domingo, 11 de setembro de 2016

Comentando The Wedding Eve (Shiki no Zenjitsu, 2012)


Ontem, finalmente terminei a leitura de The Wedding Eve, ou Shiki no Zenjitsu (式の前日), mangá josei que a Panini lançou no Brasil em julho.  Como já havia comentado em outros posts, este volume com histórias curtas da mangá-ka Hozumi fez muito sucesso no Japão e ficou várias semanas na lista dos josei mais vendidos.  Para quem não entende essa terminologia, josei (*mulher jovem*) é uma das formas de se referir aos shoujo mangá para mulheres adultas.  Afinal, vários mangás josei terminam premiados na categoria shoujo das tradicionais premiações japonesas.

As histórias deste volume foram publicadas em 2012 nas revistas Flowers e na finada Rinka.  Em The Wedding Eve, não há protagonista que atravesse todas as histórias, mas uma mistura de coisas comuns do cotidiano de muita gente, seja no Japão, ou, aqui, no Brasil, humor e melancolia em alguns momentos, e um certo toque sobrenatural.  São seis histórias curtas, com princípio, meio e fim.  Algo a se destacar é a capacidade da autora de, em poucas páginas, concatenar uma história com personagens bem definidas e, até, simpáticas.

A autora gosta de duplas de irmãos.
O traço da autora flerta com o realismo, o que quer dizer que não teremos aqueles traços exagerados que normalmente associamos aos mangás.  Nada de grades olhos, ou aqueles recursos visuais que muita gente acredita que é a essência de um mangá.  Além disso, ele é limpo, bonito e elegante.  Não há preciosismo nos cenários, mas a autora não deixa espaços vazios salvo quando eles têm alguma função.

A primeira história, The Wedding Eve (Shiki no Zenjitsu/A Véspera do Casamento), dá nome ao volume e acompanha uma dupla de um irmão e sua irmã mais velha nas últimas horas antes do casamento da moça.  A idéia é mostrar a intimidade entre eles e o misto de alegria contida e melancolia.  O casamento de um irmão/irmã é uma ruptura, uma separação.  Eu vivi isso no meu casamento e quando meu irmão se casou, também.  O agravamento no caso desse pequeno conto é que a irmã foi uma espécie de mãe para rapaz, pois ela era bem mais velha que ele e o assumiu quando seus pais morreram.

Casamento é separação, também.
O tema da véspera de casamento volta na história mais longa, O Espantalho que Sonha (Yume Miru Kakashi) em duas partes.  Nesse caso, temos uma inversão, um irmão mais velho que, por força das circunstâncias, precisa servir de porto seguro para a irmã mais nova.  É a única das histórias que se passa fora do Japão, o cenário é os EUA, e no passado, porque ela começa no final dos anos 1960.  A autora, aliás, coloca as mulheres com um figurino que lembra mais os anos 1950 do século XX do que a década de 1980 que deveria ser o tempo presente da história.

As duas crianças foram abandonadas pela mãe, o pai foi para o Vietnã, e ambos não são bem recebidos pela família de um tio paterno.  Para o irmão, cujo ponto de vista é dominante na história, eles são indesejáveis, daí, a vontade de ir embora.  Crescer sem amor é complicado e a menina da dupla acaba chamando o espantalho que dá nome ao conto de “mamãe”.  O toque sobrenatural é que o espantalho parece estar realmente vivo, ou será uma ilusão?  Não seria também ilusória a rejeição familiar sentida pelo protagonista?  


Quando o ciúme consome.
O rapaz, um sujeito com dificuldades de amadurecimento e consumidos pelos sentimentos de superproteção em relação à irmã menor. Ele retorna uma década depois para seu casamento e relembra o passado. De qualquer forma, é uma boa história, assim como a primeira e poderia dar nome ao volume.  O ponto de partida é, também, uma véspera de casamento.  Por ser mais longa, pelos elementos que apresenta, inclusive de cenários, já que há a oposição entre campo (Kansas) e cidade (Nova York), Yume Miru Kakashi parece um roteiro pronto para ser filmado.
Dois irmãos
Em Irmãos Monocromáticos (Monochrome no Kyoudai), temos como protagonistas dois homens de meia idade, gêmeos que não se viam fazia muito tempo e se reencontram nos funerais de uma colega de escola, a moça que foi o primeiro amor de ambos.  Depois do enterro, eles colocam o papo em dia em um bar, primeiro em relação à morta, Yukiko, relembram os tempos de colégio, período da vida em que um foi muito popular e o outro parecia viver na sombras.  A quem Yukiko amou?  Ela amou um dos dois?  A vida dos irmãos seguiu diferentes caminhos. Um casou, já tem netos, tem um negócio próprio; o outro segue solteirão e em um emprego que parece confortável.  O ritmo deste conto é mais lento, desprovido de sobrenatural, o desfecho se não é impactante, afinal, a autora não nos dá muito tempo para nos apegarmos aos dois, é  melancólico, muito mesmo, e realista.  

U ma estranha relação.
O Pequeno Jardim de Outubro (Juugatsu no Hakoniwa) foi de todas as histórias do volume a que me pareceu mais sombria e confusa, ou, talvez, aberta à múltiplas interpretações.  O protagonista é, de novo, um homem.  Escritor de sucesso de um único livro, Kazunori Shinoda, mora sozinho em uma casa nas bordas de uma floresta.  Sem objetivo na vida, sem conseguir escrever outro livro, ele parece visivelmente depressivo.  Sua única companheira é uma parenta, uma adolescente que se impõe a ele do nada – é o que fica sugerido – cozinha e limpa sua casa.  Ele tenta mandar a menina embora, se pergunta o motivo pelo qual algum parente lhe deixaria cuidar de qualquer pessoa.  Outro aspecto da história é um sonho repetido do escritor que envolve um corvo e a morte.  A ave, aliás, é muito parecida com aquela que morava na árvore em frente a sua casa.

Quando folheei essa história pela primeira vez, pensei em como era estranha a relação entre os dois... Lendo a história, ficamos sabendo que houve vários crimes naquela vizinhança, um deles envolvendo uma estudante desaparecida... Estaria a menina da história morta?  Seria Shinoda-san um assassino?  O clima de O Pequeno Jardim de Outubro é tenso, para mim, desconfortável, e não necessariamente pior que as demais histórias, mas uma demonstração de que a autora consegue se deslocar entre contos mais leves e mais densos, entre o sobrenatural acolhedor e outro nem tanto.  Pela leitura, e há uma nota cultural neste conto em particular, talvez algumas referências do folclore japonês pudessem ajudar a entender melhor o enredo, mas é talvez mesmo, não tenho como falar com certeza.


Ah, esses humanos... 
E chegamos às duas historinhas mais leves do volume. Em E Então... (Sorekara) temos um gato de rua que é adotado por um rapaz.  O protagonista, o olhar que guia a história é o do felino.  Em casa, ele sabe que há um recado na secretária eletrônica para o seu humano de estimação, sim, é assim que o gatinho percebe a relação.  Quando seu humano chega, ele tenta avisá-lo, afinal, o recado diz que a única irmã do moço foi internada às pressas, mas é tudo em vão... A história brinca com aquela percepção equivocada que muita gente tem dos felinos, que eles não se importam com seus humanos, inclusive o próprio gatinho finge que não se importa quando, na verdade, é todo cuidado com esses humanos incompreensíveis.  

Já Reencontro em Azusa nº 2 (Azusa Nigou de Saikai), história que eu mais gostei, é outro conto sobrenatural, só que sem a atmosfera estranha de O Pequeno Jardim de Outubro.  Todos os anos, um pai visita sua filha pequena na tal rua Azusa nº 2.  É uma longa visita, mas sempre na ausência da mãe, que trabalha fora.  As poucas horas que passa com o pai são um momentos que a menina aguarda com ansiedade e que lhe dão grande prazer.  O pai conversa com a filha sobre como ela cresceu, a ajuda nas tarefas domésticas, é extremamente carinhoso.  A história segue carregada de ternura.


A visita mais esperada do ano.
Ao longo da narrativa, quando ainda não tinha ligado os potinhos, me perguntei o que teria feito o pai abandonar a família, se ele e a mãe da menina se odeiam tanto que não podem estar juntos no mesmo espaço, mas não é nada disso, o pai fala com muito carinho da esposa.  O que teria acontecido?  Reencontro em Azusa nº 2 trabalha em cima de elementos da cultura tradicional e do folclore japonês. A visita só pode ser compreendida dentro do campo do sobrenatural e, bem, fica enfatizado, também, a inocência das crianças que, pelas suas características especiais, são capazes de ver, perceber e acreditar naquilo que os adultos não conseguem mais, nos sonhos mais simples e nos fenômenos que escapam ao nosso mundo natural.

É isso.   Shiki no Zenjitsu foi um presente que a Panini do Brasil nos deu.  Merecia até páginas coloridas, mas a encadernação, se não é luxuosa (*e, por isso mesmo, mais acessível*), é bonita, bem cuidada e com qualidade.  É uma leitura que pode interessar para aquele amigo, ou amiga, que não é fã de mangá, que rejeita quadrinhos japoneses por associá-los a imagem mais mainstream que muita gente acredita ser a única.  O volume pode interessar, também, para aquele conhecido que é fã de cinema de arte, afinal, a narrativa de Shiki no Zenjitsu se aproxima da de muitos filmes japoneses e europeus mais cult.  

Ilustração de agradecimento 4º Book log Award em 2013.
Importante, também, mas isso só se aplica ao fandom de mangá e a quem esteja disposto a largar seus pressupostos equivocados, que quadrinho feminino é muito mais que romance escolar, que mocinhas adolescentes esperando seu príncipe ou lutando por ele.  E não pensem que estou criticando esse tipo de história, mas ressaltando o quanto as visões sobre shoujo e josei mangá e o desconhecimento em relação ao que as mulheres produzem e consomem no Japão é grande, seja no traço, seja no conteúdo.  Será que a Panini vai investir em um filão mais adulto e baseado em volumes únicos ou mangás curtos?  Vamos esperar.

A mangá-ka Hozumi estreou em 2010 e, desde então, vem colecionando indicações e premiações.  Suas séries e mangás são sucesso de crítica e público.  Talvez sua obra seguinte, Sayonara Sorcier  (さよならソルシエ), sobre a relação dos irmãos Van Gogh, tenha sido o seu maior sucesso até o momento.  Atualmente, ela está publicando a série Boku no Giovanni  (僕のジョバンニ).  Todas as suas séries têm saído na revista Flowers.

2 pessoas comentaram:

Não sei se foi algo da minha cabeça mas essas histórias curtas me deram a impressão de fazerem parte do primeiro capitulo...

Gosto de ler suas resenhas de mangá. Sobre os corvos, eu sempre lembro de Edgar Alan Poe, não lembro se na história desse mangá teria alguma relação com o poema dele.

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