sábado, 25 de dezembro de 2021

Comentando Amor, Sublime Amor (EUA/2021): Steven Spielberg revisita e revigora um Clássico

Segunda-feira, fui com amigas professoras assistir a nova versão de West Sid Story, ou Amor, Sublime Amor no cinema.  Foi minha segunda ida ao cinema depois do início da pandemia e as resenhas e os comentários de um amigo já tinham me motivado e, bem, não havia outro filme que desse horário para que pudéssemos ir todas juntas.  Enfim, se eu tivesse que definir esta nova versão em uma palavra, usaria PODEROSA.  A versão de Spielberg, aventurando-se pela primeira vez em um musical, é muito forte, poderosa, desde o visual até o fato de conferir certa profundidade aos personagens principais da trama.  Eles e elas têm um background que justifique, ou explique, seus comportamentos.  Além disso, as discussões sobre racismo são potencializadas pelo roteiro.  Não saberia dizer se este filme de 2021 é melhor que a versão anterior, no entanto, mas, sim, que ele é muito bom.

West Side Story sugiu como ideia em 1947, a partir da peça Romeu e Julieta e deveria ser sobre o romance proibido entre uma moça católica e um jovem judeu (*ou vice-versa*) em East Side, Nova York.  Como saiu um filme com trama semelhante naquele mesmo ano, a proposta foi para a geladeira e terminou sendo remodelada em 1957.  Agora, a trama seria em West Side e colocaria uma gangue de moços brancos (italianos, irlandeses, polacos), os Jets, contra os recém-chegados porto-riquenhos, os Sharks.  No meio dessa briga, Maria (Rachel Zegler), irmã caçula de Bernardo (David Alvarez), o líder dos Sharks, se apaixona por Tony (Ansel Elgort), o ex-líder dos Jets e que está tentando se afastar da criminalidade.  Como na peça clássica de Shakespeare, a intolerância, neste caso motivada pelos racismos, acaba transformando o amor dos jovens em uma escalada de tragédias.

Gostei muito do filme e recomendo que quem gosta de musicais tire um tempinho para assisti-lo.  Amor, Sublime Amor é empolgante e oferece personagens muito mais estruturadas que as do filme de 1961.  Os três exemplos importantes, até porque são poucos personagens que tem peso são Tony, Bernardo e Chino (Josh Andrés Rivera).  Começando por este último, no musical de 1957 e no filme de 1961, ele era somente o sujeito com quem a família de Maria queria que ela se casasse.  No novo filme, ele é um jovem estudioso e com boas perspectivas de futuro, um protegido de Bernardo, e não existe a história de casamento arranjado.  Ainda bem, porque era uma das coisas que parecia bem arcaica no original.  

Uma coisa é que as famílias prefiram que seus filhos e filhas se casem dentro da comunidade, outra cosia é arranjar marido para uma adolescente sem que ela possa se pronunciar.  Não acredito que isso tivesse muito a ver com grupos latinos, ainda que pudesse fazer sentido em outros, como o dos judeus ultraortodoxos, ou de grupos islâmicos.  Veja, não é que Maria pudesse escolher qualquer um, mas ela poderia escolher praticamente qualquer moço, desde que fosse latino, católico e passasse pelo crivo de seus pais.

Tony abandonou a gangue e quer mudar de vida, é igual ao original, porém, ele está em condicional.  Ele cometeu um crime em uma das brigas de gangue e decidiu recomeçar, abandonando a vida perigosa e de pequenos crimes.  Já Bernardo, ele é um boxeador com uma carreira promissora.  Como eliminaram o pai e a mãe dele e de Maria, que não apareciam no original, mas eram mencionados repetidamente, Bernardo é o chefe da família.  Agora, observando o filme de 1961, porque eu fui olhar de novo, claro, talvez Riff (Mike Faist) fosse a personagem maiscompleta do original.  Ele é o garoto perdido, que recorre à violência como uma forma de compensar sua frustração em relação à sociedade que parece excluí-lo.  Na versão de Spielberg, as questões sociais e raciais, assim como a violência, são muito mais explorados.

O novo West Side Story serve de vitrine para uma Nova York que está sendo reconstruída de forma a acabar com os bairros pobres (*slums = favelas, mas eu acho melhor usar cortiço*) para que novos empreendimentos imobiliários voltados para classes mais abastadas pudessem surgir.  Logo na abertura, os Jets saem do chão, dos escombros, das profundezas, como se fossem ratos.  Por exemplo, o  Lincoln Square Renewal Project deu espaço para o Lincoln Center e outros prédios que não eram nem para Sharks, nem para Jets.

No novo filme é mostrado que os brancos que puderam, saíram da região, cada vez mais ocupada por latinos e o destaque, no filme, é para os porto-riquenhos.  Importante neste ponto é a personagem detestável do racista Tenente Schrank (Corey Stoll), porque ele está do lado dos Jets, pois são brancos como ele, mas somente até certo ponto.  Para Schrank, os Jets são brancos degenerados, aqueles que tiveram pais alcoólatras, viciados, que se envolveram com as "mulheres erradas", não com boas moças, aquelas que eram para casar.  Se honrassem suas raízes, os pais dos jovens teriam tirado suas famílias de West Side, segundo o policial.  O curioso, e vejo isso como um problema do filme, é Schrank, um racista, falar em brancos e incluir os judeus.  O pacote do racista médio norte-americano inclui os judeus, que não são vistos como brancos, mas como outra coisa.

Assim como no original, os números musicais são impressionantes.  Aliás, West Side Story se destacou em sua época por suas coreografias exigentes e arrojadas, assistindo documentários sobre o filme, há sempre o destaque par ao grau de dificuldade dos números de dança.  America, em especial, é um fabuloso e apresentado na rua, inclusive, com a participação de crianças, tem um impacto ainda maior do que em 1961.  E, um detalhe, apesar de terem falado que nenhuma música foi alterada, a icônica América foi.  A versão do filme de 2021 é uma junção da original de 1957, que era cantada somente por mulheres, com a de 1961.  Eu prefiro a versão do primeiro filme. Para efeito de comparação, é só clicar (*1957 - 1961 - 2021*).

Eu gostei muito da música Maria, porque Tony, e eu achei o ator feio nas fotos, mas mudei radicalmente de ideia, entra em um beco cantando e chamando pela moça que conhecera.  Como Maria é um nome muito comum, várias mulheres e meninas aparecem na janela.  Já a cena do balcão fez com que me questionasse se eu não estava velha demais para Romeu e Julieta, que li a primeira vez aos 13 anos e já achei um exagero romântico.  O diálogo foi bobo e exageraram a dose de açúcar e de loucura adolescente.  Só que comparando o diálogo do filme de 1961 com o de 2021, o do novo filme ficou mais infantil e teve algo incomodo.  Tony, em 1961, pede que Maria só tenha olhos para ele, o de 2021, exige, ordena.  E, claro, Maria é chamada não pelo pai e não ouvimos o apelido bonitinho Maruca.  Então, em comparação, fico com Maria de 2021 e o resto de 1961, por assim dizer.

Outra coisa, não consegui gostar muito da atriz que faz Maria neste filme, mesmo que a maquiagem que escurecia a pele dos atores me incomode muito, olhando o filme de 1961, Natalie Wood me passava uma impressão de inocência, algo necessário para embarcar nessa canoa furada amorosa com os dois pés, que a nova atriz não passa.  Alguém pode dizer que Rachel Zegler canta, mas Wood cantou e ficou muito magoada quando foi dublada por outra.  Foi meio que o mesmo sentimento de frustração de Audrey Hepburn em My Fair Lady,  Aliás, ambas foram dubladas pela mesma cantora, Marni Nixon, que era usada como "ghost singer" em vários filmes da época.  O problema, a meu ver, é que a Maria de 2021 é muito assertiva e atirada, a dúvida, o medo, valorizam a entrega a um amor juvenil e louco.  Afinal, é Romeu e Julieta!

Falando do elenco, a maioria dos atores e atrizes são muito bons e Rita Moreno teve uma preciosa participação como Valentina como viúva Doc, o mentor de Tony no original.  Agora, este papel é dela.  Através da personagem de Moreno, o filme discute os casamentos mistos e as suas dificuldades.  Também gostei muito da moça que faz Anita, Ariana DeBose.  Ela tem uma grande presença em cena, canta muito bem e confere uma segurança e sensualidade muito grandes à personagem.  Seu par, David Alvarez, destaca-se pelos mesmos motivos, a interação entre os dois é bem incendiária.  No filme de 1961, Rita Moreno, que fazia Anita, e George Chakiris, o Bernardo, ganharam o Oscar.  Vi várias resenhas dizendo que Alvarez é melhor que Chakiris.  Olha, fora a maquiagem, o que realmente é ruim, Chakiris brilhou. Ele e Alvarez tem linhas de interpretação diferentes, fora isso,  Chakiris é elegante, longilíneo, Alvarez é rústico, são dois modelos de masculinidade e de beleza, mas os dois são excelentes.  Acredito que ambos recebam indicação ao Oscar com chance de vitória.

Outro destaque do filme é Iris Menas, homem trans não-binário, que faz Anybodys.  Confesso que, no início, a transformação da moça tomboy, que implica em reprodução de comportamentos de gênero masculinos, mas nada tem a ver com sexualidade, ou identidade de gênero, em um homem trans.  Percebo um certo apagamento, ou incompreensão do que é ser tomboy fazendo com que muita gente, especialmente, na internet, identifique uma menina que gosta de coisas consideradas masculinas como lésbica, ou trans, no entanto, Menas está muito bem, por isso, fui mudando de ideia ao longo da película.  A  alteração acabou funcionando comigo e a personagem tem grande espaço no filme, não é uma pontinha sem importância.  Recomendo a matéria sobre Menas e que fala como ele construiu a personagem..

Já falei que a nova Maria me incomodou e preciso aprofundar um pouco a discussão sobre o papel das mulheres no filme, especialmente, a mocinha e Anita.  Maria é, no musical e no filme original, a representação da pureza que se materializa em seus vestidos brancos ou em tons pastel em contraste com as cores fortes das outras moças.  Ela ama Tony, aquele amor absurdamente instantâneo da peça original, mas ela não é capaz de enfrentar o irmão, mesmo que ele não esteja no lugar de pai.  No filme atual, ele está sob a responsabilidade do irmão, ela deve obediência à Bernardo.  Eu nunca entendo a idade de ninguém, salvo Maira, que tem 18 anos, em West Side Story, seja o antigo, ou o novo.  Os rapazes são chamados de delinquentes juvenis, mesmo que Bernardo, Anita e Tony pareçam adultos.  Por qual motivo o baile é no colégio?  As personagens faziam alguma espécie de supletivo?  Ficou confuso, mas o filme parece sugerir que são adolescentes e, ao mesmo tempo, não.  

OK, a Maria desse filme enfrenta o irmão e é ela que toma a iniciativa e beija Tony.  Em 1961,  e imagino que no musical original, Tony e Maria dançam aos olhos de todos e como se ninguém estivesse ali, se apaixonam no salão, neste filme eles vão para trás da arquibancada.  Estamos nos anos 1950, honra é algo importante, uma moça poderia ficar mal falada por muito pouco, essa percepção de honra era muito forte entre os latinos e eu posso citar casos da minha adolescência, ou seja, final dos anos 1980 e início dos anos 1990, de moças que sofreram por causa da língua do povo por muito menos.  Bernardo poderia voar em cima de Tony ali mesmo.  A mudança foi ruim e é mais destacado o fato dele ser do grupo dos Jets do que o fato de estar sozinho atrás da arquibancada com a irmã do chefe do grupo inimigo.  

O filme também naturaliza que Bernardo more junto com Anita sem serem casados, mesmo que não houvesse impedimento para isso.  Se agarrar na frente da irmã virgem parece aceitável, assim como que Maria soubesse que os dois estavam transando no quarto ao lado.  Olha, gente, fica parecendo que entre os latinos, ou porto-riquenhos essas coisas eram normais.  Sabe, as brancas são inocentes e puras, as latinas, não?  Aliás, isso é meio que invocado pelos rapazes na cena da tentativa de estupro de Anita por parte dos Jets.  Sequência, aliás, que é muito violenta em ambas as versões, mas, talvez, mais explícita na de Spielberg.  O fato de acusarem as mulheres latinas disso, ou daquilo, não quer dizer que elas fossem de fato.

Alguém poderá dizer que Graziella (Paloma Garcia-Lee) é vista de shortinho ajeitando a roupa e saindo de um trailer onde estava com Riff. Ela anda com os Jets, ela diz já ter sido namorada de Tony, ou seja, passou de um chefe do grupo para outro.  Só que está dado no filme, retomem a fala do Tenente Schrank, que Grazi não era mulher para casar.  Anita poderia até ser sensual, mas ela era uma moça trabalhadora e direita, Bernardo deseja casar com ela em ambas as versões, quer que ela seja a mãe de seus filhos, ainda que eles discordem no número, só que nesta de 2021, eles já estão morando juntos e jovem fica na igreja imaginando como compensar sexualmente o namorado depois da trágica luta.  Eu realmente não gostei desta sequência.

No intuito de tornar Maria e Anita mulheres mais ao gosto das sensibilidades modernas, elas se afastaram do que seria a média do comportamento feminino entre as imigrantes nos anos 1950 e que estava bem marcado no filme de 1961.  No novo filme, Anita é quase uma feminista em seus argumentos, assim como Maria.  Bernardo fica meio que encurralado pelas duas e não consegue se impor, pois todos os membros da família pagam uma parte do aluguel.  No original, a discussão era mais entre o estilo de vida norte-americano, algo que Anita defendia com unhas e dentes, e a vida tradicional em Porto Rico da qual Bernardo tinha saudades.  Tanto Anita, quanto Bernardo, trabalham em cima de idealizações.

Outra crítica a fazer ao filme sobre a representação das mulheres é o emprego de Anita e Maria.  Anita fala que tem seu próprio negócio e emprega outras mulheres, Maria deveria ser uma delas, mas a irmã de Bernardo canta "I feel pretty" com as colegas de faxina em uma loja de departamentos.  No original e no filme de 1961, tanto Anita, quanto Maria, e outras moças ligadas aos Sharks trabalhavam em uma loja de vestidos de noiva.  É lá que Tony e Maria fazem seu casamento simbólico.  Aliás, a cena de 2021, que foi em um museu, ficou bem mais bonita.

Enfim, o filme de 2021 modificou o lugar de trabalho de Maria, colocou Anita como uma "empreendedora" e, não, alguém que sonha com o próprio negócio, e ignorou que as porto-riquenhas representavam a maioria da mão-de-obra dos negócios de vestuário em Nova York na época e boa parte das alunas dos cursos de costura da cidade, além de atuarem nos sindicatos da categoria.  De novo, tentativa de se aproximar dos nossos dias, distorce a história e o papel dessas mulheres latinas no mercado de trabalho nos EUA, como se o único caminho fosse fazer faxina.

Já caminhando para o final, na versão brasileira não legendaram as falas em espanhol.  Nos EUA, não houve legendagem nem do inglês, nem do espanhol e Speiberg falou que era por uma questão de respeito ao segundo idioma do país.  OK, mas o que isso tem a ver com o Brasil?  Falando nas legendas, acho que nunca vi legendas tão ruins quanto a deste filme.  Trabalho muito porco.  

Me explicaram que as legendas ruins foram imposição vinda direto de fora, só me fez pensar no quanto somos maltratados.  A ideia é que as legendas seguem as músicas que aparecerão no musical que estreia ano que vem.  Eu não paguei para assistir ao musical que sai em 2022, provavelmente, nem terei a oportunidade para isso e dada a qualidade das legendas das músicas, e sei boa parte das letras originais de cor, fiquei bem incomodada.  Fora isso, paguei para ver o filme no cinema e essa decisão é um desrespeito com os consumidores.  Mas somos brasileiros, não é mesmo?  Ser desrespeitados, mesmo quando pagamos por um serviço, é normal.

Só que as legendas não eram ruins somente nas músicas, mas nos diálogos também.  E ruins não somente por causa da tradução, mas por terem problemas de concordância entre outros, fora, claro, que não legendaram as partes em espanhol.  E se eu entendo 90% de tudo o que falaram em espanhol (*eles falavam rápido, usavam gírias que me escapavam*), eu não sou o público inteiro.  Você paga para assistir um filme legendado e precisa receber legendas decentes.  Da mesma forma que quando se assiste um filme dublado, a dublagem precisa ter qualidade.

Acho que é isso.  O Amor, Sublime Amor de 1961 estreou em um 25 de dezembro.  Nesta resenha revisitei o clássico, porque olhei o filme depois de mais de vinte anos.  Houve ganhos, como o fato dos membros de gangue usarem palavrões e uma linguagem adequada à delinquentes juvenis, e perdas, como a modernização do comportamento de Maria e Anita.  Qual o filme melhor?  Não sei dizer, afinal, os dois são muito bons, cada um do seu jeito.  O que sei é que Steven Spielberg fez um belo trabalho em sua estreia em musicais.


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