domingo, 26 de dezembro de 2021

Comentando Não Olhe para Cima (EUA/2021): Uma sátira que cai como uma luva em tempos de pandemia

Desde ontem, Don't Look Up estava com seu título em inglês em evidência no Twitter, hoje, estava com seu nome nacional, Não Olhe para Cima.  Estranhei, porque não tinha me apercebido que entrou na grade da Netflix na véspera de Natal.  Eu tinha ido atrás do filme por estar interessada e por forte recomendação de um amigo que conseguiu assistir a película no cinema.  "Como você gostou de Vice, vai gostar de Não Olhe para cima." Dito e feito, mas foi pura coincidência ter assistido no dia 25 de dezembro.  Aliás, a resenha completa, porque coloquei uma prévia no Facebook, só não saiu ontem por estar concluindo a de Amor, Sublime Amor, que estava atrasada.  Só aviso, caso você não conheça a filmografia do diretor Adam McKay que Don't Look Up não é um filme de Natal, não é um filme para levantar o astral de ninguém, é uma sátira aos tristes tempos que vivemos.  Vamos ao resumo:

Dias atuais, a aluna de doutorado Katelyn "Kate" Dibiasky (Jennifer Lawrence) está observando os mapas do sistema solar, e é sugerido que esta parte do seu trabalho é muito monótona, quando percebe um cometa relativamente grande em uma trajetória curiosa.  Ela comunica seu orientador, o Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio), que fica muito animado com o que parece ser uma super descoberta.  Ele apelida o cometa de Dibiasky e reúne seus orientandos para uma divertida brincadeira que é calcular na mão a trajetória do curioso cometa.  Para seu choque, o astro se dirige para a Terra, não há dúvida, alguma.  Ele interrompe o exercício, dispensa os alunos e segura Dibiasky.  A Terra está ameaçada e só temos 6 meses e 14 dias para que algo seja feito.

Ele entra em contato com a NASA e sua diretora, Jocelyn Calder (Hettienne Park), uma médica colocada no cargo por indicação da presidenta, Jane Orlean (Meryl Streep), uma populista interessada somente em sua autopromoção e na manutenção do poder.  Calder confirma os cálculos com seu assessor e repassa o caso para o Dr. Teddy Oglethorpe (Rob Morgan), o responsável na agência por casos assim.  Oglethorpe, um cientista sério, confirma os cálculos e tenta colocar os cientistas frente a frente com a presidenta, que trata a destruição da Terra como algo secundário em relação aos seus interesses imediatos, garantir a maioria no Congresso nas eleições que estão prestes a acontecer.

Desesperados, Mindy, Dibiasky e Oglethorpe terminam vazando para imprensa que o governo norte-americano não pretende fazer nada e quer manter em sigilo a informação que é crucial para salvar o planeta.  O que conseguem é que Mindy e Dibiasky acabem em um programa tipo esses que pululam nas TVs brasileiras e que são capazes de misturar fofocas de celebridades, culinária, ciência, sem aprofundar nada e tentando garantir entretenimento para a audiência.  Os cientistas recebem midia training para conseguirem falar na TV, mas Dibiasky perde a paciência frente os apresentadores Brie Evantee (Cate Blanchett) e Jack Bremmer (Tyler Perry) que não tem nenhum interesse em preocupar sua audiência com coisas estressantes como o fim do mundo iminente.

A partir daí, Dibiasky termina sendo obrigada pelo FBI a se retirar da universidade e concordar em não falar publicamente sobre o tema.  De volta ao lar, no interior dos EUA, seus pais não a recebem, porque não querem saber de política.  E o filme consegue deixar muito claro como a ciência é politizada e os interesses escusos dos políticos e empresário manipulam a opinião pública a seu favor.  Para isso, claro, é preciso a colaboração de cientistas e Mindy é cooptado.  O cientista sério, meio nerd, com uma família estável, mas cheio de problemas que afligem uma parte considerável da humanidade, como ansiedade, depressão, pressão alta, termina se tornando uma celebridade à serviço do governo.  Será que compensa?  Vale a pena?  Ele perdeu toda a sua consciência?  Como a personagem é bem complexa e cheia de nuances, DiCaprio brilha e entrega uma interpretação de grande qualidade.

Outra personagem importante do filme é o mega empresário da área de tecnologia e terceira pessoa mais rica do mundo, Peter Isherwell (Mark Rylance). Como principal doador da campanha de presidente Orlean, ele é capaz de interferir nas ações que visão salvar a Terra para atender seus próprios interesses, o que implica impedir que uma ação conjunta com a Rússia, a China e a Índia se efetive.  O  comando da missão seria do fanfarrão Benedict Drask, um excelente Ron Pearlman sem maquiagem.  Para a presidenta, a missão tinha que ter um herói de carne e osso, porque os norte-americanos precisam disso, apesar de naves não tripuladas poderem ir mais rápido.  Drask era conhecido por suas falas  sexistas, racistas e homofóbicas, mas a imprensa o trata com complacência, "ele é um homem de outra época", no fundo, é tudo da boca para fora e ele é um bom homem.  Sabe quem disse algo parecido?  Regina Duarte, na época da eleição sobre o "humor" peculiar de Bolsonaro.

A opção da presidenta Orlean é embarcar no projeto de Isherwell, uma criatura desagradável e que é uma cruza se Steve Jobs e Elon Musk, de esperar que o asteróide se aproxime mais do planeta para espatifá-lo e minerá-lo em nosso planeta.  A partir daí, há uma campanha midiática enorme movida para convencer a opinião pública de que o asteróide poderia gerar empregos e riqueza para todos, além de garantir que os EUA não seriam superados pela China em sua economia.  A graça é que eu vi um react de um vídeo de um ancap falando em mineração de esteróides e como Elon Musk poderia ter um papel importante no processo (Cóf! Cóf!).  Profético, não?  Como o filme estava pronto desde meados do ano passado, questão da mineração no filme e na cabeça desse moço surgiram de forma independente.  

Aliás, é importante ressaltar que o filme não tinha como prever que Donald Trump não seria reeleito, mas como ele atrasou mais de um ano, o único líder negacionista da ciência, vulgar e atrelado a interesses escusos que sobrou é o nosso.  Falando nisso, acho impossível não olhar para Jason Orlean (Jonah Hill), filho e chefe de gabinete da presidenta, sem lembrar de Carluxo.  Ele e Dibiasky tem diálogos muito bons, porque ela não tem papas na língua e deixa claro que ele não tem nenhuma qualificação para estar ali, na Casa Branca, em uma posição de poder.  Trump dava muito espaço para seus filhos, Ivanka, por exemplo, tinha gabinete dentro da Casa Branca, algo sem precedentes.  Filhas de presidente só tem atuação pública no governo, quando o presidente é viúvo ou sua esposa está impossibilitada, e isso aconteceu mais de uma vez.  Elas (*filhas, sobrinhas, noras*) ficam no lugar da primeira-dama, figura que tem uma importância enorme no imaginário político norte-americano.

A partir desse acordo entre o governo e o grande empresário, que se nega a buscar validação de pares, isto é, consulta de outros cientistas que não sejam os pagos por ele, para sua ação de salvação da Terra, começa a campanha "Não olhe para cima".  A presidenta lidera uma campanha que se baseia na ideia de que a economia e a vida das pessoas não podem parar.  "Olhe para baixo" ou "Olhe para a frente", siga vivendo, mas a verdade e a tragédia se impõem inexoravelmente.  Mesmo a questão científica acaba se tornando midiática com a  mobilização de Mindy, agora arrependido, Dibiasky e Oglethorpe para que as pessoas acordem enquanto ainda parece haver tempo.  Vale até usar o peso de celebridades como Riley Bina (Ariana Grande) e  DJ Chello (Scott Mescudi), afinal, vivemos na sociedade do espetáculo e, como Oglethorpe aconselhou Mindy lá no início do filme, esqueça a matemática ou as pessoas irão se cansar.  O problema, segundo Mindy coloca, é que tudo é Matemática.  Só que nossa sociedade de memes, vídeos rápidos e informações mastigadas, é difícil manter a atenção de alguém por mais de três minutos.  De qualquer forma, para os cientistas, a única esperança é acreditar que uma missão da China, Índia e Rússia possa fazer o que os Estados Unidos não querem fazer.

Don't Look Up é um ótimo filme e é bem cruel na crítica à nossa sociedade atual com todos os seus piores vícios como a espetacularização, a superficialidade e a incapacidade de se pautar pela razão.  A analogia direta é com a pandemia do COVID-19, que não terminou ainda. No fim das contas, o filme coloca em evidência, usando de humor negro, a forma como os políticos populistas, que manobram os negacionistas e ignorantes, tem pautado as discussões científicas que deveriam ser norteadas pela razão.  Na verdade, estamos em um momento em que o paradigma iluminista vem sendo erodido, não reformado, discutido, mas abandonado mesmo em favor do obscurantismo, do imediatismo e da falta de empatia.  

E é bom lembrar que o filme foi planejado em 2019, pensando nas mudanças climáticas, só que veio a pandemia e o filme, que poderia ser uma sátira mais distante, se tornou muito real e concreta.  E, vejam bem, personagens que poderiam parecer caricatas, não são mais, elas estão no governo, em cargos importantes, na rua.  Basta lembrar da antivax que puxou conversa comigo na fila do Giraffas, uma inocente útil, ou dos tipos sinistros que apareceram na CPI da COVID.  

Agora, apesar de Meryl Streep estar maravilhosa em seu papel de presidenta dos Estados Unidos, este é exatamente o ponto fraco do filme, que lhe dá um certo ar de falsidade.  Como estamos no nosso presente, não há equivalência entre homens e mulheres em nossa sociedade.  Esse tipo de espaço de poder é masculino, além disso, o tipo de seguidor red neck que um presidente com esse perfil tem, jamais ouviria uma mulher.  A extrema-direita, esses grupos que se autointitulam conservadores, são profundamente misóginos e a ideia de liderança está associada ao masculino.  Aliás, ela nunca seria eleita, porque ela precisaria ser, não se trata, por exemplo, de uma ascensão por antiguidade, ou coisas como as que existem no meio militar e que, ainda assim, podem ser dobradas para prejudicar as minorias.  Vejam que ela sequer é casada.  Nos EUA, onde a figura da primeira-dama é central, até isso pesaria contra ela e não seria pouco.

Quem produziu o filme parece crer que ser homem, ou mulher, não tem peso algum no jogo de poder, quando bastaria olhar para uma foto de reunião de líderes mundiais, ou de CEO de grandes empresas.  Como feminista, me senti bem ofendida.  Resumindo, sexo biológico importa nessa hora, o tipo de comportamento fascista de ontem e hoje é patriarcal e misógino, e uma mulher cis branca não tem o direito de ser tão vulgar, imbecil, insensível e sexualmente agressiva (*Orlean está envolvida em escândalos sexuais*) como um homem cis branco e ser eleita e se safar no final.  Se o mundo for destruído, tenham certeza que serão os homens cis brancos e ricos que vão ser os grandes responsáveis pela m**** toda, não mulheres de qualquer etnia, LGBTAQIA+, negros etc.

Por outro lado, o filme representa muito bem a misoginia ao abordar a personagem de Jennifer Lawrence.  Ela não é doutora, sua palavra tem menos peso por causa disso, mas ela é estigmatizada exatamente por ser mulher.  Sua explosão no programa de TV, quando perde a paciência, porque os apresentadores a ignoram e se negam a ouvir o que importa, há um asteróide a caminho da Terra e vamos todos morrer, é lida como coisa de mulher histérica, desequilibrada, irracional, que deveria ser medicada.  O desdobramento é que todos se voltem para o Dr. Mindy, ele é homem, ele fala manso, ele é gostoso.  Sim, o filme mostra a cultura dos memes, do cancelamento, do Tik Tok, enfim, onde tudo é rápido, superficial e cruel.  

Dibiasky é o material certo para que o ódio contra as mulheres ganhe forma, uma mulher que grita, que quer ser ouvida, que parece autoritária.  E Lawrence, apesar da franja que me incomodou, estava muito bem e fica ainda melhor quando interage com Timothée Chalamet, que eu nem sabia que estava no filme.  Ele faz um delinquente chamado Yukle que tem fé no coração e acaba sendo companhia para a jovem cientista depois que ela é abandonada por todos.  Eles funcionaram muito bem como casal.  Sim, o filme cumpre a Bechdel Rule e fácil.

Fechando, Don't Look Up  é um filme de humor negro, ele não vai deixar você alegrinho/a no final, não é um filme de Natal. Ele é incômodo, ele é angustiante, ele é longo, a campanha para não olhar para cima começa depois da metade do filme, ele vai fazer com que queiramos identificar as personagens do filme no mundo que nos cerca.  Já está cheio de memes assim na internet.  Agora, no final, a oração puxada por Timothée Chalamet quando o fim parece inevitável foi muito pungente, um dos belos momentos de um filme que não é bonito. Além disso, o final de DiCaprio mostrou que, nem sempre, os algoritmos estão corretos e é possível fazer escolhas, tente fazer as corretas, por favor, mesmo que sejam impopulares e difíceis.  E acho que Di Caprio e Jennifer Lawrence serão indicados ao Oscar por merecimento.  Jonah Hill está ótimo, também.

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