quinta-feira, 7 de junho de 2018

Comentando Através do Muro (Laavor et hakir, 2016) ou Imagine se Bridget Jones fosse uma Judia Ultra-Ortodoxa



Faz quase um mês que assisti Através do Muro (לעבור את הקיר/Laavor et hakir), mais um filme da diretora ultra-ortodoxa Rama Burshtein.  Diferente de Preenchendo o Vazio, que eu resenhei em abril, desta vez trata-se de uma comédia e a protagonista, outra moça ultra-ortodoxa, está inserida em uma sociedade israelense moderna na qual nem todos compartilham de suas crenças e convicções.  De certa maneira, a protagonista, Michal (Noa Koler) lembra um pouco Bridget Jones, mas o humor do filme israelense é mais contido (*ou eu não entendo bem*) e, claro, ninguém toca em ninguém.

Em linhas gerais, a história do filme é a seguinte, Michal é uma mulher religiosa de mais de trinta anos.  Ela é independente.  Ela tem um emprego e gosta dele, no entanto, ela não tem o mais importante, um marido.  Ela recorre a uma casamenteira e consegue um noivo, Gidi (Erez Drigues), mas o rapaz diz que não ama.  Como Michal não aceita o casamento por conveniência, ele cancela o enlace e isso tem um estranho efeito sobre a protagonista.  Ela decide que vai se casar de qualquer jeito.  Aluga um salão, marca a data, manda fazer um vestido, envia convites.  Ela acredita que Deus irá lhe arranjar um noivo, porque um casamento é algo pequeno demais para uma divindade tão poderosa.  Sim, é isso mesmo.

Michal tem um trabalho e ama o que faz.
Através do Muro, que também é chamado em inglês de The Wedding Plan, um título muito apropriado, é um filme curioso.  Michal não nasceu em uma família ultra-ortodoxa, ela é como a diretora que se converteu a uma prática mais estrita do judaísmo.  Ao contrário de Shira, a protagonista de Preenchendo o Vazio, que nasceu em uma comunidade haredin, Michal escolheu entrar.  Aliás, há uma cena engraçadíssima quando o rabino-chefe tenta demover a moça do casamento sem noivo, afinal, trata-se de uma aposta com Deus, algo um tanto herético, a mãe de Michal, de novo a atriz Irit Sheleg,  diz que sempre achou que a filha problema fosse a outra, Noam (Dafi Shoshana Alpern), e que o único defeito da protagonista seria ser muito religiosa.  A cara do rabino é impagável.

A mãe de Michal não é ultra-religiosa e acredito que nem ortodoxa do tipo mais estrito, afinal, ela aparece de calças compridas em uma cena.  Já a irmã de Michal parece que parou nos anos 1990, seu figurino parece congelado no tempo, e é uma mulher um tanto disfuncional.  Ela ama loucamente o marido e se recusa a aceitar que o casamento acabou.  Faz barraco no meio da rua e é Michal quem tem que vir resolver o problema.  Já Michal divide um apartamento com duas amigas religiosas, uma médica e outra que parece trabalhar com a protagonista.  E o que Michal faz?  Ela tem um zoológico de pequenos animais exóticos e participa de festas e eventos.  Em uma dada cena, uma mulher a acusa de não conseguir marido por causa de seu estranho trabalho... Que homem se interessaria por uma mulher que lida com cobras e aranhas?

A estranha casamenteira.
O fato é que Michal não vê sentido em sua vida sem um marido.  Nesse aspecto, ela e a irmã não são diferentes.  Quando ela consulta a primeira casamenteira (Odelia Moreh-Matalon), bem no início do filme, a mulher, que é adepta de umas estranhas simpatias, a faz confessar o motivo pelo qual deseja se casar.  Michal resiste, mas acaba liberando tudo que está dentro dela.  Ela não quer amor somente, isso é muito pouco, ela quer algo mais, que lhe dê significado social.  Uma mulher sem marido não é nada dentro do círculo religioso.  E não se trata de posses, isso não é problema para ela.  É afeto, companheirismo e visibilidade. Ah, sim!  E ela quer um homem que cante para ela.  Eu que gosto que meu marido cante para mim, a entendo bem... 

Graças à casamenteira, e ela contrata duas ao mesmo tempo, temos uma sucessão de pretendentes e uma das profissionais chega a  questionar Michal sobre o fato dela escolher demais...  E a seleção é curiosa. O primeiro é  um maníaco religioso (Udi Persi)  que não quer olhar no rosto dela a não ser que se casem.  Michal está desesperada, mas não é louca de aceitar esse aí.  Temos o engenheiro convertido (Oded Leopold), como ela, que deseja levá-la para um lugar mais privado.  Ele toma um passa fora e, mais tarde no filme, decide tentar a sorte de novo.  E há o psicólogo surdo mudo (Jonathan Rozen) que precisa de um intérprete.  O cara parece legal, Michal termina confessando seu preconceito (*ela não é perfeita*), porque um ano antes tinha recusado um encontro com ele simplesmente por ele ser como é, e as coisas não acabam bem.  O intérprete fica perdido sem querer traduzir o que um está dizendo para o outro...  O japonês do trailer não é pretendente de Michal, mas de sua amiga Feggie (Ronny Merhavi).

Yoss vai ao apartamento de Michal sem ser convidado. 
É o primeiro homem a entrar lá.  Kuragehime feelings.
Faltando uns dez dias para o casamento sem noivo, Michal decide partir em peregrinação religiosa  à Ucrânia para o túmulo do fundador da seita ultra-ortodoxa a qual pertence, o  Rebbe Nachman de Breslov.  Acredito que o "Através do Muro" se refira à cena em que ela conversa com um homem que está do outro lado, no compartimento dos homens.  O homem é Yoss (Oz Zehavi), um cantor secular e não sei o que ele faz em um lugar como aquele.  O fato é que o rapaz se interessa por ela, chega a procurá-la em seu apartamento, mas há uma incompatibilidade entre o mundo do rapaz, que tem uma legião de fãs adolescentes, e a vida que Michal escolheu para si, apesar dele cantar muito bem.

Estou usando a palavra "escolheu", porque Michal é uma mulher adulta que optou por um estilo de vida religioso e acredita nele.  A gente pode ver mil problemas em suas práticas, mas ela não é uma mulher constrangida pelo sistema, pelo patriarcado, o que seja.  Ela fez uma escolha que pode não ser a minha, ou a sua, mas foi uma escolha.  E ela não negocia.  Yoss e o engenheiro tentam fazê-la transgredir do que acredita ser o certo, mas nem o seu desespero para arrumar um marido podem suplantar as suas crenças, ou sua relação com a divindade.  Esse aspecto do filme é importante.  Michal não está assujeitada de todo ao dispositivo amoroso, ou ao dispositivo da sexualidade, ela tem uma autonomia rara de se ver em protagonistas de comédias românticas, apesar de ser meio doida e língua solta.

Posso dizer que desde o início achei o Shimi
muito interessante?  E como ele canta bem... 
E temos Shimi (Amos Tamam), o filho da casamenteira e dono do salão de festas onde acontecerá o casamento sem noivo.  Como não poderia deixar de ser, ele é um homem casado, mas Michal estranha o fato dele dormir no salão.  Ele tenta despistar, mente que dorme às vezes no salão, porque trabalha até tarde e pode incomodar a esposa. Só que o fato é que ele está se separando da esposa. Como não vemos a mulher de Shimi, temos só a palavra dele.  Resumindo, ela não é religiosa o suficiente.  Curiosamente, esta é uma das razões apontadas para o aumento no número de divórcios entre os ultra-ortodoxos em Israel.  Um detalhe importante é que dentro do modelo religioso de casamento judaico, o marido precisa conceder o divórcio, ou a esposa fica impedida de contrair novas núpcias dentro da comunidade religiosa.  Há homens que chegam a chantagear as mulheres usando desse poder.  Logo, Shimi pode não ser um cara tão legal assim... 

Só que olhando a situação dele, imagino a vergonha que o sujeito estava sentindo, o seu sofrimento, afinal, ele está dentro de um círculo religioso, e seu casamento ruindo.  Há ainda um agravante: a mãe do cara é uma casamenteira.  Ela deve ter arranjado o casamento do filho e, ainda assim, deu errado.  Como pode?  Enfim, Yoss é bonito, mas Shimi é o homem mais interessante do filme para mim. O ator, aliás, fica muito bem com barba e sem ela. Procurem as fotos.  E ele canta!  Desde a primeira cena em que ele aparece cantando, eu já imaginei o desfecho.  A questão sempre é como chegamos até lá.  Fora, repito, que não há contato físico e a protagonista, apesar da curiosidade sobre a vida do sujeito, nem desconfia que ele tenha sentimentos por ela, mas ele tem, está no olhar do cara, e a forma como ele mostra para ela no final que a notou desde o início o torna irrecusável, por assim dizer.  Agora, é difícil compreender como se faz um casamento sem papelada pronta, mesmo sabendo que em Israel não existe casamento civil, só religioso.  O cara simplesmente se declara e vai falar com o rabino que, obviamente, era um dos convidados.

Shimi é o homem com quem Michal
mais conversa no filme, afinal, a festa de
casamento acontecerá no estabelecimento dele.
Não preciso dizer que o filme cumpre a Bechdel Rule e é até de certa forma feminista, porque algumas atitudes de Michal, ainda que norteadas pelo sentimento religioso, o são.  A forma como ela enfrenta os homens que tentam demovê-la, seduzi-la, ou mesmo convencê-la de que está sendo herege são pontos importantes do filme.  Fora isso, há grande sororidade.  A amiga médica de Michal comete uma grande traição e, ainda assim, ela e a protagonista terminam reatando os seus laços.  Amizade é mais importante que homem, foi assim que eu entendi a coisa.

O apoio da irmã, das amigas, da mãe, mesmo sem entender o motivo da aposta com Deus, mesmo sem concordarem com Michal, mostra uma solidariedade entre as mulheres que raramente se vê.  Se desse errado, estariam todas lá para ampará-la.  Se desse certo, estariam lá para festejar.  O único ponto do filme que me pareceu nebuloso é o da amiga de Michal que mora em uma casa de repouso.  Ela parece tetraplégica, não há maiores detalhes sobre ela, mas sabemos que é casada, porque usa a cabeça coberta.  Ela aconselha Michal a desistir de procurar um noivo.  É depois do encontro com a moça que Michal faz a aposta com Deus.  Imagino que a amiga tenha sido abandonada pelo marido.  Será?  

A costureira é uma judia ultra-ortodoxa negra.
Acredito que a não explicação de quem era a mulher é o único defeito do filme.  Quem sabe, ainda descubro detalhes.  De qualquer forma, Através do Muro é curioso por um outro motivo, mostra a diversidade da população judaica em Israel.  A costureira, por exemplo, é negra.  Entre as mocinhas fãs de Yoss –  que é um cantor na vida real –  há moças que não são brancas.  Enquanto isso, a principal novela da Globo mostra uma Bahia branca... 

Concluindo, Através do Muro é um filme bem legal.  Não se trata da defesa de um estilo de vida religioso, mas segundo matéria que li, é um dos melhores frutos do cinema ultra-ortodoxo, isto é, feito por gente de dentro d a comunidade e, não, por quem lança um olhar de fora sobre os religiosos e seus costumes.  Trata-se, também, de um filme sobre mulheres, seus desejos, necessidades, e como tentam encontrar a felicidade. A perspectiva feminina  – vejam que não escrevi feminista – faz toda a diferença.  Para Michal, não haveria felicidade fora do casamento, mas não é qualquer casamento que serve, nem qualquer noivo.  E, bem, acho que ela acabou recebendo o seu milagre no final e e conseguindo um homem com uma belíssima voz para cantar para ela. 

6 pessoas comentaram:

Comecei a ler sua resenha e já corri para buscar o filme. Acabei de ver e adorei! Adorei ver a força da Michali. Ela não é mais uma mocinha deslumbrada, mas alguém que se conhece e coloca seus objetivos em primeiro lugar, mesmo quando ninguém entende.

Obrigada pela resenha. Assisti ao filme e como tem variedade de mulheres, religiosas ou não, não percebi que as casadas usam o cabelo coberto e fiquei em dúvida no final. Adorei o filme.

No final não fica claro que ela casa ou era alucinação, já que estava em jejum. Obrigada por esclarecer.

Ah, para mim, não era alucinação, não. O filme estava todo encadeado para resultar nesse casamento ideal com o dono do salão. 💗

Vi o final do filme e me deu curiosidade de vê-lo por inteiro, então vim procurar sinopses e críticas...
Impossível não comparar com filmes norte americanos, mas o que mais me chamou a atenção é que na primeira cena que prestei atenção (quando a protagonista vai ao show de Yoss), pensei que se tratava de filme brasileiro pela diversidade de cores da pessoas e pelo fato dos "brancos" não terem a pele tão alva como as representada nas novelas brasileiras, aonde parece que estamos em outro país. Assisti a La Casa de Papel e percebo como uma serie espanhola, ou seja européia, tem protagonistas com mais melanina que as produções brasileiras... Até quem é considerado branco aqui no Brasil se identifica mais com essas produções internacionais que as novelas brasileiras.
A força da protagonista é mesmo incrível e dá vontade de ter uma melhor amiga como aquela!

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