quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Comentando A Forma da Água (The Shape of Water, 2017)


Quinta-feira passada, assisti A Forma da Água (The Shape of Water), filme que é o grande indicado ao Oscar este ano, concorrendo em 13 categorias.  O que eu posso dizer é que fiquei muito impactada pela beleza do filme. Sim, não sei quantas vezes vou repetir os adjetivos ligados à beleza não somente em relação ao aspecto visual da película, mas, também, às mensagens que o filme me trouxe.  Sei de resenhas, inclusive em sites feministas, que desancaram o filme, mas o que eu vi em tela foi uma bela fábula centrada em uma mulher madura, com personagens bem estruturadas e que fala da aceitação do outro.  Aceitação, não tolerância.  É, também, um filme que fala e mostra o sexo com uma delicadeza que eu raramente vi.   E mais, eu pagaria para ver este filme de novo, porque, sim, ele me emocionou, tocou profundamente, me fez sair feliz do cinema como não acontecia há tempos.

A Forma da Água começa apresentando a protagonista, Elisa Esposito (Sally Hawkins), que trabalha como faxineira no turno da noite de um laboratório do governo norte-americano, em Baltimore.  Latina, órfã e muda, ela ocupa um lugar lá na base da sociedade, mas parece ser feliz.  Ela ama cinema, mora em um apartamento que fica em cima de uma decadente sala de projeção, e mantém uma rotina que inclui uma série de rituais, entre eles, assistir TV com o vizinho do andar de baixo, um artista de meia idade, desempregado e que vive de bicos, chamado Giles (Richard Jenkins).  Ele é o narrador do nosso filme. Sua melhor amiga e colega de trabalho, Zelda (Octavia Spencer), é sua intérprete e confidente.  

Elisa é uma sonhadora e o cinema a alimenta.
Tudo parecia ir muito bem para ela em seu mundo particular de rotinas e filmes, até que, durante a Crise dos Mísseis de Cuba (16-28 outubro de 1962), um espécime (Doug Jones) é levado para o laboratório.  Elisa e Zelda ficam responsáveis pela limpeza do local e se veem obrigadas a conviver com o sádico Coronel Richard Strickland (Michael Shannon) que capturou a criatura na América do Sul.  Surge entre Elisa e o ser aquático um elo, eles se comunicam, ele aprende a linguagem de sinais e a moça se desespera quando descobre que planejam vivissecar a criatura.  Com a ajuda de um dos cientistas da base, na verdade um espião soviético (Michael Stuhlbarg), e seus amigos, Elisa deseja salvar o ser aquático, libertá-lo, mas a tarefa não será muito fácil, inclusive porque a protagonista está perdidamente apaixonada por ele.

A Forma da Água, um filme de fantasia ou ficção cientifica, a escolha fica ao gosto do freguês, é, junto com Corra!, o estranho no ninho entre os indicados ao Oscar de Melhor Filme.  Pode ser que não ganhe, não vi alguns dos concorrentes, a maioria deles, aliás, e não vou me posicionar categoricamente em defesa da película.  Meu texto tem como objetivo discutir o filme e reafirmarei a cada parágrafo, muito provavelmente, como ele bonito e me comoveu, tocou, reforçou meu amor pelo cinema.  Atuações, fotografia, trilha sonora, que até Carmem Miranda tinha, tudo me pareceu perto da perfeição.  E o filme me ganhou, viesse o que viesse depois, já em uma das primeiras cenas, quando Elisa, a protagonista muda interpretada por Sally Hawkins sai dançando sapateado no corredor do seu prédio.  Quem nunca sentiu vontade de sair dançando por aí? Eu já.  E acho que houve pessoas que já acharam que eu não batia muito bem por causa disso.

Sapateando com Giles no sofá.
Para além da parte fofa, da homenagem ao cinema, o filme trata de várias questões séries e pesadas, uma delas é apresentar o sistema patriarcal vigente nos Estados Unidos do início dos anos 1960, que é violento e opressivo para com todos aqueles que não estão no topo da pirâmide, isto é, não se enquadram no ideal do WASP (White, anglo-saxon e protestant) e não é do sexo masculino.  O grande vilão do filme, o Coronel Strickland encarna tudo isso.  Ele é racista e condescendente com quem considera inferior, basta ver a forma como trata Zelda, sempre se referindo “aos da sua raça”, para demarcar as diferenças e hierarquias.  Ele se considera mais homem que o Dr. Hoffstetler, porque não é muito viril ser dedicar-se à ciência.  O cientista também será intimidado por outro desses homens no topo da pirâmide, o general (Nick Searcy) que comunga dos mesmos valores agressivos de Strickland.  Já a natureza existe para ser submetida e a criatura aquática não passa de uma besta a ser explorada e descartada.

Já a relação do vilão com as mulheres, a forma como as trata e olha para elas, é das mais perversas.  Ele tem uma esposa troféu, tão adequada a ser exibida quanto o seu novo Cadilac, e ele a cala na hora do sexo, porque está pensando na muda Elisa.  Para ele, a moça deveria aceitar o seu assédio, porque, bem, ela é uma qualquer, órfã, latina (*houve sites que a apontaram como branca, mas esqueceram este imenso detalhe*), e fazendo um trabalho absolutamente subalterno.  O vilão vai lembrar à Zelda e Elisa do quão baixo na sociedade elas estão.  E, por fim, ele é absolutamente sádico com a criatura.  Tanto os povos da floresta na América do Sul, e Strickland admite com orgulho ter-lhes roubado tanto o ser aquático, quanto o petróleo, e a criatura existem para servir aos seus superiores e, eventualmente, serem destruídos para atender os interesses imperialistas, ou da Guerra Fria, ou simplesmente por prazer.  Por que não?  

Pensem num cabra malvado.  Está aí.  Vilão terrível.
Giles, amigo de Elisa, ainda que seja homem, branco, tem dificuldades para sobreviver nessa sociedade competitiva e excludente.  Ele é velho, sua arte não atende mais aos padrões da sociedade de consumo do seu tempo.  Vive de bicos e de nostalgia.  Só que ele guarda um segredo ainda maior, sua homossexualidade.  O filme é contemporâneo à O Direito de Amar (A Single Man), que rendeu uma das minhas resenhas favoritas aqui no blog, e se ser homossexual hoje é perigoso, naquela época, com todo o ranço do Macarthismo, era uma temeridade.  E, problema maior, o gaydar de Giles não funciona lá muito bem e há uma cena em que outro homem, branco, dentro dos padrões, despeja tanto o seu racismo, quanto a sua aversão aos gays.  Giles é romântico, cinema e TV demais fizeram com que ele acreditasse que o sujeito estivesse flertando com ele. 

O fato é que A Forma da Água é um filme muito violento.  A censura – 16 anos – está mais do que adequada.  É violento por trazer cenas de tortura, por mostrar toda a crueldade de uma sociedade que não admite o diferente, que não se permite sequer ser tolerante.  Não entendeu a diferença?  Tolerância parte do pressuposto de que eu sou melhor – mais puro, mais digno, mais racional, whatever – do que você, como eu tenho poder para isso, eu admito que você tem o direito de existir, de ter sua fé, seus costumes, exercitar a sua orientação sexual, no entanto, a cada momento você será lembrado de que eu sou a norma, você, não é.  Os Estados Unidos em 1962 não eram tolerantes e o sorriso de Kennedy – que é citado, mas não aparece no filme – não incluía nem isso no pacote de reformas mais que necessárias que ele levou adiante.

Se Octavia Spencer está sempre no mesmo papel,
que ela o faça sempre de forma tão espetacular
como em A Forma da Água.
Falando já das mulheres, e estamos em um site feminista, uma das críticas fortes ao filme é que Octavia Spencer está fazendo o mesmo papel de sempre, ou um papel que é clichê para negros em filmes americanos, o negro mágico, que ajuda o protagonista branco, como uma espécie de guia.  Bem, se por um lado o tom de sua interpretação é o mesmo de The Help – e Strickland usa este termo típico do Sul racista para se referir à Zelda e Elisa – a protagonista e a personagem de Spencer estão em pé de igualdade.  Elisa, repito, não é branca, não há hierarquia entre as duas.  Zelda não é mais sábia ou mais capaz que Elisa até ser suplantada pela protagonista, que passa a andar sozinha.  Elas são mulheres que se ajudam, que tem um forte vínculo de amizade, o que faz com que Zelda se arrisque para ajudar a amiga, assim como Hoffstetler, o cientista e espião, o faz.  Detalhe, a trama de espionagem soviética, nem precisava estar no filme.  É o que está sobrando.  Hoffstetler poderia ajudar a criatura sem esta subtrama que, a meu ver, é o que está sobrando.

Sobre Zelda, a única coisa que eu lamento é que ela não tenha pego um cabo de vassoura e dado uma surra no inútil do marido.  É curioso que Zelda parece reproduzir dois estereótipos negros recorrentes em filmes, um é o do amigo-guia-escada do protagonista, outro é o da mulher negra dominadora que castra o marido (Sapphire).  Agora, olhando o lar de Zelda, o que vemos é uma mulher assujeitada a todos os papéis de gênero.  Ela trabalha fora e dentro de casa.  O marido é incapaz de tirar a bunda da cadeira para abrir a porta, apesar dela estar cozinhando.  Enfim, é um retrato daquelas pesquisas que apontam quão sobrecarregadas de tarefas domésticas são as mulheres casadas.  Imagina nos dias de hoje.

Elisa seduz a criatura com ovos cozidos e música.
E chegamos à Elisa.  Não sei, mas uma das coisas mais bonitas do filme é a forma como Sally Hawkins construiu a sua personagem, seu mundo particular, cheio de rotinas.  Ela gosta de cinema, ela gosta de observar as pessoas, esses curiosos seres humanos, ela, apesar de pobre, coleciona sapatos (*não perceberam?*).  Aliás, a cor dos seus sapatos reflete seu humor, suas experiências.  Ela é muda, não sabemos o motivo, afinal, ela não sabe quem são seus pais e tem umas cicatrizes bem feias no pescoço.  Seria ela – e o filme é tudo, menos realista – humana, ou outra coisa?  Atentem para a belíssima cena final do filme.

Há toda uma delicadeza e uma sensualidade em Elisa e é muito bom que ela seja interpretada por uma atriz madura.  E é muito bonita e bem construída a relação entre ela e a criatura.  Nesse sentido, Elisa não parece se importar com o que os outros pensam dela, não é dependente de ninguém, apesar de Zelda ser sua intérprete.  E a relação com a criatura não é somente platônica, é sexual, também.  O filme tem muito erotismo, cenas de nu frontal inclusive, mas tudo com tanta delicadeza, de forma tão poética, que o sexo entre a criatura e Elisa acaba ganhando tons inesperados.  São cenas muito, muito, muito bonitas.  Absurdas de uma certa forma, verdade, mas o filme opera sem problemas dentro do terreno do realismo fantástico tão presente nas produções literárias, nas telenovelas e nos filmes latino-americanos.  Pensem no belíssimo Como Água para Chocolate e vocês entenderão.  

A natureza precisa ser subjugada e explorada. 
É assim que o sistema opera.
O filme, claro, cumpre a Bechdel Rule, porque Zelda e Elisa conversam muito, inclusive sobre sexo e a experiência de Elisa com a criatura.  Há outras mulheres no filme com nomes, mas aparecem rapidamente – a secretária e a esposa do vilão, uma das faxineiras, que hostiliza Elisa – e não conversam entre si.  Como o ambiente do laboratório é muito masculino, as personagens femininas são minoria, só que, ao mesmo tempo, a protagonista é uma mulher, que contracena muito com outra mulher, o que equilibra o tempo de tela entre ambos os sexos.  Queria, inclusive, ter alguma estatística disso.  

De resto, se Hawkins ficar com a estatueta de melhor atriz, ela estará indo para ótimas mãos.  Engraçado é que logo depois de ver A Forma da Água, fui assistir Paddington 2, um filme infantil, com minha filhinha.  E quem estava lá?  Hawkins.  E terminou caindo a ficha, também, que ela é faz a protagonista de Persuasão, Ane Alliot, na adaptação de 2007 desse romance de Jane Austen.  Não é minha favorita, mas entrou na minha lista de coisa a rever e resenhar, claro.

O bom Dr. Hoffstetler sacrifica sua vida
para que a criatura seja salva. 
Indo para alguns pontos (*aparentemente*) problemáticos de A Forma da Água.  O diretor, Guilhermo Del Toro disse ter se inspirado em um filme de 1954, O Monstro da Lagoa Negra (Creature from the Black Lagoon).  Não lembro de ter assistido na infância, mas é um filme famoso.  Ele queria fazer um remake do filme sob o ponto de vista da criatura e desejava que a relação entre o “monstro” e a mocinha do filme funcionasse, isto é, que eles terminassem juntos.  O estúdio vetou e ele levou a idéia para A Forma da Água.  Ora, essas histórias de mocinha que se apaixona por um monstro, ou monstro aparente, existe aos montes.  Só que houve um curta metragem holandês, lançado em 2015, que tem semelhanças muito grandes com o plot central de A Forma da Água.

Em The Space Between Us (*assista aqui*), que tem somente 12 minutos e mostra uma Terra em um futuro próximo, poluída, e caminhando para a destruição, temos uma história muito parecida.  Cientistas e militares localizam e prendem um homem-sereia e querem dissecá-lo para compreender o seu sistema respiratório que lhe permite sobreviver dentro da água e na superfície de oxigênio rarefeito.  Uma faxineira de nome Juliette, descobre a existência da criatura, seu destino cruel e consegue libertá-la, atirando-se com ela no mar.  Há uma cena romântica final, que pode ser sonho, ou realidade, tal e qual em A Forma da Água, com Juliette respirando nas profundezas e olhando feliz para o merman.  Tudo muito rápido, tudo muito escuro, tudo muito direto.

Três homens de bem, você pode torturar,
estuprar, matar, mas não ouse blasfemar.
Enfim, há todo um grupo de contos de fada, o chamado tema do noivo-animal (*artigo aqui*), cujo mais famoso é A Bela e a Fera, que partem da premissa do humano – homem ou mulher – que se envolve com uma criatura não-humana.  Normalmente, este ser monstruoso se transforma em um belo exemplar da nossa espécie depois que uma maldição é quebrada, não é o caso nem de The Space Between Us e de A Forma da Água.  Ambos mantém a criatura tal e qual ela é até o fim a relação entre duas espécies diferentes.  No caso de A Forma da Água, o filme se posiciona pela defesa da diversidade, do diálogo, das possibilidades para além do que o mundinho patriarcal racista, excludente, machista, especista e homofóbico defendia como possível.  Em duas horas de filme, você pode fazer tudo isso e muito mais.

Eu, Valéria, acho muito difícil que as outras similaridades – pesquisa científica, vivissecar a criatura para investigar seu sistema respiratório, a mocinha faxineira que salva o ser aquático – sejam coincidência.  Só que ao que parece, são.  Por tudo o que achei na internet, o roteiro de Del Toro começou a ser escrito antes, fora isso, a complexidade do longa-metragem, os temas que aborda, vão muito além do “pegaram a ideia do curta e jogaram nos anos 1960”.  Curiosamente, ninguém levanta a ideia oposta, a de que o curta experimental possa ter se inspirado em informações sobre a produção norte-americana.  Por outro lado, eu realmente espero que não entreguem melhor roteiro original para A Forma da Água.  E não se fala mais nisso.  A Forma da Água é um grande filme e os holandeses e o Del Toro parecem ter se entendido a respeito dessa coincidência um tanto exagerada.

O apartamento de Elisa.
Já caminhando para o final, A Forma da Água recebeu 13 indicações (filme, direção, atriz, atriz-coadjuvante, ator-coadjuvante, roteiro original, montagem, trilha sonora, design de produção, figurino, fotografia, mixagem de som e edição de som) e será muita injustiça se ficar com as mãos vazias ou com pouca retribuição.  Agora, mais do que ficar catando defeitos em A forma da Água, prefiro repetir – porque já escrevi antes – que mal indicado foi Dunkirk e que este filme de péssimo roteiro, entre outros defeitos, está ocupando lugar de algum filme muito melhor, assim como seu diretor.  Minha vontade é gritar “Marmelada”, não que eu leve o Oscar muito à sério para ficar achando que os melhores sempre vencem, ou são indicados.  De qualquer forma, será inédito (*desconsiderando Sr. Dos Anéis, que funcionou como retribuição pelo conjunto da obra*) ver um filme de fantasia receber a estatueta principal.  E será lindo, se acontecer.

Uma amiga querida disse que as pessoas deveriam parar de ficar falando mal do filme e tinham que prestar atenção na bunda linda do Doug Jones, o ser aquático.  Eu não consegui, mas acho que a caracterização da criatura ficou ótima.  Surpresa foi descobrir que o órgão sexual do ser aquático – e que é descrito por Elisa para a amiga Zelda em uma cena engraçadíssima – está sendo vendido por aí.  Sério.  Algo que me ficou por dias é que sempre que eu lembrava do vilão do filme, que está muito bem, eu lembrava de certo pré-candidato à presidência brasileiro de extrema-direita.  No filme, ele tortura o ser aquático e este lhe arranca dois dedos.  Elisa os encontra e eles são reimplantados, mas apodrecem, porque, bem, a criatura tem poderes de cura, regeneração, mas, também, pode fazer umas coisinhas bem cruéis e faz.  

A criatura fere Giles e, depois, se desculpa e o cura.
De resto, não sei quem acompanhou discussões absurdas sobre a falta de higiene de certos machos hetero, nosso país, por exemplo, tem altas taxas de câncer no pênis, porque os sujeitos não se lavam direito e nenhuma campanha séria é feita a respeito.  Enfim, o vilão do filme diz que um homem de verdade só lava as mãos uma vez ao ir ao banheiro, antes ou depois.  Ele prefere lavar antes, assim, não suja o pênis, imagino, daí, vocês já tiram o nível da criatura... 

Concluindo, o filme A Forma da Água é sensível e bonito, homenageia o cinema de uma forma muito poética, oferece uma trilha sonora deliciosa, e consegue passar mensagens firmes e precisas sobre temas muito relevantes para que uma sociedade possa ser mais justa, mais humana e respeitosa com as diferenças.  Se tiver oportunidade, dê uma chance ao filme.  Talvez, não seja o seu tipo de filme, mas duvido muito que você será capaz de não perceber vários dos pontos positivos da película começando com a cena de sapateado e terminando com o final inesperado e carregado de delicadeza. 

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