Me pediram para fazer uma resenha do excelente documentário da BBC chamado Como pensam evangélicas, que podem definir eleição para presidente. O povo está querendo que eu tenha uma crise de gastrite, porque a história da caderneta da gestante e este vídeo acabaram com meu humor por hoje. E não se trata somente, no caso do documentário, de uma possibilidade da reeleição do atual presidente, mas do nível de degradação espiritual e intelectual que parece imperar no meio evangélico do qual eu fiz, ou faço, parte. Eu realmente não sei mais, porque não consigo me conectar com o tipo de Cristianismo que parece estar na moda nas igrejas evangélicas do Brasil.
E escrevo isso, porque há toda uma necessidade de parte das entrevistadas em justificar como, mesmo com tudo o que está acontecendo no país, elas irão repetir o seu voto em Bolsonaro. Eu me senti mal, estou me sentindo muito mal mesmo, porque eu já escrevi outras vezes e mantenho, nem todos os que votaram em Bolsonaro são maus, mas todos os maus votaram em Bolsonaro. Agora, se quatro anos depois, com tudo o que ele fez e deixou de fazer, com as vítimas da pandemia, e ainda é capaz de defendê-lo, não há salvação. O vídeo do documentário está abaixo:
Logo abaixo do vídeo temos um resumo do que se trata e irei reproduzir aqui: "Quase 70% de evangélicos votaram em Jair Bolsonaro no segundo turno da eleição de 2018, que o elegeu presidente. Naquele ano, os evangélicos definiram o resultado, dando 11 milhões de votos a mais a Bolsonaro na disputa com o candidato do PT, Fernando Haddad. Mas, neste ano, pesquisas de intenção de voto mostram que a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na disputa tem provocado rachas nesse eleitorado – homens evangélicos continuam com Bolsonaro, mas as mulheres estão praticamente divididas entre os dois candidatos, conforme as últimas pesquisas de opinião. E, segundo especialistas, são as evangélicas, que em sua maioria são de baixa renda, pretas e pardas, que poderão definir quem vai presidir o Brasil a partir de 2023. Afinal, elas são quase 60% dos evangélicos no Brasil. Para entender o que busca esse eleitorado, nossa repórter Nathalia Passarinho viajou para Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia e conversou com evangélicas que pretendem repetir neste ano o voto em Bolsonaro em 2018 e outras que mudaram de opinião. Nas entrevistas, algumas questões chamaram a atenção: a conexão com candidatos que falem em "proteção da família", a decepção com a gestão da pandemia, o medo de perda de controle sobre o que filhos aprendem na escola e a demanda por medidas nas áreas de saúde, educação e segurança."
É algo assentado, tanto nos meios acadêmicos, quanto nos jornalísticos, que o voto evangélico definiu as eleições em 2018 e pode decidir novamente. Muito bem, ao que parece, dentro do grupo dos evangélicos, e não adianta querer separar os neopentecostais dos demais, porque está tudo muito mais misturado do que alguns parecem crer, e digo mais, não é de hoje, é coisa que vem lá dos anos 1990, as mulheres parecem estar repensando seu voto. Será mesmo?
Entre os homens evangélicos, e o documentário fala disso a partir de conversas com especialistas, a adesão ao presidente continua muito grande. Isso, aliás, é apontado pelas pesquisas. Visto como um "modelo de masculinidade", seja lá o que isso signifique, os homens evangélicos se identificam com a "espontaneidade" do presidente e sua (suposta) coragem e humildade, que vai de encontro a uma manipulação discursiva de textos bíblicos. Bolsonaro seria indigno e, por isso mesmo, Deus faria milagres através dele. Neste momento, aquele vídeo de Malafaia dizendo “Deus escolheu as coisas loucas, escolheu as coisas fracas, escolheu as coisas desprezíveis, por isso ele escolheu você, Bolsonaro!”. Muito bem, continuam esperando pelo milagre.
Há um texto da BBC resumindo o documentário e o cito aqui: "A face típica do evangélico no Brasil é feminina, negra e jovem: 58% são mulheres, 59% são pretos ou pardos e mais de 60% têm entre 14 e 44 anos. Os dados são de uma pesquisa Datafolha de 2020, a mais ampla feita até agora sobre o perfil do evangélico brasileiro." O documentário entrevista mulheres evangélicas na Bahia, Rio de Janeiro e Brasília. Contrariando uma fala logo do início do documentário, que afirma que a maioria das eleitoras evangélicas é jovem, negra e periférica, o documentário entrevista poucas mulheres jovens, a maioria tem mais de 40 e, para efeito de senso, juventude vai até os 35 anos. Nas igrejas batistas, as organizações de jovens também seguem esse padrão, só para dar o exemplo. Fez 36, não fica mais na Mocidade. Antes dava até briga isso. Agora, há uma coerência na amostragem que é selecionar somente mulheres pentecostais e neopentecostais.
Alexia Pimenta, uma pastora de 22 anos de Belford Roxo (RJ), cidade onde mora o meu irmão, é uma dessas jovens com destaque no filme. Só que ele dá um grande espaço a uma pastora de Brasília, Jacqueline Rolim, que destoa do recorte proposto. Ela não se identificou como negra na sua fala, não é jovem e parece muito mais com aquele eleitor médio de Brasília que votou por vários ciclos eleitorais no PT, mas que, em um dado momento, abraçou o antipetismo. Rolim decidiu se desculpar publicamente por seu voto em Bolsonaro quando ele debochou das vítimas de COVID com falta de ar. Ao fazer isso, tornou-se alvo de retaliações.
Jacqueline Rolim aponta a falta de amor cristão de Bolsonaro, mas destoa das demais por não abraçar a agenda moral em seu discurso. Ela se decepcionou com o PT por causa das acusações de corrupção, enquanto as demais falam de "liberdade religiosa" e de "família", a palavra chave nessa questão toda, ao que parece. E cito Jaqueline Teixeira de novo: "Essas mulheres, quando falam em respeito à família, estão abordando as posições das pessoas dentro do contexto familiar. Então, filhos que obedecem e respeitam seus pais, coisas que crianças de determinada idade não podem ver. E esse temor de perda de controle foi muito instrumentalizado na eleição de 2018 e deve voltar a ser explorado nas campanhas deste ano."
As fake news investem pesadamente no discurso de que a esquerda impõe pautas a toda a coletividade. Como não poderia deixar de ser, a questão dos direitos dos LGBTQIA+ é invocada. Também se fala de uma velha mentira, oriunda lá da eleição de 1989 e passada dos púlpitos de igrejas neopentecostais, porque lembro da minha tia Rute repetindo essas bobagens, de que o PT iria fechar as igrejas. Quando vim para Brasília, em 2001, lembro da primeira eleição e das centenas de folhetinhos, que imagino que tenham sido jogados de helicóptero com essa mesma balela. Quatro governos do PT, nada nesse sentido foi feito, mas a historinha continua a circular, ganhar novos matizes e detalhes.
A ameaça comunista curiosamente não apareceu no documentário, mas uma pastora do Rio, Raquel Prado, afirmou que os jovens vão para a universidade são cooptados por ideologias sem explicar quais. "Eu vejo famílias perdendo os seus filhos para ideologias." De novo, o conflito com a família, os valores aprendidos. Agora, que família é essa, e as famílias evangélicas são plurais, quais valores são esses, nada é aprofundado. O que sinto falta nesse material discutindo os evangélicos é uma amostragem do tipo de família que temos nas igrejas. Nas comunidades pobres, e eu sou de São João de Meriti (RJ), é muito comum termos avós que cuidam de netos, mães solo, o filho "marginal" que volta e meia retorna ao lar e à igreja, separações que são acomodadas, ou não, pela comunidade, sujeitos com mais de uma família e que se mantém ativos na igreja (*que finge não ver*), o irmãozinho ou irmãzinha que se mantém no armário e tem espaço na igreja por ser filho/a de alguém importante etc. Parece que quem estuda o grupo não se preocupa em confrontar o ideal de família, se é que ele existe, ou quais são, e as famílias reais, quais as angústias e dores dessas pessoas.
O que fica evidente na maioria das falas, maioria mesmo, é que mesmo decepcionadas com o governo atual, a agenda moral, na verdade o terror em relação a temas sensíveis, é o maior definidor do voto. Para justificar, temos de tudo. Desde mulher negra dizendo que nunca sofreu racismo na vida, nem ninguém de sua família, ainda que saiba que ele existe, até a pastora Alexia contando um caso horrível de racismo sofrido por sua irmã e irmão para, em seguida, afirmar que não votaria em racista e que Bolsonaro não é racista.
O documentário segue para o Nordeste e diz que foi a única região onde Bolsonaro não venceu. Em Salvador, entrevista Luciene Pereira, assistente social, e a típica irmã da Assembleia de Deus que é reconhecível em qualquer lugar do país. Uma mulher com sólida formação intelectual e, muito provavelmente, respeitada em sua comunidade. Ela arrasa Bolsonaro: "Como presidente de uma nação, ele podia usar a mídia para dar um conforto às famílias que estavam perdendo seus entes queridos. Muitas vezes a gente se sentia abandonado, tipo solto, como se não tivesse ninguém por nós. A gente sentia como se ele estivesse legislando contra nós brasileiros, ele sendo o nosso presidente." Ela certamente não irá votar em Bolsonaro? Certo? Observe o print abaixo:
Pereira vai criar uma série de escusas para continuar votando em alguém que não se qualifica como cristão. Ele é o único que fala de família. Todos os políticos mentem. Por fim, a jornalista lhe mostra o vídeo da Hebraica (RJ), aquele que envergonha uma parte da comunidade judaica, aqueles que estavam protestando do lado de fora, e no qual Bolsonaro chamou Laura de fraquejada, e disse que viu quilombolas que deveriam pesar mais de sete arrobas e que não serviam nem para procriar.
É visível a angústia e a perplexidade no rosto de Luciene. Eu me senti mal de olhar a reação dela, porque parecia carregar um grande sofrimento. Ela efetivamente não conhecia o vídeo. Só que, assim que terminou, ela começou a levantar escusas para o presidente. Ele não deveria dizer o que disse, o problema, segundo ela, é que ele se expõe, enquanto Lula não faz isso. Por fim, Luciene reafirma que o voto dos evangélicos não é determinado por pastor, que há autonomia. Eu realmente acredito que isso seja uma verdade em muitos sentidos, no entanto, o público em questão parece facilmente manipulável pelo terror moral, um dos pilares do fascismo, segundo Jason Stanley.
E, no fim das contas, como ficou sugerido, Bolsonaro não precisa nem falar a verdade, basta falar em "família", "Deus", "liberdade religiosa". Resta saber, claro, se os adversários irão deixar que ele monopolize a eleição com suas pautas morais, ou trarão para a ordem do dia a inflação, a fome, desemprego, acesso à educação, aposentadoria, a violência e mesmo a corrupção. Ainda assim, não sei se a agenda moral conjugado com o discurso de que os humilhados estão sendo exaltados neste governo não irá definir novamente a eleição e teremos que ouvir a ladainha do ruim com ele, mas, pelo menos, ele se fala da família. Pronto, era resenha que vocês queriam? Está aí.
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