domingo, 18 de março de 2018

Comentando "Eu, Tonya" (I, Tonya, 2017)


Sexta-feira, saí de uma consulta e fui assistir "Eu, Tonya" (I, Tonya), filme sobre a vida da patinadora norte-americana Tonya Harding da infância até que foi banida do esporte.  Estava na dúvida entre O Insulto, primeiro filme libanês indicado ao Oscar, e o filme sobre a patinadora.  Os dois começavam mais ou menos no mesmo horário.  Enfim, acabei dando preferência para a produção que falava de uma mulher, ou mais de uma, se pararmos para pensar que a produção foi indicada para o Oscar de Melhor Atriz (Margot Robbie) e de Atriz Coadjuvante (Allison Janney), levando este último com justiça.  

O que me fez ver "Eu, Tonya" foi a resenha que a Lola fez para o seu blog, tinham tentado me convencer antes, mas em vão, ela puxou as cordinhas certas, por assim dizer.  O filme é muito bom, tem ótimas interpretações, mas, como eu suspeitava, apesar a ironia e do humor negro que o permeia, ele tenta nos fazer ter simpatia pela protagonista.  Suas virtudes com patinadora (*ela era uma das melhores MESMO*) são ressaltadas, sua vida foi muito dura, ela pertence aquela parcela da população americana que costumam chamar de “white trash” (*lixo branco*) e os traços complicados de seu caráter são apresentados como se fossem fundamentais para que ela tenha se tornado o que se tornou, uma das melhores patinadoras artísticas de todos os tempos.  Não é um filme maniqueísta, não é isso que eu estou falando, mas ele, na sua dubiedade, tem lado, o de Tonya.

Mamãezinha querida.  Ela nega alguns dos incidentes.
Vou resumir o filme rapidamente, espero não produzir uma resenha muito longa.  "Eu, Tonya" é um mockumentary, isto é, um falso documentário em tom de humor (*negro*) e ironia que mistura entrevistas com os atores caracterizados e partes dos acontecimentos que eles e elas estão narrando.  O filme brinca com o conceito de verdade o tempo inteiro.  Começamos com Tonya aos três anos de idade sendo levada por sua mãe, LaVorna, para o ringue de patinação e apresentada para aquela que seria sua treinadora por quase toda a carreira, Diane Rawlinson (Julianne Nicholson).  

Apesar da recusa inicial, Harding era muito jovem, ela acaba ficando e vence seu primeiro campeonato aos quatro anos, apesar de competir com meninas com o dobro de sua idade.  A partir daí, temos a rotina de abusos sofridos por Tonya, pois sua mãe, uma garçonete que investe tudo o que ganha na filha, parece acreditar que torturando e humilhando a menina, conseguirá fazer dela uma campeã.  Ela precisa ser dura, competitiva, encarar cada uma das outras patinadoras como inimigas.  É isso, ou será punida.  O adestramento funciona.

A menina Mckenna Grace faz
 um grande trabalho como a jovem Tonya.
O pai de Tonya, o único na família que era gentil com ela, vai embora e ela fica à mercê de sua mãe.  É obrigada a abandonar a escola para se dedicar exclusivamente ao esporte, mas, apesar de seu talento, é vista como caipira e grosseira (*redneck*), cafona, pouco refinada para um esporte no qual as meninas precisam ser princesas.  Aos 15 anos, ela conhece aquele que será seu primeiro marido, Jeff Gillooly (Sebastian Stan), como não suporta a rotina de abusos da mãe, termina indo morar com o sujeito, ele, também, um abusador.  Mas o que Tonya conhecia além da violência? Quem ama, pune.  E a coisa vira uma rotina.

A carreira de Tonya avança, mas seu talento não é reconhecido pelos juízes, ou assim o filme quer que acreditemos.  Eles preferem, na opinião da patinadora, atletas menos competentes, simplesmente, porque elas reproduzem os papéis de gênero desejados.  Só que Tonya é a única patinadora norte-americana a conseguir fazer um movimento dificílimo, o triple Axel.  Insatisfeita com sua treinadora, que seria castradora demais, Tonya abandona Rawulinson, mas, ainda assim, não consegue o pódio.  

Not ladylike enough.
Um quarto lugar nas Olimpíadas de Inverno de 1992, quase coloca fim em sua carreira, mas é procurada por sua antiga treinadora que lhe avisa que haveria uma nova Olimpíada em 1994, algo excepcional, e Tonya teria tempo para tentar novamente em  Lillehammer, na Noruega.  A patinadora se esforça, volta ao topo, consegue a vaga olímpica, mas um atentado promovido por seu marido e um guarda-costas contra sua principal competidora, Nancy Kerrigan (Caitlin Carver) destrói sua carreira definitivamente.

Que resumo longo este.  Ainda bem que o que comentei é História, basicamente, qualquer pesquisa conduzirá você ao atentado contra Nancy Kerrigan, que era uma das melhores patinadoras do mundo.  Na época do atentado, eu tinha dezessete anos, não havia internet, ou redes sociais, nos alimentávamos das notícias da TV e dos jornais de forma passiva, por assim dizer.  E como patinação não é esporte importante, aqui, no Brasil, o que interessava era o escândalo mesmo.  A minha imagem de Tonya Harding foi moldada aí.  Uma patinadora competente, que tinha sua vaga olímpica, mas que participou de uma conspiração contra a outra principal estrela da patinação norte-americana.  O filme limpa Harding de qualquer participação no planejamento da ação, uma marretada no joelho de Kerrigan.  

Olha, não sei como alguém pode ser tão idiota...
quer dizer, deve estar cheio de gente assim por aí.
Só que, como pontuei, o filme é dúbio.  O marido de Tonya diz a sua verdade.  A patinadora, a sua.  A mãe-monstro a sua versão.  A treinadora também dá sua opinião.  Só não ouvimos Nancy Kerrigan.  E eu tropecei em artigos que apontavam este problema no filme.  Ao que parece, e disso não sabia, Kerrigan sofreu um linchamento moral.  Ela foi questionada de todas as formas, foi parcialmente culpada por se deixar atacar e atrair uma atenção negativa para um esporte de elite.  E eu fiquei de cara com as informações sobre a crueldade e a atitude viciosa em relação à Kerrigan, mas esta época em particular era o auge do backlash e as mulheres eram atacadas por qualquer coisa na mídia.  E é de Tonya, no filme, uma frase mais ou menos assim, “A América precisa de alguém para amar e para odiar”.  A catarse coletiva, por assim dizer, envolvia – talvez envolva ainda – ícones que devem ser exaltados, ou destruídos.

O filme mostra muito bem a forma discriminatória como os juízes, que tem muito poder, avaliam as atletas.  Já tinha me questionado sobre isso antes pensando mais em países.  Uma brasileira precisará ser muito boa para ser notada em um esporte como ginástica artística, por exemplo, os erros de uma russa, ucraniana, americana será menos fatal, salvo nos embates entre elas mesmas.  Antes de ver o filme, na época das Olimpíadas de Inverno, tinha lido sobre a patinadora negra francesa Surya Bonaly.  Ela era muscular, explosiva, gostava de fazer acrobacias.  Ela foi o único patinador - homem ou mulher - a fazer um backflip e pousar em um pé só em uma olimpíada.  A manobra foi proibida.  Bonaly acreditava que era discriminada por não parecer uma princesinha, mas não acreditava (*assisti uma entrevista dela*) ter sofrido racismo.  Eu não apostaria nisso...

Kerrigan merecia mais atenção. 
Mesmo vítima, ela foi perseguida pela imprensa.
Em "Eu, Tonya", a protagonista é prejudicada por ser uma tomboy, por ter origens humildes, por vir de uma família desestruturada, por fazer suas roupas em casa (*primeiro a mãe, depois a própria patinadora*), já adulta, por ser divorciada.  Esta não é a imagem que os EUA querem mostrar para o mundo, um dos juízes lhe diz.   A treinadora pede que LaVorna, a mãe, compre um casaco de pele para a menina, porque uma patinadora precisa ter uma boa apresentação.  A mãe fica indignada, Tonya precisava saber patinar.  A treinadora pontua que isso não era tudo... Não vou contar como a história do casaco termina, mas o fator classe social parece pesar muito.  Só que Nancy Kerrigan, descrita como princesa no filme, era de origem pobre, também, só que se encaixava melhor do que Tonya, mas também ela foi humilhada na imprensa por ter origem nas classes trabalhadoras.  Só que ela parecia uma “princesa do gelo” saída de uma caixinha de música, Tonya, não.

Quando Tonya, mais tarde, volta para o esporte pensando nas Olimpíadas de 1994, ela aceita ser moldada pela treinadora.  Ela se submete a uma rotina que tenta transformar sua imagem: nada de heavy metal, esmaltes de cores berrantes, é preciso emagrecer um pouco (*não se trata somente de voltar à forma, mas de afinar a silhueta*), fazer balé.  Lembrei de Yuri!!! On ICE (ユーリ!!! on ICE) aqui.  Só que Tonya não era uma princesa, seu treinamento físico – e nesse momento a treinadora vira para a audiência e conversa conosco – era duríssimo, ao estilo Ace Wo Nerae (エースをねらえ!). Isso era mais ao estilo Tonya do que o polimento ao qual ela foi submetida.  Só que ainda estava valendo a frase que praticamente abre o filme e é da treinadora "Assim como as pessoas ou amam a América ou não são grandes fãs. Tonya era totalmente americana ". Daí, ser tão fácil amá-la, ou odiá-la.

Tonya realmente não sabia?  Para a justiça,
ela não ajudou a planejar o atentado, mas não o denunciou.
O fato é que o filme é bom para se discutir várias coisas, desde o poder da imprensa até os maus tratos contra crianças. Todos no filme sabiam da crueldade de LaVorna, de como ela espancava e humilhava Tonya, que ela a tirou da escola.  Só que ela era a mãe, a única responsável pela criança, já que o pai foi embora, deixou a esposa, direito dele, mas, também, abandonou a filha.  Ninguém denuncia LaVorna, parece que uma mãe, ou pai, tem todo o direito de fazer o que quiser de sua criança, e a mulher parece realmente acreditar que seu tratamento sádico produziria a melhor patinadora da História, só que Tonya não era forte o suficiente e a acabou fracassando.  É egoísmo, interesse, mas também era um amor doentio, marcado pelo grande sacrifício, e eu bem sei que o caso Tonya está longe de ser o único.

Uma criança que é agredida sempre por pessoas que deveriam amá-la e protege-la não crescerá acreditando que amar é agredir?   A relação abusiva entre Tonya e seu marido é construída dessa forma.  Só que a patinadora aprendeu a ser violenta, também.  Ela apanha, aprendeu que quem ama pune, mas reage, porque aprendeu, também, que se não fosse agressiva não conseguiria se tornar a melhor do mundo.  Mas é uma sociedade patriarcal, de hierarquias.  A mãe domina a filha, que aprende que isso é amor.  A esposa, outrora a filha constrangida, acredita que o marido bate nela por amá-la.  Ao mesmo tempo, Tonya recorre à desculpa “Não foi minha culpa!”.  Assim, talvez, não apanhasse, não fosse punida.

Um casaco de pele não torna você uma dama.
Uma cena chave do filme e que ajuda a entender os mecanismos de violência contra as mulheres é quando Tonya se separa do marido (*mais uma vez*) e ele vem armado até sua casa.  Pouco importa as medidas protetivas, ele atira nela enquanto ela tenta fugir.  O tiro pega de raspão e ela fica sangrando.  Ele a leva para o hospital, mas a ameaça o tempo inteiro.  No caminho, eles são parados pela polícia.  Ela está sangrando, há duas armas no carro, além de álcool e, ainda assim, o policial “se deixa enrolar” pelo marido de Tonya e eles seguem.  Tonya disse ter perdido a fé na polícia ali.  A classe dos homens se protege.

De qualquer forma, Tonya – que conta a sua verdade, repito – não é flor que se cheire. De qualquer forma, a maior punição de todas foi a dela.  O incidente com Kerrigan, que a justiça apontou que foi planejada pelo guarda-costas, Shawn Eckhardt (Paul Walter Hauser), e pelo marido da patinadora, rendeu para a patinadora o banimento do esporte.  Três anos de prisão condicional, multa e a perda de sua carreira.  Se a cena do tribunal corresponde ao que foi dito realmente, Tonya pediu para ser presa e que a deixassem continuar patinando.  Ela perdeu tudo, por assim dizer.

Que dupla de atrizes!  Espero que Margot Robbie
emplaque outro grande papel.
Em suas entrevistas e autobiografia, Harding afirma que foi ameaçada de morte pelo marido, que ela não sabia.  Podemos acreditar nela?  Difícil, como pontuei, Tonya não era uma pessoa boazinha, mentia quando achava necessário, culpava os outros.  Quem sabe o que realmente é verdade, ou mentira?  Fato é que ela reconstruiu a sua vida.  Agora, não acho válido que tentem transformá-la em um ícone feminista, ou em uma simples vítima do sistema.  Tonya Harding, no filme, é mostrada como alguém que reage e agride, ainda que esteja absolutamente assujeitada aos violentos mecanismos do patriarcado.  Ela não mostra a mínima solidariedade ou respeito para com outras mulheres.  Falando nisso, o filme cumpre a Bechdel Rule com louvor.

Outro ponto positivo do filme são as atuações.  As duas atrizes principais foram indicadas, uma levou o Oscar, mas todas as atuações são convincentes.  E fique para o início dos créditos, são mostrados os rostos das pessoas reais por trás do filme.  Allison Janney virou LaVorna e Shawn Eckhardt, que teve a ideia do atentado contra Kerrigan, realmente acreditava que era um superagente... Difícil acreditar que um cara assim exista.  Margot Robbie aprendeu a patinar para o filme e, pelo que disse a Lola, tiveram que usar de truques de efeitos especiais para reproduzir o triple axel, porque não conseguiram uma patinadora que conseguisse fazê-lo par ao filme.  Agora, há uma cena em que ficou evidente que era uma dublê, assim, tão evidente que me lembrou a dublê musculosa que substituía a Sarah Michelle Gellar em Buffy.  De resto, valeu.  Fora esse detalhe, as  cenas de patinação ficaram muito boas mesmo.


Tonya mais velha dando o seu depoimento.
Já terminando, "Eu, Tonya" é um filme muito interessante, crítico, comovente em alguns momentos, engraçado e que vale cada centavo do ingresso.  Foi o primeiro mockumentary que eu assisti, então não posso comparar, mas achei a idéia de misturar (suposta) realidade e ficção com muito humor.  É possível rir, mesmo com o canto da boca, até de cenas muito tensas.  É quase mágico isso, sabe?  Porque o filme é violento, cheio de gente problemática, cruel, enfim... O figurino, a trilha sonora, tudo funciona muito bem.  Todo aquele aspecto cafona dos anos 1980 e início dos anos 1990 foi bem representado em tela.  Se fosse transformado em mangá, teria que ser por uma Kyoko Okazaki ou uma Moyoco Anno.  É isso, ficou maior do que eu esperava.


6 pessoas comentaram:

Quando eu tinha +ou- 11 anos assisti essa Olimpíada de AlbertVille e foi a partir daí que comecei a me interessar por patinação artística, achava lindo. Acho foi transmitida pela extinta rede Manchete. E não lembro o ano, mas lembro bem desse escândalo envolvendo as duas patinadoras e lembro da Tonya como a ''vilãzinha''! Mas era criança e não entendia muito sobre isso. Só que nunca esqueci essa história pq virei fã desse esporte. E amei saber que fizeram um filme sobre esse caso e com a Margot Robbie, atriz que eu amo!

Foi a Manchete quem transmitiu, sim. Foi a primeira vez que assisti uma Olimpíada de Inverno e foi lindo.

Muito boa a resenha, querida Valéria! Fiquei curiosa com algumas coisas: primeiro, por que o backflip foi proibido? Por ser muito perigoso? (tudo nesse esporte parece muito perigoso!).
E em qual cena do filme fica evidente ser uma dublê? Eu vi o filme duas vezes e não reparei!
Ah, vc não viu a série The Office? Então, "mockumentaries" estão muito na moda... Eu gosto!
Ontem vi MOLLY BLOOM e gostei bastante. O começo me lembrou I TONYA. E tem uma hora que a personagem pergunta: que atleta olímpica não tem um pai super exigente e ditador? Dureza, né?

Lola, bem no final do filme, a Tonya dá um giro e fica girando por muito tempo. Ali, ela ficou bem diferente. Era uma dublê. Mas eu não tenho como rever agora, só se baixasse o filme.

O backflip foi proibido por ser perigoso demais, mas concordo, tudo me parece perigoso, também. E lembro da reclamação da patinadora francesa, que lhe diziam que patinação não era um esporte acrobático, enfim...

Nunca vi The Office, não. Só cenas soltas.

Este comentário foi removido pelo autor.

Outra coisa interessante para mim é que a história dela e o filme trata desse assunto de mãe abusiva, apesar do contexto lá dos EUA ser diferente do Brasil na maioria das vezes.

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