quarta-feira, 23 de junho de 2021

Comentando Luca (Disney/Pixar/2021): Um elogio à amizade e uma sensível defesa da aceitação das diferenças

No domingo, assisti Luca, o novo filme da Pixar com a minha filha de sete anos.  Na verdade, ela me intimou a assistir, porque ela tinha visto Luca no dia anterior.  Muito bem, Luca não entrará na minha  lista dos melhores filmes da Pixar, mas é um filme sensível, com uma animação belíssima e uma trilha sonora em italiano bem interessante.  Falando em Itália, o filme se passa em uma pequena vila do Mediterrâneo, na Riviera italiana, não tenho como saber, e o diretor é italiano, também.  Enrico Casarosa dirigiu o lindinho curta La Luna e sabendo disso, achei uma das personagens do filme muito parecida com outra que aparece lá.

A história do filme é simples e, de certa forma, já vista, Luca Paguro é um menino monstro marinho com grande vontade de aprender, de descobrir.  Seus pais, especialmente, sua mãe, colocam muito medo no garoto em relação aos humanos.  Um dia, Luca, que coleciona coisas da superfície, conhece Alberto Scorfano, um menino corajoso, alegre e que mora sozinho na superfície, apesar de ser um monstro marinho.  Quando os pais de Luca descobrem a inusitada amizade, decidem mandar Luca para longe e o menino decide fugir de casa.  Na superfície, ele poderia ser um menino de verdade, desde que não fosse molhado.

Alberto mostra para Luca sua coleção e conta do seu sonho de ter uma vespa e poder correr o mundo em liberdade.  Os dois meninos vão visitar Portorosso, uma cidadezinha próxima, e lá ficam sabendo de um concurso e que, com o dinheiro do prêmio, poderiam comprar sua vespa, mesmo que fosse velhinha.  Na cidade, as pessoas temem monstros do mar e Luca e Alberto precisam esconder a todo o custo a sua identidade.  Lá, os meninos conhecem Giulia Marcovaldo, uma garota alegre, que mora parte do ano em Gênova, onde vai à escola, e deseja ganhar o concurso e derrotar Ercole Visconti, que sempre vence a competição, humilha os mais fracos e desrespeita todas as regras para atingir seus objetivos.  Giulia, Alberto e Luca decidem montar uma equipe e competir, mas a aproximação entre a menina e o protagonista coloca em rosco a amizade recém construída.

Segundo o diretor, Luca, que se passa em algum momento dos anos 1950, ou início dos anos 1960, é uma homenagem aos filmes de Felini e de Hayao Miyazaki.  Ele é alegre, é sensível, usa técnicas de animação tradicionais e as mais modernas.  O resultado é deslumbrante e encantador.  Vi, também, uma referência à Pequena Sereia, pois Luca coleciona coisas humanas sem saber bem o seu uso.  O filme, assim como a maioria dos produtos da Pixar, tem várias camadas conseguindo agradar às crianças, sem desrespeitar os adultos, ou vice-versa.  Agora, exatamente por ter camadas, ele nos oferece várias possibilidades de interpretação, nenhuma dela pode ser invalidada, ainda que uma delas rtenha sido negada pelo diretor.

Em Luca temos o medo em relação ao diferença, a desconfiança em relação ao outro, às vezes por motivos justos, que somente a convivência e um coração aberto podem ajudar a mudar.  Há, também, muita gente no armário.  Exemplo, a avozinha de Luca foge todo fim de semana para se divertir na superfície, enquanto sua filha e genro, ficam horrorizados de saber que Luca quer conhecer o mundo dos humanos.  Nesse afã de proteger, algo que pais e mães precisam fazer, Luca se vê privado do conhecimento.  E Luca quer conhecer, quer estudar, quer viver.  O que o aproxima de Alberto e de Giulia é essa capacidade de ambos de abrirem horizontes.  Alberto, pelo desejo da liberdade, e Giulia por lhe apresentar a ciência, os livros, um mundo novo.

E temos o ciúme. Alberto se sente preterido por Giulia e este sentimento acaba sendo a fonte de uma grande tragédia.  Alberto é um menor abandonado, isso fica claro desde o início.  Ele se sente sendo abandonado de novo e se culpa por isso.  Aqui, começaram a se questionar se o ciúme de Alberto não seria de fonte amorosa, o que seria potencializado por estarmos no mês do orgulho.  Estaria Alberto amando o amigo e, por isso, a explosão de ciúme.  É uma interpretação, mas há outras possibilidades de referência às questões LGBTQIA+ em outros momentos.  Por exemplo, no final do filme, por exemplo, há duas personagens que parecem humanas que se revelam como monstros marinhos.  Passaram a vida se escondendo.  Esta era a realidade de muitos gays e lésbicas, que fingiam diante de todos uma amizade, quando, na verdade, eram um casal.  O exemplo dos mais jovens, lhes dá coragem para sair do armário.  O filme pode ser interpretado por essa via.



Ao mesmo tempo, tentar ver na amizade de Alberto por Luca esse tipo de sentimento é, também, buscar representatividade a todo custo.  Dois meninos não poderiam ser amigos sem que houvesse esse tipo de sentimento envolvido?  Eu tive durante muito tempo uma única amiga.  Ela era um pouco mais velha que eu.  Quando ela entrou na adolescência, ela buscou companhia de meninas mais velhas.  Eu me senti preterida, eu tive ciúmes, eu fui inconveniente.  Eu só não tinha a experiência anterior do abandono, como no caso de Alberto. Continuamos amigas até hoje e eu superei o ciúme e a frustração buscando, inclusive, outras amizades.  Agora, houve um adulto muito importante na minha vida que, uma vez, disse que nossa amizade era excessiva e que poderiam achar que nós éramos "duas sapatonas".  Sim, o termo foi este e eu só tinha oito anos e não tinha sequer noção do que a pessoa estava falando, mas sabia que era algo muito, muito ruim, algo de que se envergonhar.  

Enfim, isso tudo que eu escrevi invalida a interpretação anterior a de que Alberto estaria também apaixonado por Luca?  Não, mas convém abrir o leque de opções.  E para quem pensa em orientação sexual e pensa em sexo e grita que são crianças.  Gente, afeto nada tem a ver com sexo, não precisa ter.  Crianças têm sexualidade, interesses afetivos, alguns entendem qual é sua orientação sexual desde muito cedo, e isso nada tem a ver com fazer sexo, ou deixarem de ser crianças.  O problema é que a homofobia, principalmente ela, faz com que olhemos para homossexuais como seres sexuais antes de vê-los como humanos.  Fora isso, meninos e meninas são mostradas amando e se apaixonando o tempo inteiro em produtos para crianças, desde que seja uma relação heteronormativa, ninguém se importa e é até fofo.  Por qual motivo esse florescer do primeiro amor seria ofensivo se fosse entre dois meninos, ou duas meninas?  

Agora, eu percebo Luca, o protagonista, como aquele que está absolutamente alheio a esse tipo de sentimento.  Ele não despertou ainda para qualquer questão amorosa, ele sente amizade por Giulia e Alberto igualmente.  Agora, o que o move, o que o alimenta de verdade, é a vontade de conhecer, de aprender, de ir além.  Lembrem-se que o conhecimento consegue acabar com a ignorância e a repulsa pelos monstros marinhos é fruto disso, como qualquer outra forma de intolerância.

O filme não cumpre a Bechdel Rule, mas há três mulheres com destaque, Giulia, a mãe de Luca (Daniela Paguro) e a Vovó Paguro.  Há ainda as figurantes que são a representante da empresa que organiza o concurso e as duas idosas que aparecem em várias cenas.  Em relação aos papéis de gênero, o filme não investe nisso.  Giulia, Luca e Alberto são crianças, se divertem juntos, brincam das mesmas coisas e tem suas aspirações que não estão fechadas nas caxinhas de "coisa de menino" e "coisa de menina".  Claro, é preciso marcar isso, Giulia é vista como uma garota esquisita, agora, o motivo não fica claro e como quem rotula a menina é o vilão, Ercole, porque ela o enfrenta e denuncia, não há como avaliar direito a questão.

Enfim, é um filme bonito.  Não é o melhor da Pixar, mas tocou profundamente a minha filha.  Pela primeira vez a vi emocionada com um filme e ela ficou com vergonha e eu insisti que essas são as lágrimas das quais a gente não deve se envergonhar.  Não lembro da primeira vez em que eu chorei em um filme, mas guardarei esse momento dela comigo.  De resto, Júlia entendeu as duas mensagens.  Uma é aceitar as diferenças, a outra, não esconder quem você é para agradar aos outros.  Para a mãe, fica a ideia de que superproteger sua criança nunca é bom.  Os pais de Luca aprendem isso ao logo da história.  E algo importante, prestem atenção ao pai de Júlia, ele também tem algo a ensinar.  Se vocês quiserem ver um desenvolvimento maior da discussão sobre Luca ser um filme sobre homoafetividade, recomendo dois vídeos, o do Diversidade Nerd e o do Gay Nerd.  Eles fizeram excelentes discussões sobre Luca.  PAra quem quiser assistir ao filme, ele acabou de estrear no Disney Plus.

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