segunda-feira, 25 de setembro de 2017

O dia em que minha filha rejeitou um brinquedo e eu me senti perdendo uma guerra

Não me recordo de ter tido armas de fogo de brinquedo, nem meu irmão.  Minha mãe era contra, apesar de serem muito comuns à época.  Era contra para meninas e para meninos.  Minha mãe nos comprava bonecos, meu irmão tinha uma família da coleção Mundo Feliz (*falei dela aqui*), assim como eu tinha.  A diferença é que eu ganhei a casa cogumelo e ele parte do parque de diversões. Meu pai torcia o nariz, às vezes, mas minha mãe não se abalava com essas coisas. Lembro de crianças que iam brincar conosco e, eventualmente, quando diziam que meninos e meninas não brincavam juntos, terem que ouvir "Aqui, brincamos, sim, pode perguntar pra minha mãe, mas você pode brincar sozinho/a se quiser".  Crescemos as criaturas mais heteronormativas possíveis, tanto ele, quanto eu.

O tempo passou, o mundo mudou.  Existe uma histeria quanto aos papéis de gênero e à orientação sexual das pessoas.  A doutrinação tornou-se severa e, não, ela não é feita pelas pessoas que defendem que a coisa seja vista de forma mais fluída, mas pelo conjunto da sociedade.  A escola, que não é a única que educa.  Há as lojas de roupas e brinquedos.  Os desenhos e os filmes infantis.  E as empresas participam do movimento, claro, e ganham muito dinheiro no processo.  

Quinta-feira, esse walkie talkie tinha deixado Júlia furiosa.
E temos meninas de rosa e lilás, meninos com o resto do espectro de cores.  Para muita gente, esta construção recente tornou-se tão natural quanto respirar, comer, dormir.  Temos corredores de menina e menino nas lojas de brinquedo e as personagens femininas muitas vezes são excluídas dos brinquedos para eles, enquanto, se se trata de um grupo, elas aparecem sozinhas - normalmente são uma ou duas - no para elas.  Eu sei do que estou falando, minha Júlia adora Patrulha Canina. E temos gente bem intencionada considerando comportamentos banais como possíveis indicativos de um transtorno de identidade de gênero, ou mesmo de transsexualidade, porque, bem, um menino não gosta de futebol, de máquinas e videogames.

Já entrei meio que em conflito com minha mãe quando ela disse para Júlia que tal corredor na loja de brinquedos era "de menino".  Mamãe mudou.  A mãe da minha infância, não costumava dividir os brinquedos dessa maneira, ou eu não teria ganho uma espada e não teria carrinhos.  Aquilo doeu um pouquinho.  Acho que faz mais ou menos um ano do ocorrido.  Ontem, foi a vez de Júlia.  Estávamos no corredor dos Nerf e outras pistolinhas.  Havia uma d'água (XShot Nano Candide), a mais baratinha.  O pai perguntou se ela queria.  Ela recusou, disse que era "brinquedo de menino".

Esse aqui estava junto.
Procure as meninas?  Júlia ficou brava.
Ficamos perplexos por alguns segundos e fomos os dois tentar desconstruir o que está bem assentado na cabeça de nossa menina de quase 4 anos.  Ela é menina, ela tem que gostar de algumas coisas, os meninos de outras.  Armas são para meninos, meninas brincam com bonecas, ainda que ela prefira bichinhos e chegue reclamando das coleguinhas da creche. O pai quer culpar a escola, da mesma forma que o povo do Escola Sem Partido faria, eu reforço que as pessoas são educadas por vários meios, que a educação formal é parte e produto desse todo que compõe o social.

E eu, que já estava triste, me senti muito pior.  Uma criança rejeitar um brinquedo por um motivo como esse, me dói o coração. Uma criança tão jovem e já se assujeitando aos papéis de gênero.  Sei que não é tão assim, que ela - a Júlia - desliza para lá e para cá e reclama de não encontrar Sky junto com as outras personagens da Patrulha Canina nos brinquedos, mas o trabalho está feito.  Nós que estudamos gênero, não trabalhamos ideologicamente, quem faz isso é o mundo e, bem, se existe "ideologia de gênero" ela está funcionando e reforçando um mundo binário que é cada vez mais codificado por cores e por papéis sociais rígidos.

4 pessoas comentaram:

Padeço do mesmo mal... A irmã do meu namorado tem 5 anos e fica furiosa por não encontrar brinquedos em que todos os personagens da Patrulha Canina estejam representados.
Quanto à Júlia e as armas de brinquedo, eu sempre pensei nas profissões, e que se existia "policial feminina" era pq armas tbm poderiam ser usadas por garotas. Sobre a linha Nerf a triste notícia é que eles têm uma linha especial para garotas.

Eu sei. Meu marido tem vários, uma edição feminina, inclusive.

Falta complementar dizendo que mesmo assim comprei a pistola d'água e, no dia seguinte, ao ser apresentada às possibilidades lúdicas do novo/antigo brinquedo, Júlia está se divertindo muito com ela.

Esse tipo d situação do dia a dia quando acontece com alguém próximo deixa qualquer pessoa q acredite em um futuro com igualdade de gênero com um sentimento d impotência... Ainda não tenho filhos, mas se um dia tiver uma menina tenho muito medo do "tipo" de machismo que ainda vai existir na sociedade.

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