terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Conversa Especial: Yamato Waki e Yamagishi Ryouko


Em 14 de dezembro de 2016, fiz um post comentando o relançamento do primeiro e segundo volume de Haikara-san ga Tooru (はいからさんが通る) dentro das comemorações do aniversário de 50 anos de carreira de sua autora, Waki Yamato e o anúncio das animações  para o cinema.  O primeiro volume trouxe uma conversa entre Waki Yamato e Ryouko Yamgishi.  O Luiz, que ano passado me presenteou com a tradução de um bate-papo entre Ryoko Ikeda e Hagio Moto (parte 1 - parte 2), desta vez me deu esta conversa como presente.  Sou muito grata a ele pelo carinho.  

Lendo as conversas dessas veteranas é possível conhecer mais da história do shoujo mangá, da profissionalização das mulheres, da forma como essas grandes mangá-kas veem sua arte e o mercado.  Legal foi descobrir, também, que as duas foram colegas desde os tempos do colégio, que o gosto pelo mangá as aproximou e que Yamagishi penou bastante para conseguir emprego na indústria.  Enfim, leiam o texto e agradeço ao Luiz novamente. 💖  E, pessoal, não importa o que eu venha a postar hoje, este é o post mais importante do dia e, provavelmente, da semana inteira. Nos próximos dias devo postar a resenha do primeiro filme animado.



Conversa Especial: Yamato Waki e Yamagishi Ryouko
(Publicada no primeiro volume da nova edição de Haikara-san ga Tooru)

Sobre continuar a desenhar

“Eu me encontrei através de Haikara-san ga Tooru”

Yamagishi Ryouko (daqui em diante, Yamagishi): Obrigada por me permitir ter esta conversa com você, graças à comemoração dos seus 50 anos como desenhista. Eu não achava que teria esta oportunidade!

Yamato Waki (daqui em diante, Yamato): Nós não temos conversado há algum tempo nem por telefone, não é?

Yamagishi: Eu não achei que ambas seríamos mangakás por tanto tempo assim. Parece que vai sair uma nova edição de Haikara-san ga Tooru em comemoração aos seus 50 anos de carreira. Na verdade, na época da serialização de Haikara-san, meu editor da Hakusensha era seu fã e durante nossas reuniões ele me perguntava se eu havia lido a obra. Eu tinha de ouvir que as histórias de Haikara-san eram engraçadas. Por isso pensava comigo “ele não liga para minha obra” (risos).

Yamato: Nossa…!

Yamagishi: Eu estava desenhando “abalada”. Mas você conseguiu passar bem seu plano de fazer uma obra histórica do Período Taisho, não? Eles não foram contra? Quando eu fiz Hi Izuru Tokoro no Tenshi, houve bastante rejeição do departamento editorial.

Yamato: Houve muita rejeição! A ponto de eu nem querer ser levada nas reuniões (risos). Porém eu pedi que me permitissem desenhar 7 capítulos. Eu tinha por volta de 26-27 anos e achava que já não conseguiria desenhar colegiais do nosso período. Na época, os protagonistas dos populares Poe no Ichizoku e A Rosa de Versalhes não eram colegiais. Então eu propus: já não quero desenhar colegiais atuais, mas que tal uma estudante do Período Taisho? O seu par romântico seria um soldado. A palavra haikara aparece em um rakugo de que eu gosto muito, e já estava familiarizada com ela. E o estilo das estudantes do Período Taisho também desde aquela época já eram vistos como algo fofo.

Yamagishi: Entendi.

Yamato: Além disso, eu já não queria desenhar as coisas que me eram permitidas pelo departamento editorial. Nesse período, a começar por você, surgiram várias pessoas únicas e esplêndidas, cujas habilidades se destacavam. Então eu me afligia muito, pensando sobre o que gostaria de desenhar. Eu queria me encontrar. Eu também sentia muita admiração por pessoas como Ooshima Yumiko.

Yamagishi: Eu também pensava assim!

Yamato: Algo como “eu não consigo desenhar com um traço assim!”... Depois de me afligir, pensei que aquilo que me deixaria mais feliz seria as leitoras lerem e me dizerem ter achado interessante algo que eu também havia achado interessante. Percebi que estava desenhando apenas para isso. Em relação à heroína Benio também. Eu não queria fazê-la como as garotas comuns e fofas que estavam em moda na época. Eu visava uma anti-heroína que ninguém estava desenhando, uma heroína torta (risos). O fato de ter muitas gags também. Há tempos eu já gostava muito de comédia, e pensei que isso não estava na moda em outros shoujo mangás. Enquanto trabalhava, eu ouvia o programa de rádio All Night Nippon, do Tamori, recebendo influência das gags que tinham um estímulo forte nessa época. Experimentei usar palavras já obsoletas no período como shuran (bêbado briguento) (risos). A propósito, o modelo para a personagem Shuran Douji foi o meu editor daquele período que, apesar de ser homem, tinha o cabelo no estilo okappa (risos). Mas, no começo, nas enquetes respondidas pelas leitoras, eu não consegui obter popularidade…

Yamagishi: Hã?!

Yamato: É isso mesmo. Embora eu mesma achasse interessante, não houve popularidade como eu esperava. Então uma escritora naquele período falou que eu deveria deixar claro por quem a protagonista iria se apaixonar. Eu aceitei o conselho e coloquei claramente na direção da Benio vir a se apaixonar pelo Segundo Tenente. Quando fiz isso, a popularidade rapidamente apareceu (risos). Ainda hoje eu sou grata a ela.

Yamagishi: Há muitos personagens homens distintos, não?

Yamato: Como ainda havia poucos homens belos no Japão (risos), eu fiz o Segundo Tenente muito belo. Ele deixa a Benio fazer o que ela quiser, livremente. É um homem dos sonhos para uma mulher. Quanto ao Ranmaru, como a Benio tem “características masculinas”, eu o fiz como o exato oposto. Já o Tousei recebeu influência do Glam Rock na moda no período. Há também nele a imagem de Robert Plant do Led Zeppelin. A reação das leitoras quando ele apareceu foi muito boa porque cabelos compridos em homens estavam na moda. O Onijima é solitário e do tipo mau. Na verdade, ele é meu personagem masculino favorito. Eu gosto de homens pelos quais você sente pena (risos). Ele e a riquinha Tamaki são o casal perfeito.

Yamagishi: Para o período, a Benio foi desenhada como uma mulher bastante independente.

Yamato: Na nossa terra natal, Hokkaido, os homens e as mulheres são iguais, não é? As mulheres são fortes. Na minha casa também era assim. Era comum que mulheres trabalhassem. Eu também sou do tipo que quer comprar as próprias coisas com o próprio dinheiro. Talvez este contexto esteja refletido na personagem da Benio.



“Nós fomos a primeira ‘amiga de mangá’ uma da outra.”

Yamato: Foi no segundo ano do Ensino Médio que nós nos encontramos pela primeira vez?

Yamagishi: Isso, isso, no segundo ano do Ensino Médio. Eu estava na mesma sala que uma amiga de infância sua. Eu estava sempre desenhando mangás no horário de almoço e ela, que sentava na cadeira da frente, puxou conversa comigo. Ela disse que uma amiga dela também desenhava. Como na época não havia ninguém ao meu redor que desenhasse mangás, eu fiquei surpresa. Eu falei “Nossa! Me apresente!” e nós fomos visitá-la.

Yamato: Foi a primeira amizade conseguida através de mangá. Um encontro anterior à estréia como mangaká, não é? Nós desenhamos doujinshis, não? Mas foi um espaço de tempo muito pequeno. Nós conversávamos muito nos cafés. Por volta de 3 horas.

Yamagishi: Eu fui passear frequentemente na sua casa, também.

Yamato: Isso, isso. Nós ficávamos indo e vindo à casa uma da outra.

Yamagishi: Você me ensinou várias coisas sobre mangás. Eu não esqueci. Bem no início você dizia que mangá era algo que tinha kishoutenketsu.

Yamato: Eu falei algo tão presunçoso assim?!

Yamagishi: Sim, falou. E ainda por cima você disse que o kishoutenketsu no geral era dividido em 8 páginas cada. Assim, 4 x 8 páginas = 32 páginas.

Yamato: Que vergonha…

Yamagishi: Eu jamais vou esquecer isso por toda a minha vida. Quando você está construindo o trabalho de fato, o foco acaba sendo grande e a estrutura em kishoutenketsu ou a divisão em oito páginas acaba sumindo, mas quando eu estava perdida, essa sua fala vinha na minha cabeça. “Nesta parte, eu preciso fazer a virada” etc. Eu já nem sei mais o quanto isso me ajudou.

Yamato: Algo tão imponente assim!! Por que será que eu falei algo do tipo?

Yamagishi: Você havia ouvido isso de um editor da Kodansha, não é?. E estava me ensinando generosamente. Estou em dívida com você por uma vida inteira. Há uma grande diferença entre saber isso e não saber! As mangakás de agora também, todas vocês, quando estiverem perdidas, lembrem-se disso, por favor! (risos)

Yamato: Valorizem o kishoutenketsu (risos).

Yamagishi: Mas não há necessidade de seguir isso muito à risca.

Yamato: Porém, eu só repeti o que me foi passado. Como é uma estrutura kishoutenketsu, qualquer história entra dentro do modelo de quatro quadros (4-koma). Se você repetir isso de novo e de novo de forma complexa, inserindo variações, surge uma grande obra como a Hi Izuru Tokoro no Tenshi!

Yamagishi: Nessa época de Hokkaido, o Tezuka Osamu-sensei…

Yamato: Nós fomos encontrá-lo juntas, não é? Ouvimos que ele iria para o Festival de Neve de Sapporo por causa de algo relacionado à Kimba. “Vamos?”, “Vamos”. E então ficamos esperando ele sair.

Yamagishi: Isso mesmo.

Yamato: Eu estava me perguntando se quando o encontrássemos, pediria um autógrafo e logo acabaria, mas ele inesperadamente conversou conosco.

Yamagishi: E então você pediu para ele olhar nossas obras. Quando fez isso, ele ficou surpreso. Ele perguntou “Vocês são colegiais?” e falou “Como são menores de idade, tragam alguém que seja responsável por vocês”.

Yamato: E então você trouxe o seu irmão mais velho, não? Isso de fato me salvou. Nesse momento, o Tezuka-sensei falou várias coisas.

Yamagishi: Sim! Eu disse que gostava da Mizuno Hideko-sensei. Mas ele disse que o nível dela era muito alto e que os leitores dela tinham uma faixa etária maior, por isso eu deveria me direcionar a uma faixa etária mais baixa (risos). Mas foi um momento de batismo pelo qual sou grata. Se aquilo não me tivesse sido dito pelo Tezuka-sensei, eu não teria chegado ao ponto de desenhar pensando conscientemente nas leitoras.

Yamato: Mas eu fico me perguntando se nós desenharíamos mangás caso a Mizuno-sensei não tivesse existido.

Yamagishi: Verdade. Além disso, meu irmão realmente se lembra de você. Ele fica dizendo “O Tezuka-sensei falou que por volta de mais um ano e ela já conseguiria estrear como mangaká e foi isso que aconteceu. Ela é impressionante.”

Yamato: Fico agradecida…

Yamagishi: Eu fiquei do lado sentindo como se ele estivesse falando “quanto a você… vai demorar mais um pouco”.

Yamato: Mas a diferença de tempo entre as nossas estréias foi realmente muito pequena, não?

Yamagishi: Não, não é isso. Eu achei que o Tezuka-sensei estivesse dizendo que eu já não tinha chances de estrear. Achei que ele estava dizendo isso de forma leve, sem me machucar.

Yamato: Eu estreei e vim para a capital. Você ficou desenhando mangá por um ano enquanto trabalhava. Você veio algumas vezes para Tóquio trazer os materiais para as editoras. E nessas horas dormia na minha casa.

Yamagishi: Eu sou realmente grata à você. Eu ia à Kodansha, à Shueisha etc não é?

Yamato: E então eu perguntava como tinha sido.

Yamagishi: Eu sempre respondia “não consegui”.

Yamato: Eu lia as obras e ficava “por que essa obra foi recusada?!”, ou então “Por quê, se é tão interessante assim?”.

Yamagishi: Não, mas realmente. Tanto em desenho quanto em história havia partes bem ruins. Era natural que isso acontecesse.

Yamato: Eu sempre achei que seria inadmissível caso uma pessoa com um talento tão incrível quanto o seu não fosse reconhecida.

Yamagishi: Imagina!

Yamato: Eu queria que você desenhasse uma obra mais comum, de forma a conseguir um editor realmente bom ou apenas para garantir sua posição.

Yamagishi: Ah, você estava preocupada assim.

Yamato: Para mim, você foi a primeira pessoa que conheci como parceira no desenho de mangás. Mas o que mais me deixa admirada é a sua capacidade de observação do ser humano.

Yamagishi: Nossa! Isso?!

Yamato: Se não me engano, você fez um bico com algo relacionado a escritórios, não é? Você ouvia as histórias dos trabalhadores veteranos lá, mas parecia conseguir ver o fundo dos corações das pessoas. Eu pensei que não conseguiria observá-las desta maneira. Seus mangás também eram bem únicos. Eu sempre, sempre pensei que você era alguém incrível. A ponto de eu ter complexo.

Yamagishi: Hã?! Não pode ser. Onde que eu sou assim? Na verdade, isto é engraçado (risos).

Yamato: Eu pensava “não consigo desenhar uma obra assim”. E acho que, tirando seus irmãos, fui a primeira a descobrir seu talento.

Yamagishi: Ah, escutar isso me deixa envergonhada.



O futuro dos mangás.

Yamato: De fato, eu nem ousei pensar que continuaria desenhando mangá até aqui.

Yamagishi: Eu também não. Os mangás obtiveram popularidade e nós subimos nessa onda justamente nessa época. Nós nos tornamos mangakás em uma boa época, não é? Graças a Deus.

Yamato: Houve também estímulo. E muitas mangakás realmente boas na mesma geração. Foi um bom período.

Yamagishi: Nós entramos em um período de grande crescimento, não é? Porque o número de revistas aumentou rapidamente, enquanto nós desenhávamos. Mesmo havendo tão poucas no início.

Yamato: O número de boas leitoras cresceu também.

Yamagishi: Elas rapidamente foram se tornando universitárias. A faixa etária subiu… Mas eu tenho lamentado. Pelo fato de que se você não conquista leitores crianças, não há futuro no mundo dos mangás. Por isso eu estou desenhando com a intenção de que ao menos ginasiais leiam e me entendam. É por essa razão que coloco as leituras de todos os ideogramas.

Yamato: Era por isso, né?

Yamagishi: Porque se não fizer isso, daqui em diante chegará um momento em que apenas leitores adultos nos lerão. É justamente porque a pessoa lia mangás quando criança que ela continua a ler depois de adulta. Crianças que não leem mangás quando pequenas também não os leem quando se tornam adultas. Isso me preocupa.

Yamato: É verdade. Porque se não houver mangás voltados para o público infantil, daqui em diante os leitores serão só adultos. Eu ainda acho que existam possibilidades dentro dos mangás. Eu sempre penso que é uma forma de expressão maravilhosa. Você consegue desenhar qualquer coisa em um mangá, não é?

Yamagishi: Consegue! Eu tenho a impressão que daqui em diante os livros de “como fazer” serão todos sobre mangá.

Yamato: Por exemplo, mesmo algo como a Filosofia pode ser totalmente colocada em mangá, nos quadros. Diários também, claro. Embora seja algo que você desenhe e crie colocando balões de diálogo e desenhos em cima de um papel com uma caneta, alguém como você consegue ultrapassar o espaço e o tempo! Consegue-se ultrapassar o espaço e o tempo e fazer um discurso. É uma forma de expressão incrível, em que se consegue desenhar gêneros com grande amplitude, desde coisas difíceis até coisas que crianças pequenas consigam ler. Essa forma de expressão continuará daqui em diante também. Como com certeza há nos mangás algo interessante que combine com o leitor, gostaria que eles lessem e procurassem por isso dentro.

Yamagishi: É verdade. Por outro lado, eu acho que se quem escreve não compreender a realidade a ponto de conseguir contá-la como se estivesse falando de um outro episódio para uma terceira pessoa, ele não conseguirá transmiti-la. Quando você conseguir absorver até esse ponto e sedimentar dentro de você, “Ah, era essa a razão por trás disso”, ao transformar em obra, todos os leitores dirão “Ah, é assim mesmo”. Se você não conseguir entender até aí, não conseguirá colocar em uma obra. Eu realmente acho que a forma mangá é maravilhosa, mas os mangakás que conseguem manter isso já não são comuns realmente, não é? Tenho a impressão de que se o grau de compreensão não for profundo, não se consegue pegar os verdadeiros leitores. Mas estou falando isso com arrogância.

Yamato: Mas é realmente assim. Se você não compreendeu profundamente, não conseguirá desenhar. Como é uma forma de expressão em que se deve conseguir ler de forma simples, treinar-se até esse ponto é extremamente complicado.

Yamagishi: É complicado, mas daqui para a frente também vamos ambas cuidar de nossos corpos e nos esforçar. A cena de Ishutaru no Musume em que Sanada Yukimura diz para o cavalo “eu só peço que você me conceda as suas pernas” realmente me levou às lágrimas.

Yamato: Quanto a mim, como estou gostando muito da narrativa de uma pessoa extraordinária que você está desenhando, estarei aguardando Revelation - Keiji daqui para a frente também!

 Esta conversa é uma versão corrigida e reorganizada do “Projeto Especial dos 50 anos de carreira como desenhista de Yamato Waki!! Yamato Waki-sensei X Yamagishi Ryouko-sensei - Conversa Especial!!” publicada na Edição 17 da revista BE LOVE, em 2016.

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