terça-feira, 2 de novembro de 2021

Meninas voltam a estudar clandestinamente no Afeganistão e como privar mulheres da educação é o desejo de muita gente

Não consegui falar tanto quanto deveria sobre a tragédia do Afeganistão, porque aquilo me fez e me faz tão mal que me dá vontade de chorar.  Semana passada, ONGs e governos foram duramente criticados por se reunirem com o novo governo afegão, sem a presença de mulheres.  Sim, é somente um mero detalhe, é uma coisa pequenininha e negociável, os direitos humanos das mulheres.  Agora, me incomodei muito com as matérias, são muitas mesmo (*Exemplos: 1 - 2 - 3 - 45 - 6*), falando do esforço das meninas e jovens mulheres para estudarem em segredo. Sim, essas meninas querem estudar, são valentes, merecem elogio, mas as coisas só chegaram onde estão, porque elas foram abandonadas à própria sorte.

O fato é que ao chegar ao poder o Talebã prometeu garantir o acesso das mulheres à educação.  Por alguns dias as escolas ficaram fechadas, como as de ensino básico eram segregadas, as de meninos voltaram e algumas de meninas começaram a reabrir.  As universidades, que eram mistas, como ocorre no Irã, teriam que passar por remodelações para garantir que homens e mulheres não dividissem livremente os mesmos espaços.  Só que, ao que parece, o Talebã mudou de ideia.  

Agora, as meninas só poderão estudar até o sexto ano, mesmo que as mulheres possam ir para a universidade, ou concluírem os seus cursos, não haverá continuidade na presença feminina no ensino superior, afinal, elas não poderão concluir regularmente os estudos.  Há resistência em alguns lugares, mas o fato é que as novas leis terão que ser acatadas por bem, ou por mal.  O clima, no geral, é de desespero:

""Estou muito preocupada com meu futuro", disse uma estudante afegã, que quer ser advogada. "Tudo parece muito sombrio. Todos os dias eu acordo e me pergunto 'por que estou viva?' Devo ficar em casa e esperar que alguém bata na porta e me peça em casamento? É esse o propósito de ser mulher?"  Seu pai disse: "Minha mãe era analfabeta, e meu pai constantemente a intimidava e a chamava de idiota. Eu não quero que minha filha se torne como minha mãe"."

Não se deve perder de vista que os direitos das mulheres são os mais frágeis e podem ser negociados sem problema por governos e empresas.  Os Estados Unidos abandonaram o Afeganistão à própria sorte depois de uma ocupação que nem deveria ter começado.  Outras nações que poderiam pressionar os fundamentalistas também se ausentam, ou mesmo apoiam os fundamentalistas.  Brigar para que as meninas e mulheres tenham acesso à educação?  Existem coisas mais importantes.

Há vários estudos que apontam que sem acesso à educação, os casamentos infantis se multiplicam, assim como a miséria.  Saber é poder e não somente para ter acesso aos postos de mando, mas mesmo para cuidar de forma correta de seus filhos e filhas, uma menina que não pode estudar, não terá condições de escolher. A COVID, aliás, ajudou a agravar por si só a questão.  A tragédia do Afeganistão só é uma versão ainda pior do quadro.  E o país vinha avançando bastante desde a queda do Talebã, ainda que as escolas para meninas fossem, em sua maioria, mais precárias que as para garotos, além de serem vitimadas por atentados.

Já houve momento em que no Ocidente, as mulheres tiveram a educação parcialmente negada.  Aprendiam a ler, mas não lhes era permitido aprender a escrever (*isso aparece de forma humorística em A Escola de Mulheres de Moliére*).  No século XIX, multiplicaram-se as escolas primárias, afinal, era preciso formar o cidadão, os valores básicos da nação deveriam ser inculcados nas mentes infantis.  No entanto, o acesso ao ensino secundário era dificultado para as meninas, as escolas eram poucas, às vezes, precisavam ser pagas.  A universidade?  Bem, ela poderia estar fechada para elas mesmo.


Na Inglaterra, poderiam frequentar Oxford ou Cambridge a partir de meados do século XIX, mas não recebiam todos os graus conferidos aos homens, não podiam frequentar todos os cursos, entre outras limitações.  No Brasil, o ensino superior no Brasil se abriu para as mulheres em 1879, mas isso não quer dizer que elas seriam bem recebidas nas faculdades.  Na Polônia, as mulheres não podiam ir para a universidade.  Marie Curie (1867-1834) frequentou uma universidade clandestina secreta, como a das meninas do Afeganistão, a "Universidade Volante", antes de seguir para a França.  Rosa Luxemburgo (1871-1919), também polonesa, seguiu para a Suíça, onde as mulheres não eram proibidas de frequentar a universidade.  Mas e as que não podiam partir?  As que não tinham apoio de suas famílias?  

Quando as cenas do Afeganistão, o desespero da tomada de Cabul apareceram na TV, precisei explicar para a minha filha, que estava prestes a completar sete anos, que o destino das mulheres seria trágico.  Ela não conseguia acreditar que coisas assim pudessem acontecer em nossos dias, disse que o que se ganha pode ser perdido, por isso, é preciso lutar sempre, mesmo sem a certeza da vitória, lutar pelo que é justo e certo.  Lutar como uma Malala, que quase foi morta pelo Talebã do Paquistão, porque queria estudar.

Será que o Brasil pode passar por um retrocesso desses nos direitos das mulheres?  Como pontuei, os direitos das mulheres são os primeiros a serem vendidos, especialmente, porque somos consideradas uma parte outra da humanidade.  E, aqui, em nosso país, há um líder religioso importante que defendeu publicamente que as mulheres só deveriam estudar até o final do Ensino Médio, u ficariam arrogantes e se desviariam da vontade de Deus e não seriam submissas aos seus futuros maridos, se quisessem seguir estudando, seria decisão dos homens com quem se casassem. Este líder é o (autointitulado) Bispo Macedo, dono da Rede Record, será que se o projeto cristofascista de consolidar no poder coisas como as que aconteceram no Afeganistão não poderão ocorrer aqui?  Pois é, privar mulheres da educação não é um projeto exclusivo do Talebã, não.

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