segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Comentando Makki Gun De Mo Genkidesu 38 Sai Ero Manga Ka, Daicho Gun Ni Naru: Autora transforma sua experiência com um câncer terminal em um mangá impactante

Em 2019, a mangá-ka Hilnama descobriu aos 38 anos que tinha câncer de intestino e seu caso era terminal, pelas previsões médicas, sua expectativa de vida seria de trinta meses após a cirurgia.  Depois do choque inicial, ela decidiu transformar sua experiência pessoal em um mangá que fala da sua trajetória pessoal e oferece informações médicas e conselhos para outros pacientes e familiares.  É um trabalho muito contundente, porque sem se dar ao direito de transformar sua experiência em padrão, a autora oferece aos seus leitores um vislumbre das angústias, medos e pequenas alegrias de alguém, aparentemente saudável, que, no auge da vida, recebeu uma sentença de morte.

Makki Gun De Mo Genkidesu 38 Sai Ero Manga Ka, Daicho Gun Ni Naru (末期ガンでも元気です 38歳エロ漫画家、大腸ガンになる), em inglês, I'm a Terminal Cancer Patient, but I'm Fine tem dez capítulos e foi publicado em 2021 e a autora ainda está viva e produzindo.  Estou dando um spoiler, sim, é isso mesmo.  O título original se refere a sua idade, 38 anos, muito jovem ainda para estar às portas da morte, e o tipo de mangá que Hilnama faz, ela é autora de BL.  Aliás, em mais de um momento do volume, quando a autora diz que faz mangá, médicos e enfermeiros perguntam se ela usa o mesmo nome nas suas obras e o que poderiam ler dela.  Hilnama desconversa, muda de assunto, e o que fica evidente é que fazer certos tipos de mangá ainda pode ser visto como um estigma.

Uma das escolhas da autora é se representar e também ao seu marido e cunhada, pessoa que lhe dá grande apoio durante à doença, como coelhinhos.  Olhando as ilustrações, salvo o marido, fica evidente para mim que ela buscou inspiração no Choujuu-jinbutsu-giga (鳥獣人物戯画), um manuscrito do século XII-XIII, que para alguns é o primeiro mangá, e que traz animais antropomorfizados, sendo um dos que mais aparecem, um coelhinho igual a como Hilnama se desenha.  A cunhada é desenhada com vestes que lembram a de uma monja budista.  Em um momento específico, aparecem pessoas desenhadas como sapos, outro animal presente no manuscrito.  

Agora, as demais personagens são desenhadas como humanas.  Quando são mostradas partes do corpo da autora, fragmentos normalmente enfocados durante exames, ela também é mostrada como humanas.  Não sei se a autora explicou esta escolha em alguma entrevista, se ela sempre se desenhou como coelhinha, enfim.  Escrevo isso, porque muitos mangá-kas se desenham como animais, plantas, enfim, como caricaturas.  Em vários casos, nunca revelam seu rosto.  E não estou falando somente de autores de mangás eróticos.

Ao longo do mangá, a autora mostra os vários momentos e os sentimentos que a invadem ao longo da sua caminhada.  Tudo começa com a autora percebendo que estava conseguindo comer cada vez menos e, ao mesmo tempo, continuava sentindo fome.  O trabalho, no entanto, a absorve e ela só vai ao hospital, nesse caso, a emergência, quando está padecendo de cólicas menstruais severas.  Ela explica que sofre de dismenorreia, mas as dores e o sangramento foram intensos demais.  Ela e o marido vão para a emergência e ela explica seus problemas para comer e que se sente estranha.  O médico de plantão faz pouco caso de seu relato, é só uma mulher exagerando e a manda para casa.  Esse tipo de comportamento é comum, é uma questão de gênero que pode fazer com que a vida de uma mulher seja colocada em risco, porque a sua palavra não tem valor.  Aliás, se for negra, no caso do Brasil, tanto pior.

O marido fica preocupado e faz com que Hilnama jure que ira procurar um gastroenterologista.  E, sim, ela vai e tudo corre muito rápido.  Logo, a autora tem um diagnóstico que não é dos melhores.  A mangá-ka se esforça (*e credita as médicas que revisam seu material e agradece o pessoal da área de saúde que a segue nas suas redes sociais*) por dar todos os detalhes dos exames, sintomas, reações, apontando que sua experiência pessoal pode não ser idêntica a de outros pacientes.  Isso vale para sintomas, desenvolvimento da doença, reações etc.  Algo importante é que o médico que desconfia do problema da autora recomenda que ela não volte ao hospital no qual as suas reclamações foram ignoradas.

O mangá dá muita atenção a mostrar como funciona o sistema de saúde japonês.  Ele não é totalmente gratuito, não é como o SUS, mas há reduções para  casos de doenças graves.  Algo importante, se você deseja uma segunda opinião médica, e a autora vai atrás de uma, isso é cobrado e a consulta mostrada no quadrinho tinha um tempo cronometrado, cada minuto excedido aumentava a conta.  Aliás, o médico da segunda opinião era de um hospital especializado e quando Hilnama pergunta se seria melhor se transferir para lá, ele diz que não, que o caso dela tinha um diagnóstico fechado e definitivo, estar em um hospital que fazia pesquisas na área não faria diferença, só aumentaria custos.  Ele também lhe diz algo parecido com o que disseram ao meu pai, quando ele teve diagnóstico de câncer no intestino, "câncer é uma loteria.  Você pode viver três meses, três anos, trinta anos".  A autora continua viva e descobre que as pesquisas sobre a doença avançam a cada instante e que diagnóstico fechado não existe.

Passada essa fase de exames, partimos para a cirurgia e mais burocracia do sistema de saúde.  É preciso de um fiador, por exemplo, porque a conta deve ser paga por alguém mesmo em caso de morte.  E o fiador não pode ser o marido.  A autora recorre a sua cunhada, porque não quer ter contato com sua família de sangue.  No meio desse drama do câncer, Hilnama traz para o debate a violência que sofreu do pai durante sua infância e adolescência.  Nada é dito sobre abuso sexual, mas os espancamentos eram constantes.  Nesse momento, ela agradece por sua cunhada acreditar nela, porque as vítimas sempre correm o risco de serem desacreditadas, terem seu sofrimento ignorado ou diminuído, especialmente, quando o agressor parece ser uma pessoa "normal" ou, simplesmente, sob o argumento de que deveria ser grata aos seus pais apesar de tudo.  Neste capítulo, é explicado que o paciente pode especificar que não quer receber visitas da pessoa A e/ou B, e Hilnama se assegura que seus parentes não poderão entrar para vê-la, mesmo se quiserem.

O mangá age como um manual.  O que levar para o hospital?  Quais as roupas mais confortáveis?  E o que alguém na situação da autora pode comer?  Como é a recuperação?  Quais os efeitos da quimioterapia?  É igual para todo mundo?  A resposta é não, e um dos méritos da série é não se afirmar universal.  Outra preocupação do mangá é falar da família do paciente.  Como eles podem ajudar e como precisam ser apoiados, também.  No caso de Hilnama, ela recorre à cunhada, porque seu marido, por mais amoroso e prestativo que seja, é depressivo e já havia estado inclusive em licença médica prolongada para tratamento.  Ele não aguentaria o tranco sozinho.  Ela também faz recomendações aos que se propõe a palpitar.  Cuidado!  Se você não passou pela experiência pode cometer alguma barbeiragem.  Seja discreto, prestativo, ouça mais do que fale.

Acredito que já cobri mais ou menos do que se trata a obra.  Apesar dos bichinhos fofinhos, é um mangá pesado, denso, mas, curiosamente, não é triste, ele leva você ao inferno, mas não lhe deixa lá.  É impressionante a capacidade da autora de, sem ser piegas, passar certo otimismo, além de injetar humor em momentos que são tão complicados.  A gente ri e chora, por assim dizer.  E eu, que tenho tanta gente que foi levada pelo câncer e que tem medo de ser vítima, também, não pude deixar de ser tocada.  Assim como meu tio, que foi tão cedo e tão rápido, a autora também não fumava, bebia e tinha uma vida até bem saudável, meu tio deveria ter mais, porque era dado às atividades físicas, e, ainda assim, a doença veio.   

Eu realmente acredito que este mangá deveria sair no Brasil.  É um volume só, teria apelo para um público amplo, mesmo sendo josei.  E é um ensaio mangá, como outros que a Newpop tem lançado, por exemplo.  A autora agradece à paciência da editora em esperar os capítulos, porque houve momentos em que ela não tinha forças para produzir, um dos sintomas da quimio foi a dormência nos pés e nas mãos.  Ela fala, também, do risco da COVID-19, porque seu tratamento se deu no ápice da pandemia.  E sempre havia o risco da série ficar inacabada, claro.   Espero que Hilnama tenha muito tempo de vida ainda e uma vida plena.  Mas não vou me prolongar mais.   Tem scanlations, mas a edição Kindle americana do mangá está até por um bom preço no Amazon.  Hilnama tem dois perfis no Twitter: 1 - 2 (NSFW/+18).

1 pessoas comentaram:

Oi, Valéria, não sei se vc viu mas todos a Netflix colocou todos os episódios de Kimi ni todoke

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