre o estopim pra surgir desavenças e a banda acabar.

Muitos fãs do Nirvana (talvez a maioria) odeiam Courtney Love e gostariam que ela tivesse morrido junto com o Kurt Cobain, ou no lugar dele. Não são poucos os fãs dos Beatles que odeiam a Yoko Ono até hoje, 50 anos depois do fim da banda. Linda Ramone é acusada de ter causado desavenças entre os Ramones, e às vezes até de ter levado ao fim da banda. Tinha um documentário sobre os Mamonas Assassinas, onde um produtor ou algo assim (não lembro bem, hoje o documentário tá bloqueado no YouTube) que diz que a presença da Valéria, namorada do Dinho, nas viagens atrapalhava a banda porque "não dava mais pra encher a van de mulheres porque a p#$% da Valéria tava junto"; ela não foi culpada pelo fim da banda por motivos óbvios, mas me pergunto como seria se o acidente não tivesse acontecido e a banda se separasse um ou dois anos depois. Quando morreu o Chorão, vi pela internet muita gente culpando a ex, Graziela Gonçalves, por ter separado e assim "causado" o suicídio dele (até hoje se acha algumas notícias sobre o caso com posts horríveis na caixa de comentários).

Claro que nunca foi a intenção do filme discutir ou questionar isso, nem acho que isso torne o filme problemático em si, mas acho importante lembrar desse detalhe. No caso do filme foi mesmo a mulher que causou o fim da banda, mas na vida real as bandas acabam porque têm que acabar, não porque um dos integrantes arrumou uma companheira.

Sim, sim. Eu percebi e não comentei. E essa coisa da mulher destruidora de banda faz parte da parte séria do filme, não da parte comédia.

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