terça-feira, 27 de setembro de 2016

Comentando o filme Kuragehime (2014)


Quinta-feira passada, finalmente, assisti ao filme baseado em Kuragehime (海月姫), algo como "Princesa Água-Viva", série divertidíssima de Akiko Higashimura.  O filme, lançado nos cinemas japoneses em dezembro de 2014, tenta resumir e recontar a história que conhecemos do mangá, história essa que já havia sido recontada na série animada de 2010.  No geral, foi bem divertido assistir ao filme e só ajudou a acirrar o frenesi em que me encontro no momento.  Estou finalmente lendo o mangá.  Lendo com gosto e avançando rápido nos seus 16 volumes.

Kuragehime é a história de uma moça otaku fanática por águas-vivas, Tsukimi Kurashita (Rena Nounen), que tem sua vida transformada ao conhecer um rapaz crossdresser, o jovem Kuranosuke (Masaki Suda).  Moradora de uma comunidade onde homens são proibidos e cada uma das residentes tem um hobby em especial, ela vê seu mundo ameaçado por um programa de reestruturação urbana que prevê que o seu refúgio, o Amamizukan, será demolido.  Já Kuranosuke bagunça a vida da moça ao apresentá-la a seu irmão mais velho, Shuu (Hiroki Hasegawa), um jovem tímido e com promissora carreira política.  Tusukimi se apaixona por ele, o rapaz por ela, contudo a moça que ele vê não é real, mas uma construção de Kuranosuke.  

As AMARS.
Tsukimi se acha indigna de ser amada, mas é obrigada a tomar uma série de atitudes corajosas e inéditas para tentar salvar o seu lar.  Tsukimi começa a mudar e todas as pessoas ao redor passam por algum tipo de modificação.  O motor da transformação?  Kuranosuke, que se vê repentinamente fascinado por alguém que ele mesmo considerava uma aberração. Ele ama Tsukimi?  Mas ela ama Shuu, ou será... Como se resolverá esse triângulo?  Eles vão conseguir salvar o Amamizukan? 

O filme de Kuragehime começa situando a paixão da protagonista, Tsukimi Kurashita, por águas-vivas e conhecemos logo de saída as moradoras do Amamizukan, um prédio antigo em uma área valorizada de Tokyo.  Banba (Chizuru Ikewaki), fanática por trens; Mayaya (Rina Ohta), cuja vida gira em torno do clássico Romance dos Três Reinos; Chieko (Azusa Babazono), especialista em quimonos e apaixonada por bonecas japonesas antigas; e Jiji (Tomoe Shinohara), que passa o tempo sonhando com homens (bem) mais velhos.  

A cena do aquário.
Juntas elas formam a irmandade das AMARS, as monjas do Amamizukan, um grupo de mulheres, já perto ou passadas dos 30 anos, todas otaku e NEET, isto é, "Not in Education, Employment, or Training" (*algo como: fora da escola, sem emprego ou em formação profissional*).  Tsukimi é bem mais jovem que elas e veio para Tokyo sonhando em se tornar ilustradora.  Além delas, há ainda uma mangá-ka BL, Meijiro-sensei, que nunca é vista, mas funciona como uma espécie de mentora do grupo.  Para ela, homens não são bem-vindos no Amamizukan e quem quebrar esta regra merece a morte.  Por conta disso, Kuranosuke precisa fingir que é uma mulher e, bem, ele é muito bem-sucedido nesse aspecto.

Um dos pontos altos do filme e, para mim, a cena foi muito melhor que a do mangá, é quando Kuranosuke é aparentemente desmascarado, pois seu pai se refere a ele como “filho” diante de Jiji e Chieko.  Sim, porque Tsukimi é cúmplice, ela sabe que se trata de um homem desde a manhã do encontro dos dois, quando Kuranosuke a ajuda a salvar Clara, que se torna a água-viva de estimação da moça.  Mas, enfim, como Kuranosuke engana as AMARS?  Ele as convence de que vive um dilema saído direto de A Rosa de Versalhes!  Ele é uma mulher, assim se sente, mas é obrigado a se comportar como um homem, porque o pai, um político respeitado, não queria uma menina, mas mais um herdeiro político.  

Decepcionando-se com Shuu.
A cena toda é dramática e histérica e se sustenta em sutilezas como o fato do rapaz escorregar e usar “ore”, o eu masculino típico, ao invés de “watashi”, o eu neutro ou feminino.  Kuranosuke é reconhecido como Kurako – nome que, no filme, ele usa desde as primeiras cenas – e se tornar uma AMAR honorária, mesmo contra sua vontade. O impacto do moço sobre as AMARS é enorme.  No início do filme é explicado que elas não conseguem falar com fashionistas, ou homens, elas viram pedra, literalmente.  Kuranosuke consegue se impor e elas vão mudando.  Como o filme tem quase duas horas, o que é muito pouco, muita coisa do mangá é enxugada e modificada.  Os dramas são reduzidos a dois: o destino do Amamizukan e a transformação de Tsukimi.  

O prédio, que pertence à mãe de Chieko, será demolido?  Bem, Kuranosuke jura que não, mas uma agressiva funcionária da construtora, Shōko Inari (Nana Katase), quer convencer políticos e a dona do prédio.  Inari-san tenta seduzir e chantagear Shuu, deixando o rapaz, que é absolutamente inexperiente em assuntos amorosos ou sexuais, em péssima situação.  Ele pode ajudar a obter apoio político para o projeto, algo, aliás, desnecessário, já que seu pai é a favor da reestruturação do centro da cidade.  Como testemunha distante do suposto romance entre Inari e Shuu, Tsukimi sofre.

Tsukimi em um de seus momentos de inspiração.
A moça, aliás, tenta a todo custo se refugiar em si mesma, seus sonhos e devaneios, são uma forma de esquecer a realidade.  Kuranosuke a puxa para fora e a ajuda a descobrir o seu talento para a moda.  Daí, lindos vestidos inspirados em aguás-vivas vão nascendo e tem como modelo o rapaz.  Ela os cria para ele, a sua princesa ideal.  Sim, há discussões sobre gênero, orientação sexual e identidade de gênero em Kuragehime, mas elas são mais presentes no mangá.  Kuranosuke efetivamente gostaria de ser uma mulher, por ser homem, seu pai o separou de sua mãe e eles não se veem há dez anos.  Ele tem genuíno prazer em vestir-se com roupas femininas e adotar maneirismos de gênero, mas é essencialmente heterossexual e se apaixona por Tsukimi.

Ao tentar aproximar a moça de seu irmão – e, no filme, duas várias ótimas sequências são enxugadas – ele acaba se enredando.  Cria uma Tsukimi embelezada, na moda, em contraposição à moça tímida e sem graça que ela acredita ser.  Shuu fica deslumbrado, ele mesmo termina mudando empurrado pelo amor por Tsukimi e à perseguição movida por Inari, mas Kuranosuke passa a ser corroído pelo ciúme.  Como é muito comum nas boas histórias japonesas, os irmãos não brigam por ela, não se ferem nem se enfrentam, mas, cada um à sua maneira, vão construindo a relação com a moça.  

Kuranosuke, a moça mais bonita do filme.
Kuranosuke continua tentando negar o que sente e Shuu, ainda que de forma tímida, tenta se aproximar a partir do momento que descobre que a moça otaku estranha é Tsukimi.  Aqui, cabe uma crítica ao filme, pois ao cortar uma cena na qual Shuu vai até o Amamizukan entregar os pertences de Tsukimi e não reconhece na moça a beldade que ele consolou na visita ao aquário (*a cena é diferente do mangá, mas, ainda assim, bonita e engraçada*), perde sentido o agradecimento que a protagonista faz quando eles se reencontram na reunião com as partes interessadas no projeto de reestruturação do centro da cidade.  Ele não a reconhece, ela sofre.

Não sei como este texto está parecendo para você, leitor/a, mas a minha impressão é de estar produzindo um material muito desorganizado.  O filme não é um dramalhão, acreditem, é muito mais comédia do que qualquer coisa, talvez, o foco da minha análise é que esteja errado.  De qualquer forma, Kuragehime, o filme, captura o espírito do mangá (*e do anime*) e oferece uma leitura muito divertida da história.  O elenco trabalha muito bem, conseguiram mesmo entrar nas personagens.  

Preparando o desfile que pode salvar o lar das AMARS.
O Kuranosuke de Masaki Suda é, de fato, uma bela princesa e absolutamente fiel ao mangá, assim como a interpretação de Rena Nounen é muito fiel à Tsukimi original.  O mesmo se pode falar para todas as Amars.  Nana Katase oferece uma Inari-san muito mais exagerada em alguns momentos do que no mangá, mas sem se afastar do original.  Pena que, por conta do tempo restrito do filme, a relação dela com o Shuu tenha sido enxugada.  

Hiroki Hasegawa é um Shuu convincente, ainda que bem mais bonito que o original.  A necessidade de resolver a história faz com que ele passe por uma transformação acelerada, tornando-se assertivo e corajoso por causa do amor de Tsukimi e dos perrengues que passa como Inari-san.  E, se o assunto é beleza, Mokomichi Hayami é um verdadeiro colírio interpretando o motorista da família de políticos.  Amigo de infância de Shuu, ele tem fixação por carros luxuosos e acaba servindo de mestre de cerimônias no desfile dos vestidos de Tsukimi.  

Tsukimi sendo preparada para um de seus encontros com Shuu.
O filme cumpre a Bechdel Rule, nem é preciso discutir esse ponto.  Agora, Kuragehime é um material feminista?  Não, mas traz algumas discussões feministas sobre empoderamento, identidade e papéis de gênero que são interessantes.  Tsukimi é talentosa, capaz de criar beleza e encantamento e uma pessoa especial e digna de ser amada como ela é, as mudanças pelas quais passa são válidas e importantes, um amadurecimento, mas não implicam em obrigá-la a se tornar outra pessoa.  Inclusive, nesse aspecto, a imposição de um padrão de moda/aparência às AMARS e, em especial, a protagonista, não se faz presente.  Já com Kuranosuke é possível discutir as imposições de gênero e como o binarismo pode ser rompido e as pessoas podem ser mais complexas do que imaginamos.  

É isso.  Trata-se de um  produto derivado e que pode ser apreciado de forma isolada, mas não deve ser encarado como um filme de primeira linha.  É feito muito mais para quem curte a série original e pensado para esse público e como propaganda da obra de   Akiko Higashimura.  Sua força e fraqueza residem aí, no fato de ser uma adaptação.  Dito isso, recomendo muito o filme e mais ainda o anime e o mangá.  Estou lendo o mangá de forma acelerada, é uma obra bem viciante mesmo, então, é possível que tenhamos uma resenha nos próximos dias. 

3 pessoas comentaram:

Kuragehime consagrou minha volta as otakisses e me fez lembrar porque eu gosto tanto do modo japonês de contar uma estória.
Ainda não li o mangá (que eu fiquei sabendo ainda não estar terminado e ter perdido um pouco da qualidade nos últimos volumes, vou esperar sua opinião antes de ler), mas vi o anime e o filme.
Achei sua análise bem on point e gostaria de ver outros trabalhos dessas autora.


Estou assistindo o anime agora e me apaixonando pelo Kuranosuke, mas fico torcendo pelo romance entre a Tsukumi e o Shu. Agora me deu vontade de ver o filme também.

Aaa, vamos amigar? Gostei de você.
Eu sou muito apaixonada por eles tbm🥺💘

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