domingo, 24 de novembro de 2024

Comentando o livro Ainda Estou Aqui: o valor da memória e da justiça na trajetória de uma Antígona Moderna

Terminei ontem de ler Ainda Estou Aqui, a autobiografia de Marcelo Rubens Paiva, livro que ele escreveu motivado pelos protestos de 2013 e meio que antevendo que coisas ruins poderiam vir daí.  Só li por causa do filme, coisa que sempre foi comum na minha vida desde a minha adolescência.  Já perdi a conta dos livros que li por causa de filmes, séries, desenhos animados e mesmo telenovelas.  Por isso  sou tão defensora das adaptações, mesmo quando elas não fazem justiça ao original.  Afinal, quando uma obra vai para outra mídia, encontra um novo público.  Obviamente, em tempos emburrecidos e embrutecidos como os nossos, há quem ame a adaptação e diga que quer distância do original chato.  Vi isso quando a Netflix patrocinou aquele filme deplorável baseado em Persuasão.

Antes de ir para o livro, vamos a um resumo do drama da família de Rubens Paiva (1929-1971), que deu base ao filme inspirado no livro e que mudou a vida do autor, na época, um menino de 11 anos.  Brasil, 1971, auge da repressão da Ditadura Militar (1964-1985), o AI-5 de 1968 tinha criado um ambiente de total liberdade para que os agentes do regime praticassem toda sorte de violência. A vida de Eunice Paiva (1929-2018) e seus cinco filhos muda abruptamente após o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, que tinha somente 41 anos.  Eunice terá que lutar para manter a memória do marido viva, lutar para que o Estado reconheça o crime cometido por seus agentes, enquanto se desdobra para manter sua família unida e terminar de criar seus filhos.

Ainda Estou Aqui, lançado em 2015, não segue uma cronologia.  Ele vai e volta no tempo, começa quase no presente, com Eunice já sofrendo com Alzheimer, discute a doença, como funciona a memória.  Vai costurando as lembranças de Marcelo Rubens Paiva sobre sua infância mais recuada, fala da fazenda do avô Paiva, avança para sua adolescência e juventude, o fato de ter se tornado o "homem da família" com o desaparecimento do pai.  A mãe o lembrava disso várias e várias vezes, ainda que, a julgar pelo livro, a pressão psicológica não tenha se revertido em uma delegação de poderes por parte da mãe.

Entrelaça suas experiências pessoais, seus dramas com a própria história do país e o drama de sua família: o desaparecimento do pai, a luta da mãe para tê-lo de volta ou que seja reconhecido como morto, o direito negado de enterrar alguém querido que é como nos congela no tempo.  O livro fala da educação e formação de Rubens e Eunice, de como eram pessoas notáveis, brilhantes até, mas representativas de sua classe social e geração.  Eram falhos e limitados, eram humanos.

Agora, é fato que, em condições normais, não leria Ainda Estou Aqui.  Não tenho interesse pelas experiências de adolescente e jovem de classe média nos anos 1970-80 de Marcelo Rubens Paiva.  Seus amores, suas primeiras experiências sexuais, a leniência da mãe em permitir-lhe que consumisse álcool, drogas e dirigisse sem carteira sendo menor de idade, tampouco a cantilena de que eles viviam em condições econômicas difíceis.  Claro, para quem foi classe média alta, de repente virar, talvez, classe média baixa é um choque.  Ainda assim, a vida dele não foi nem de longe difícil no sentido econômico da coisa.

O livro é, portanto, feito de altos e baixos para mim.  Não me interessam as experiências e picardias juvenis do autor, não vou mentir, mas gosto muito quando se fala de Eunice, da família Paiva como um todo, do painel da classe social a qual pertenciam.  Progressistas, sim, membros de uma elite intelectual, mas cheios de (pre)conceitos da sua época.  O autor mostra o quanto sua mãe era forte, lutadora, mas machista na sua permissividade com o filho homem, que as filhas não recebiam.  De como foi tirado de uma escola construtivista moderna e colocado em uma escola pública, porque, nas palavras do autor, os pais não queriam que ele fosse bicha.  

Há toda uma discussão na primeira parte do livro sobre a masculinidade e como Rubens Paiva fez pouco caso da esposa quando ela disse que poderia trabalhar. "Vai abrir uma butique em Ipanema?".  Não, ela acabou se tornando uma jurista respeitada internacionalmente e uma especialista em direitos indígenas, alguém que nunca aceitou ser vista como vítima, ou coitada.  Marcelo Rubens Paiva fala de como a mãe nunca chorou na frente dos filhos, como nunca admitiu publicamente a morte do marido, de como se trancava no quarto e derramava lágrimas sozinha.  Ela poderia ter se casado de novo, recebeu propostas, inclusive de amigos da família, mas ela não queria voltar a ser a dondoca, a dama muito educada, poliglota, que sabia fazer um suflê maravilhoso.  O autor não a descreve como feminista em nenhum momento, mas, nas suas contradições, Eunice encarnou uma série de ideias que eram, sim, defendidas pelas várias vertentes do movimento.

Mais de uma vez, o autor comenta o quanto a mãe culpava o pai por não ter se exilado, por não ter pensado na família primeiro.  Em segredo, Rubens Paiva ajudava perseguidos.  Esse "ajudar" motivou a sua morte. Ele conta que a mãe nunca foi convencional como outras mães, que os mimos e afagos vinham das tias, das avós e, infiro pela leitura, do pai.  Rubens Paiva é descrito pelos filhos e por outros como um homem sempre sorridente.  Sei que alguns acharam a representação de Rubens Paiva feita por Selton Mello meio exagerada, mas, a tomar pelo livro, era aquilo mesmo.

Algo muito importante, pelo menos para mim, é que Eunice nunca defendeu vingança, ela queria justiça.  Quando a Comissão da Verdade desvendou a morte de de Rubens Paiva, esmiuçando os detalhes e os culpados, em 2014, Eunice já estava em estado avançado da doença.  Agora, ela e outros juristas questionavam a Lei de Anistia (1979), porque ela era contra acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.  Crimes contra a humanidade não prescrevem, a prisão, tortura e execução de Rubens Paiva contrariava, inclusive, as leis do próprio regime militar, ou seja, estava tudo fora da lei.

Enfim, estou me estendendo demais. A gente vê dentro do livro o material que foi usado para o filme.  Ela está disperso nos seus vários capítulos, então, o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza e mais que justificado.  O suflê, por exemplo, só aparece bem no final.  A frase "Ainda Estou Aqui" está no último capítulo.  Ela passou a ser repetida por Eunice já quando estava no estágio III do Alzheimer.  Ela nunca entrou no último estágio da doença.  

A descrição de Eunice doente foi perfeitamente encarnada por Fernanda Montenegro.  O autor descreve e eu vejo a atriz nas cenas.  Não a há colocaram alongando os dedos do filho, Marcelo Rubens Paiva ficou tetraplégico, algo que ela fazia mesmo depois de parecer ter se esquecido de tudo.  Eu queria muito essa cena no filme, porque foi uma das descrições mais tocantes do livro.  A angústia do vazio causada pela doença e a ternura de um gesto que a mãe fez por mais de trinta anos permanecendo


Pelo filme, imaginava Vera mais velha, talvez com 18 anos, mas ela tinha somente 16.  Não tinha terminado o colegial quando foi para a Inglaterra.  Não acredito, pelo livro, pela Eunice que temos lá, que sua filha educada no Colégio Sion ficasse solta pela cidade como o filme mostra.  Ainda mais sabendo o risco que ela corria.  No livro, Marcelo fala mais de si e da mãe, o pai é central, claro, mas todas as demais personagens são coadjuvantes, então, não sabemos muito das irmãs.

Quando fala da infância antes do desaparecimento do pai, o autor fala de como o Leblon era diferente, não se parecia com o das novelas do Manoel Carlos.  Havia uma grande favela no bairro, que era mais de casas e sobrados do que de prédios.  Os meninos se misturavam e brincavam juntos.  Só que, um dia, a Favela do Pinto pegou fogo.  Incêndio suspeito.  Destruída, seus moradores foram removidos, assim como os que moravam em outra favela à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas.  No lugar da favela do Leblon, construiu-se um grande condomínio habitado, principalmente, por oficiais do Exército.


O roteiro do filme selecionou pedaços do livro, os reorganizou, simplificou.  Algumas mudanças não me agradaram.  Cortaram os avós, as crianças deixadas trancadas pelos agentes com a empregada.  Eles não tinham chave, os avós maternos vieram com a chave reserva de São Paulo.  A missão de Marcelo, que foi mandado escondido, quando os agentes estavam na casa, pela mãe para avisar uma vizinha de que quem viesse até a casa seria preso.  A cena ficaria ótima no filme, há coisas do livro que mereciam estar lá.  

Trata-se de um desejo, claro, não de uma crítica.  Não vi exclusões que possam ser acusadas de nada para além de simplificação e necessidade de criar impacto emocional.  Na média, o filme resumiu muito bem em imagens e diálogos uma série de questões, como o fato de Eunice não ter acesso aos bens do marido.  Ainda que não a tenha mostrado tendo que ir trabalhar.  Imagino que há mais material gravado, cenas que foram descartadas.  Não me surpreenderia se a Globo colocasse esse material em uma exibição em formato minissérie de Ainda Estou Aqui.

E o livro traz alguns documentos como apêndice, processos, relatórios.  Essa parte ocupa cerca de 15% da obra. A parte inicial muito focada no autor e as discussões sobre o Alzheimer me cansaram um pouco, mas não o suficiente para me fazerem parar de ler, eu simplesmente seguia em frente e terminei até comovida.  Não chorei, como não o fiz quando assisti ao filme, mas as descrições de torturas e outras cruezas da ditadura foram incômodas e tem que ser assim mesmo.  Eunice na sua busca pelo marido, da certeza sobre seu destino, do direito de enterrá-lo, ainda que simbolicamente, a torna uma Antígona moderna.  Negar a alguém o direito de enterrar os seus é algo extremamente cruel, porque trata-se de um direito humano mais básico.

A graça, ou a desgraça, foi que enquanto eu lia algumas das partes mais pesadas, veio à público a grande conspiração que quase nos enfiava em outro período de trevas.  Não tive como ter um afastamento crítico da obra.  Concluindo, o livro é bom e eu nunca li nada de Marcelo Rubens Paiva.  Nadinha.  Nem nunca assisti Feliz Ano Velho, o filme.  Para quem quiser o livro Ainda Estou Aqui, a versão Kindle, a que eu comprei, está em promoção no Amazon.

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