segunda-feira, 6 de abril de 2015

Comentando Cinderella, a versão live action de 2015



Com uma semana de atraso, escrevo a review de Cinderella, a versão live action caríssima da Disney.  Poderia simplesmente dizer que não tive tempo/condições de escrever o texto.  Seria verdade, claro, no entanto, se tivesse gostado do filme, daria um jeito qualquer de sentar e redigir.  Só que não gostei do filme.  Apesar de ser um grande espetáculo visual, o figurino, por exemplo, é deslumbrante, o filme é convencional, chato até, utiliza-se de um humor bobinho que normalmente não funciona e é musicalmente pobre.  O chocante é que não consegue nem passar perto da qualidade do desenho original de 1950.  Decepção mesmo.

Se você conhece a história da Cinderela, este resumo talvez pareça desnecessário, mas serei rápida, prometo!  Peço que vocês dêem uma olhada, também, na resenha que fiz da animação de 1950, lá discuto as variantes do conto, que é bem antigo e questões que não desejo repetir aqui. De cara, digo que discordo da tese de que este filme foi uma refilmagem quase fiel do desenho animado e pontuarei, ao longo do texto, algumas diferenças que empobreceram o filme, enquanto pouca coisa de fato o tornou mais interessante.  



Cinderella começa mostrando a felicidade que era a vida em família da menina Ella, sua mãe (Hayley Atwell) e seu pai (Ben Chaplin).  Diferente do desenho, pai da mocinha era um comerciante e, não, um aristocrata.  Não lembro de versão do conto que desse grandes detalhes da ocupação do pai da mocinha, se é que ele trabalhava, mas o comerciante dos contos de fada era o pai da Bela de A Bela e a Fera.  A mãe de Ella a ensina desde muito cedo a acreditar em mágica e ser corajosa e gentil.  Adulta, a heroína se agarra a isso, coragem e gentileza.  Tudo ia muito bem até que a mãe de Ella adoece, é condenada pelo médico e morre.  Pai e filha continuam juntos e se amando muito, os anos passam e a menina cresce e ganha as formas de Lily James.  

Pai e filha viviam muito bem, até que ele anuncia sua intenção de se casar com uma distinta viúva – Lady Tremaine (Cate Blanchett) – que tem duas filhas Drisella (Sophie McShera) e Anastasia (Holliday Grainger).  Em nenhum momento, o pai de Ella parece fazer isso pelo bem da filha, como na maioria das versões, aliás, o filme nem se esforça em dar a entender que o fizera pelo seu próprio bem.  Por que se casou, então?  Mistério... Tão logo entram e cena, as três se mostram vulgares e insensíveis.  Tremaine parece viciada em jogo e ouve quando o pai de Ella fala com carinho e saudade da mãe morta da menina e que a filha era sua única razão de viver.  Tremaine parece profundamente magoada e excluída, mas nada diz.  Assim como na maioria das versões de Cinderella, a tragédia se abate sobre a jovem.  O pai morto, os criados dispensados e Ella convertida em uma espécie de escrava doméstica. 


A moça leva uma vida miserável, as irmãs lhe batizam de Cinder (cinza de fogão)+Ella, porque não raro, para escapar do frio do sótão, ela dorme em um borralho.  Um belo dia, a moça encontra com o príncipe (Richard Madden) na floresta, sem saber quem ele é.  O moço se diz um “aprendiz” que trabalhava no palácio.  O rapaz, que estava sendo pressionado a casar com uma rica princesa, aceita que se faça um baile para que selecione uma noiva.  Sua condição, que toda e qualquer moça possa vir.  Ele deseja reencontrar Ella.  Já a jovem sonha em revê-lo, mas seu plano de ir ao baile é frustrado pela madrasta... Daí, aparece a fada madrinha (Helena Bonham Carter) e o resto é basicamente o que vocês já conhecem... 

Ao saber que Kenneth Branagh iria dirigir o filme, imaginei que esta versão de Cinderella seria grandiosa, interessante.  O que ela trouxe de novo, aliás, algo que o diretor já tinha feito antes em Muito Barulho por Nada (1993), foi escalar um elenco multi-racial.  Ainda assim, os papéis chave são todos de atores e atrizes brancos.  Seria algo realmente curioso se o Príncipe do reino fictício fosse negro, por exemplo, mas isso seria inaceitável para os padrões Disney.  Enfim, Kenneth Branagh não conseguiu me tocar, comover, ou empolgar com o seu Cinderella.



Falando de Lily James, confesso que não consigo vê-la como Cinderella, mas acredito que a culpa é minha, já que olho para ela e vejo a espevitada Rose de Downton Abbey.  Fato é, no entanto, que ela tem um bom timing para comédia e isso não foi explorado.  Boa parte do tempo, ela tenta parecer resignada ou "corajosa e gentil", como queiram, coisa que me pareceu muito forçada, mas, de novo, o problema pode ter sido comigo.  Agora, na seqüência do baile, quase vi um pouco da Rose na Cinderella.  Os olhares trocados com o príncipe, as frases que sugeriam algum duplo sentido, foi como se ela escapasse da chatice dessa Cinderella versão 2015.  

A nova Cinderella não se parece muito com a de 1950, que conseguia se indignar, nem que fosse com o gato Lúcifer, que tinha um quê de desastrada, que venceu no final, porque tinha sido engenhosa e guardado o sapatinho em lugar seguro, e, bem, que cantava!  Eu queria que essa Cinderella tivesse pelo menos duas músicas cantadas, "A Dream Is a Wish Your Heart Makes" e "Bibbidi-Bobbidi-Boo (The Magic Song), ambas só aparecem nos créditos. Enfim, não precisava ser um filme feminista, mas poderia ser bem mais criativo e ousado. Cortar músicas, confiscar as vozes os animais, eliminar o cachorro idoso Bruno e seus arranca-rabos com o gato Lúcifer, não ajudaram o filme.



Algo que me incomodou muito, mas muito mesmo, foi a forma vulgar e histriônica que deram para Lady Tremaine.  A madrasta de Cinderella é uma das grandes vilãs da Disney, fria, cruel, cheia daquela grandeza aristocrática que quer se impor mesmo na miséria.  A Tremaine de Cate Blanchett me lembra Cruella Cruel... Sério, o figurino é muito interessante, o dela, então, é meio atemporal, flertando com a década de 1940 do século XX, mas a personagem se apequenou.  Tive alguma pena dela, compreensão de sua mágoa, quando ela ouve o marido conversando com Ella.  Tremaine é uma excluída e como não temos pistas do seu relacionamento com o marido, como se posicionar?  

A partir daí, poderiam ter adensado a personagem, mas ela continuou artificial, maniqueísta, só temos exibições da sua sordidez, ainda assim, tomando pela cena da biblioteca e a interpretação que Blanchett imprimiu em seu rosto, a gente poderia esperar que a coisa se desdobrasse para melhor, mas, não foi o que ocorreu.  No final, mesmo com Tremaine sendo detestável, tudo me pareceu muito injusto e bem machista. Ah, sim! E cortam uma das maiores crueldades da madrasta, algo presente em várias versões, a promessa de que, se Cinderella conseguisse fazer todo o serviço em tempo, poderia ir ao baile.  Esta parte era muito importante pela sua carga dramática, mas foi reduzida. Já as irmãs, bem, suas cenas tem como objetivo ser alívio cômico, mas eu só as achei chatas mesmo.  Duas boas atrizes desperdiçadas.  No mais, ninguém jamais conseguirá me convencer que Sophie McShera não é linda e graciosa.  Escolheram mal a atriz para o papel, enfim...  Falando nas irmãs, eu prefiro as versões nas quais uma as irmãs não é tão má, ou má de verdade.  É assim que a coisa aparece em Para Sempre Cinderella, aliás.


Tentaram inovar?  Sim, no príncipe, pois o original era somente um lugar, a tábua de salvação da heroína, e não tinha sequer nome.  O novo se chama Kit, tem um pai amoroso (Derek Jacobi), mas muito doente, que tem urgência em vê-lo casado (*percebem a ausência da mãe de ambos? Poderiam ter mudado esse aspecto...*), um capitão da guarda que faz as vezes de aia e conselheira (o impressionante Nonso Anozie) e um grão-duque corrupto (Stellan Skarsgård) que quer casar o moço com uma princesa de nome latino.   Enfim, dão uma personalidade ao rapaz, o colocam quase na situação da típica mocinha que é obrigada a casar por pressões sociais.  Dá para arrancar alguma reflexão disso?  Bem, como o filme assume um tom bobinho, é difícil, confesso que não vi nada ali que não tivesse sido melhor trabalhado antes, seja no muito superior Para Sempre Cinderella, seja até na Bela Adormecida da própria Disney.  

Há certa inversão dos papéis de gênero quando pensamos o príncipe, verdade, mas só quando a pessoa não está a par da pressão que jovens príncipes deveriam sofrer para casarem e procriarem com as parceiras certas.  A maioria dos primeiros casamentos de jovens aristocratas não dependia de sua vontade, afetos ou luxúria, afinal, não raro, eles eram casados bem antes dos 18 anos.  Henrique VIII, que normalmente só é retratado adulto e já querendo um segundo casamento, não era a regra, mas exceção.  



Houve príncipes de monarquias muito poderosas que tiveram que casar por motivos bem esdrúxulos.  Por exemplo, Luís XV, único homem restante do ramo principal de sua família, teve que se casar com a única princesa da Europa em idade parelha a dele, pois precisava garantir linhagem.  A noiva ideal, uma princesa espanhola, rica, com boas conexões, tinha somente 8 ou 9 anos, e a escolhida terminou sendo uma princesa polonesa, pobre, tinha quinze anos e podia começar a parir logo. E foi bem assim que aconteceu...

De resto, a idéia do encontro anterior ao baile, que poderia até ter rendido mais e não ficar na discussão sobre caçadas que serviu para ilustrar o caráter forte e a bondade de Ella, blá-blá-blá, já tinha sido vista antes e de forma muito mais bonita em A Bela Adormecida.  O fato é que na maioria dos contos de fada mais clássicos, Cinderela, A Bela Adormecida, Branca de Neve, o príncipe é o escape da mocinha, não há tempo para as personagens se conhecerem.  A Disney rompeu com isso em 1959 ao inserir o encontro de Aurora e Felipe e, agora, reaproveitou a idéia em Cinderella.  Os dois se apaixonam sem saberem de sua verdadeira origem social, o baile vira uma confirmação, e o sapatinho é detalhe...


Sim, a mudança mais significativa é na ordem dos acontecimentos em relação ao sapatinho de cristal.  Não detalharei, mas achei positivo encarceramento de Ella na torre ser mais longo que na animação (*olha a torre, símbolo fálico mais do que tradicional, e o príncipe libertador aí...*), só que roubaram da heroína um de seus poucos momentos de protagonismo, afinal, ela nem precisou do sapato de verdade... Já a trama da Madrasta e do Grão-Duque foi forçada e seus desdobramentos sem relevância, além disso, cortaram a operação de salvamento feita pelos bichinhos, até, porque, não havia Bruno... Falando em bichinhos, só conseguia lembrar da cena de Princesinha Sophia, a série infantil animada da Disney sobre uma princesa em treinamento, na qual os bichinhos dizem que não gostam das princesas, eles gostam da comida... 

Falando da fada, Helena Bonham Carter participa pouco do filme e sua aparição toma de empréstimo uma seqüência da Bela e a Fera...  Mesmo com toda a riqueza visual, eu esperava que a seqüência da fada madrinha fosse fiel ao desenho.  Não foi.  A parte da abóbora crescendo foi mesmo constrangedora.  Humor que não funcionou outra vez.  Já a parte do baile foi linda.  Imagino que algum livro com o figurino deve ter sido lançado. E eu queria ver as roupas das princesas orientais em detalhes, pois elas apareceram de muito longe.  Já os bordados nas roupas dos homens eram deslumbrantes.  Imagino que a indicação a melhor figurino seja certa.  A estatueta do Oscar nesse caso não seria exagero.


De resto, o filme cumpre a Bechdel Rule?  Sim e fácil.  Várias personagens femininas que conversam entre si e que não falam só do príncipe ou do pai de Ella.  Há, também, a valorização do papel da mãe de Cinderella que, via de regra, já começa o conto morta.  Só que tenho que confessar que a parte mais xarope do filme foi exatamente a primeira, com a mãe da heroína... Enfim, o filme é feminista?  Não.  Aliás, durante  exibição já tinha compreendido porque vários artigos de sites americanos apontavam que Cinderella era um passo atrás em relação à Malévola, Frozen e Valente (*Exemplo, aqui*).  Eu não tenho como discordar.  Agora, preocupam-me as versões anunciadas de A Bela e a Fera e Mulan.  Elas vão olhar para frente, ou andar para trás?  Emma Watson como Bela deve pedir um roteiro bem feminista, mas bateu um desespero ao ver o backlash em Cinderella, sabe?.

É isso.  Não gostei do filme mesmo. Compraria o guia visual, mas não o Blu-ray.  A melhor coisa da sessão foi o curta fofinho de Frozen.  Uma gracinha mesmo. ^_^  Saí de lá pensando que ainda preciso assistir esta animação e com vontade de rever Para Sempre Cinderella, a melhor versão do conto de fadas que eu já vi e a mais feminista.  Se reassistir, prometo resenhar.


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