domingo, 6 de junho de 2021

Uma Mulher não tem autorização para defender atrocidades impunemente só por ser mulher

Antes do dia terminar, preciso registrar algumas palavras sobre as discussões da semana passada relativas à CPI da COVID-19 e ao tratamento dispensado às mulheres que lá estiveram até o momento, em especial, as médicas Nise Yamaguchi e Luana Araújo, ou a instrumentalização das ideias feministas pela extrema-direita e como muita gente boa cai feito patinho nesse papo furado.  E garanto a vocês que ainda irei falar de shoujo no processo, porque a gente sempre tem um caso de referência para citar.

Primeira coisa importante de ser colocada logo no início do texto é que o ambiente da CPI, na verdade, o ambiente no Senado e de forma mais ampla no Congresso Nacional, é masculino e machista.  O poder em nosso país, o seu exercício, está ainda associado aos homens.  Querem ver?  São somente sete senadoras, 13% do total das 54 cadeiras, não houve alteração na última eleição.  Na Câmara dos Deputados, são 77 eleitas dentre 513 vagas.  Sendo assim, quando alguém toma a palavra no Senado, ou na Câmara, o mais comum é que a voz seja masculina e use terno.  As senadoras estão participando na CPI como convidadas, quase que por concessão.  Dito isso, qualquer mulher convidada, ou depoente, deve se sentir desconfortável na CPI, começando por estar lá, como qualquer homem também se sentiria, mas, também, por ser mulher.

Tenho acompanhado o máximo possível as sessões e sei que Renan Calheiros fez pó de traque de Fábio Waygarten, que chegou a ser ameaçado de prisão. Ele era interrompido, perdia a voz, suava frio.  Assisti, também, a senadora Kátia Abreu fazer um discurso esculachando Ernesto Araújo.  Não perguntou nada, só passou por lá para esculhambar com o 4CHANceler.  No dia de Nise Yamaguchi, Omar Aziz, presidente da CPI, não parava de louvar o currículo da médica.  Aliás, uma das estratégias tanto da Dr.ª Yamaguchi, que é doutora mesmo, com doutorado, quanto da Mayra Pinheiro, a Capitã Cloroquina, é passar longos minutos lendo um farto currículo, às vezes, real, em muitos casos, super inflado e maquiado, como forma de atordoar a audiência. Não raro, funciona.  Aliás, o mesmo pessoal que odeia ciência, quer destruir a universidade pública e que defende a autoridade de um guru que nem o ensino fundamental tem, acha essas coisas importantíssimas, quando convém.  

 

Enfim, voltando para Nise Yamaguchi, até Renan Calheiros foi muito menos incisivo com ela.  Parei de assistir para almoçar e vi alguém falando que um dos quatro cavaleiros bolsonaristas do apocalipse gritou com ela, mas essa parte não vi.  Não sei se aconteceu de fato.  Assisti a senadora Leila do Vôlei, que é aqui do DF, iniciar uma discussão sobre o quanto a médica estaria sendo maltratada por ser mulher.  Aquilo me deu nervoso, porque eu estava olhando para a Dr.ª Yamaguchi e vendo uma personagem montada para despertar essa vontade de protegê-la.  "Vejam essa senhorinha frágil, de fala mansa, essa mulher, sendo acossada por esse bando de homens!". E deu certo, pelo menos com parte do Senado e da internet.  

A coisa ganhou corpo depois que o senador Otto Alencar, que também é médico, tomou a palavra e, sim, a humilhou.   Eu não gostei do tom do senador, mas me apeguei aquilo que eu já tinha percebido antes, que ele estava interagindo com uma personagem composta para parecer a vítima, mesmo quando mentia, se colocava contra a vacina (*ela disse ter uma doença autoimune específica e que não podia se vacinar e foi desmentida pela Sociedade Brasileira de Reumatologia*), ela defendia o uso de remédios sem efetividade no trato da COVID-19 e que poderiam matar os pacientes.  Enfim, ela distorceu dados de pesquisas, algumas delas evidentemente furadas, para legitimar o fato de todos nós, brasileiros, estarmos fazendo parte de um experimento genocida.  Foi esta senhorinha de voz mansa que despertou a ira do Otto Alencar, um médico como ela.  Ele não estava errado em se exaltar.


Pois é, a Nise Yamaguchi não foi tratada de forma dura por ele por ser mulher, ainda que tenha sido tratada com complacência por Renan Calheiros por esse fato. Otto Alencar a confrontou por ser uma médica mentindo. E ela usa a estratégia de se fingir de mansa e boazinha, tipo Damares, ou a Capitã Cloroquina, para reforçar o seu lugar de fala.  Por conta disso, fica parecendo que ela é uma coitadinha, a vítima de um bando de homens grosseiros, a mulher que precisa de nosso apoio como mulheres e/ou feministas e da defesa dos homens que tem qualquer senso cavalheiresco.  No mesmo dia, Juliana Paes apareceu para defender a médica, pedir sororidade, confrontada, ela se defendeu em termos bolsomínicos, mas não quero falar dela, porque muita gente melhor que eu já se pronunciou.  

O presidente, que no mesmíssimo dia chamou uma jornalista de quadrupede, veio à público para defender Nise, também.  Os mesmos que denunciaram os (*supostos*) maus tratos à médica, ficaram em silêncio em relação à agressão à jornalista. Vi algumas feministas reclamando que a interromperam muito, que poderia ser uma de nós, ou quando for uma de nós... Como assim "uma de nos"!?  Alguma de nós vai virar defensora do genocídio e de métodos contra a ciência?  Se for o caso, tem que ser interrompida e corrigida, SIM.  Pouco importa se por homem, ou mulher.

Olha, crianças, eu vi quando Omar Aziz, que a louvou tanto, a interrompeu.  E para quê foi mesmo?  Para afirmar que a médica estava falando contra as vacinas e que somente a vacinação pode nos valer nesse momento.  Era para deixar a médica, uma autoridade que sabe que está usando o seu lugar de fala para influenciar com sua atitude calma e gentil, falar impunemente por ser mulher?  Isso é o esvaziamento do feminismo em favor de uma solidariedade irresponsável e cega para questões seríssimas, como o genocídio ao qual estão submetendo a população brasileira e, em especial, os que estão em condições mais precária.  Nenhum membro de uma minoria política tem carta branca para falar o que quiser, ou para exigir a solidariedade ou posicionamento de grupos organizados que, no seu dia-a-dia, costumam desprezar e atacar.

Olhando para a Dr.ª Yamaguchi e tudo o que se falou, lembrei da Sae de Peach Girl (ピーチガール).  Quem não conhece este mangá, que foi cancelado pela Panini, a vilã da série era uma personagem icônica, tipo Nazaré de Senhora do Destino.  Era uma moça muito bonitinha e que agia de forma estudada para sempre parecer frágil, ser acolhida e defendida, enfim, parecer a vítima.  Ela infernizava a vida de protagonista e, quando Momo, a mocinha, tentava reagir, a vilã usava de alguma estratégia para parecer que ela tinha sido a agredida, a ofendida.  Até a mocinha ficava confusa no início da série.  Talvez, afinal, Sae fosse inocente e ela é que estivesse errada.  Esta é a estratégia da Nise Yamaguchi e deu certo com alguns.

Agora, comparem a Nise Yamaguchi com a Luana Araújo, que só falou verdades.  Ela é altiva, ela domina o assunto, ela adotou uma postura totalmente diferente da Nise Yamaguchi, não porque a médica mais velha se sentia culpada, porque gente como ela não tem remorso, mas por estar ancorada em pesquisas e evidências científicas.  Quando os cavaleiros do apocalipse tentaram falar grosso com ela e começarem a dizer as bobagens de sempre, ela os cortou e eles se calaram.  Não rolou "manterrupting", porque nesse caso seria, porque a Luana Araújo não se colocou na situação de vítima, a personagem encarnada por ela era outra.  E, por conta disso, muita gente a chamou de arrogante.  

Fosse um homem na mesma condição, seria respeitado na sua autoridade.  Aliás, foi o filósofo Pedro Abelardo (1079-1142) que confrontado e acusado de arrogante, ele respondeu que não era arrogante, ou vaidoso, simplesmente tinha consciência de seu próprio valor.   A frase não é bem essa, mas é por aí.  A Nise, com argumentos, poderia ter posto o Otto Alencar no bolso, porque ele não age como um troll, ele estava realmente indignado em ver a atitude de uma colega médica.  Outra coisa, comparem o currículo enxuto, ainda que e muito peso da Luana Araújo com os excessos da Capitão Cloroquina e da Nise Yamaguchi.  Foram estratégias diferentes, também.

O que eu quero dizer é que as pessoas estão  caindo na armadilha dos bolsominions, que, no geral, são criaturas machistas, quando não são misóginos, e achando que ser feminista é defender que uma mulher possa sair falando toda sorte de atrocidade, porque é mulher e é dever feminista apoiá-la. E não estou falando de Juliana Paes, não, porque ela é da turma que está no poder, mesmo que o negue. Estou falando de mulheres que são feministas, que se veem como tal, e estão entrando nessa ciranda cujo objetivo é erodir os feminismos de dentro para fora. De resto, já veio à público um vídeo da reunião do Gabinete das Sombras, o grupo de médicos negacionistas e outros profissionais que orientaram o presidente contra as vacinas e pela imunidade de rebanho.  Nise Yamaguchi era figura proeminente entre os que queriam nos matar.  Defenda o seu direito de falar sandices altamente perigosas se quiser, eu não vejo como aceitável que pessoas como ela, independentemente de serem mulheres, ou homens, tenham direito de fala.

E antes que alguém me pergunte ou comente, a Dr.ª Luana Araújo não é uma das minhas, em termos políticos, mas ela não apoiou o genocídio, salvo se formos culpá-la por ter votado 17.  Mas, aí, são muitos os cúmplices e culpados, vamos combinar.  Eu vejo como aliado, nem que seja temporário, qualquer um que tente parar essa desgraça na qual estamos metidos.  São alianças estratégicas necessárias para conseguir atingir um objetivo, seja que tenhamos vacinas, seja abreviar este governo pelas vias legais.  De resto, resumindo e concluindo, denunciar o machismo estrutural é uma coisa, usar da sua existência para isentar mulheres de responsabilidade, é outra.  E recomendo o texto da Andrea Dip sobre o caso (CPI da Covid: aceitar conduta indefensável de mulheres não é feminismo).

7 pessoas comentaram:

Engraçado que esses mesmos que querem dizer que proteger a Dr Nise, são os mesmos que dizem que o Egito tá sendo muito duro com aquele médico lá. Dupla moral que chama né? Esse povo adora acusar os outros e faz o mesmo ou pior. Nojo!

Sabe, Moisés, eu nem diria que eles têm dupla moral, na verdade, eles são imorais mesmo. Enfim, mas eu não compararia esses dois casos, prefiro comparar com a forma como o presidente e seus ministros e secretários tratam as mulheres jornalistas, ou as parlamentares. Eles não se importam com respeito e civilidade, eles não são sequer cavalheiros, quanto mais, simpáticos aos feministas, eles são o que são e estão se apossando das ideias feministas contra as próprias feministas. As pessoas precisam ficar mais espertas, ainda mais depois de tanto tempo.

Ótimo texto, principalmente por esse ser um importante debate. Hoje em dia acontece uma despolitização e um esvaziamento do que significa sororidade. Nessas horas, gosto muito de lembrar da perspectiva da bell hooks, já que ela destaca como a solidariedade política entre mulheres tem que ir além do reconhecimento positivo das experiências das mulheres e da compaixão compartilhada em casos de injustiça comum - enquanto umas utilizarem dos seus privilégios para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por de verdade.

Pois é, Valéria. Eu usei esse comparativo porque vi muitos dos que se revoltaram com a ''humilhação'' da Dr. Nise, falarem em ''perdão'' para o médico assediador. Mas eu falo isso porque eles dizem que as esquerdas é que tem dupla moral. Mas você tá certa, a apropriação de ideias feministas para serem usadas contra o feminismo virou moda e em um governo aberto a ideias misóginas como esse, isso pode causar danos graves a situação das mulheres no futuro. E o pior é que nem todas as feministas são lúcidas como você, como a Lola, entre outras. Aí fica difícil.

Quando essa médica foi depor, defendendo cloroquina e o escambau, em nenhum momento eu, como feminista, me inclinei a ter sororidade ou empatia. Gente assim (e quem está por trás), joga com isso, e como você disse Valéria, fazendo gente boa cair feito patinho.

Tudo tem limites. Ainda mais se tratando de um cenário tenebroso como a questão sanitária no Brasil atualmente; pessoas agindo de maneira irresponsável assim. As ações das pessoas contam, não importa de mulher ou homem. Falta de moral e caráter existe e tá aí pra quem quiser ver.

Os defensores de Nise são os mesmos que sentem orgasmos quando mulheres da periferia são brutalizadas pelo estado.

Muito obrigada pelo texto, Valéria! Claro que há machismo na política e isso pode sim fazer com que as críticas contra as mulheres sejam mais duras (não acompanhei de perto a CPI pra poder comparar o comportamento dos senadores diante dos negacionistas homens; mas se bem me recordo, três dos principais senadores saíram da sessão diante das falas criminosas de negacionistas não faz muito tempo, o que em si já é algo duro).Mas defender uma cúmplice de genocídio é o fim da picada. Que ela arque com as consequências das suas atitudes e que seja responsabilizada! Chega de impunidade!

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