quarta-feira, 3 de abril de 2019

O caso Tabata Amaral e como devemos nos importar com o que realmente importa


Semana passada, uma jovem deputada federal, sexta mais votada em São Paulo, formada em Ciências Políticas e Astrofísica em Harvard  chamada Tabata Amaral emparedou o atual ministro de educação, mostrando para a nação o óbvio, que ele é um incompetente.  Sem recorrer aos jargões tradicionais, ou permitir que o ministro leva-se a discussão para um terreno que lhe fosse confortável, como o famigerado projeto Escola sem Partido.  Ela recebeu muitos elogios e o vídeo com o confronto entre os dois, ou o massacre, viralizou.  Ótimo.  


Anteontem, alguém comentou em um post meu do Facebook que ela estava sendo massacrada pela esquerda por não ter agido como alguém de esquerda nesse confronto  (!!!!).  Eu não tinha visto nada ainda, mas foi rápido, logo, logo, alguns contatos do Twitter começaram a repassar as críticas à moça e veio o vídeo da Sabrina do Tese Onze.  Ontem, um texto muito bom foi publicado no Intercept sobre mais essa bola fora da esquerda.  Sim, eu sempre dizia para meus alunos e alunas do terceiro ano que a direita se une com muito mais facilidade, elegem os pontos comuns, formam alianças estratégicas, pode dar ruim para alguns de seus setores, claro, vide o caso do nazismo na Alemanha, mas, no geral, a coisa funciona.  As esquerdas tendem a brigar pelas minúcias e vírgulas, esquecendo que existem bandeiras comuns e devemos nos agarrar a elas.  

Para alguns dos críticos, Tabata é um lobo em pele de cordeiro, porque seria a favor da reforma da previdência.  Ora, ora, ela é do PDT, um partido de esquerda, ou centro-esquerda, como queiram, e o Ciro Gomes, que foi a todos os debates e deu inúmeras entrevistas, defendeu uma reforma da previdência.  Eu votei no Ciro no Primeiro Turno (*sim, não falo dessas coisas aqui, mas faz-se necessário*) e me incomodava um tanto com essa proposta, especialmente, quando ele falava em sistema de capitalização. No entanto, o PDT foi o primeiro partido a fechar questão contra a reforma proposta pelo atual governo, esta que o Paulo guedes defendeu no Senado e defenderá, hoje, na Câmara.  Dito isso, qual a surpresa se Tabata, deputada federal pelo PDT, defender uma reforma da previdência?  A questão, a meu ver, é qual reforma.  


A outra crítica que vi foi que Tabata defende o ensino domiciliar.  Quem me conhece, sabe que sou contra no geral, mas admito que possa ser possível e necessário em alguns casos.  Tenho um post bem longo sobre isso.  Agora, eu achei um texto da deputada sobre o tema, coisa curta, mas me digam o seguinte, em qual momento essa moça, que me parece muito sensata, defendeu educação domiciliar? Ela critica que o governo atual coloque como meta dos 100 dias algo que só atenderia aos interesses de parcela muito limitada da população, enquanto seu objetivo deveria ser atender a educação básica.  Só que sensatez, ou dizer o óbvio, parece ser ofensivo para muita gente.

E chegamos ao ponto mais sério a meu ver.  Tábata, nascida na periferia de São Paulo (Vila Missionária), filha de mãe diarista e pai (*ou padrasto*) cobrador de ônibus e lutando contra o vício em drogas, destacou-se em olimpíadas de matemática, robótica e outras ciências.  Ganhou bolsa para estudar em uma escola particular (Etapa), que pagou inclusive hotel para a moça morar perto da escola, porque seus pais não tinham dinheiro para arcar dom as despesas das passagens de ônibus.


Apesar de ter garantido uma vaga no curso de Física na Universidade de São Paulo (USP), Tabata sonhava em estudar fora. Ela se candidatou então a bolsas de estudo e foi aceita em seis das principais universidades americanas: Harvard, Yale, Columbia, Princeton, Pensilvânia e o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Optou por Harvard.  Ela se formou aos 23 anos com magna cum laude com honras máximas em Governo e Astrofísica de Harvard College.  Em todos os seus discursos, ela diz que não chegou sozinha, agradece família, professores que a apoiaram, enfim.  Ela não defende a meritocracia vazia e queria que alguém me mostrasse uma fala ou texto dela no qual o faz (*aqui, nesse texto, ela é criticada, mas assistam a entrevista e tentem ver no discurso dela algo que a desabone*).  Ao que parece, ela precisa esconder esse currículo, porque ele expõe as limitações atuais do ensino público, algo que as esquerdas apontam como problema desde sempre, porque ela foi amparada pela rede privada para segui adiante.  Se ela já não fosse suficientemente suspeita, ela ainda recebeu bolsa, ou auxílio, da Fundação Lemann, logo, ela está a serviço do grande capital, agora, é certeza.

Não sei em qual planeta certas pessoas vivem, mas eu, que nasci em São João de Meriti e devo ter enfrentado muito menos obstáculos que a Tabata Amaral, sei o quanto custa ter que percorrer longas distâncias para chegar até a universidade.  Distâncias físicas, com ônibus, trens, metrôs lotados, e outras tantas "Você não se enxerga, não?"  "Já chegou na faculdade.  Mestrado para quê?"  "Ah, mas não adianta, você não vai chegar em nenhum lugar!" A maioria fica pelo meio do caminho, outras, nem tentam, porque a universidade pública, ou mesmo tentar entrar em uma escola estatal de qualidade mais distante de casa, não é para elas.  Para quem nasceu na classe média ilustrada, ou em berços ainda mais nobres, talvez, seja difícil entender, ou até engolir gente como Tabata e outros que eu poderia citar.  



Eu, que fui voluntária em pré-vestibular comunitário no subúrbio carioca antes do governo Lula, ficava super feliz em ver gente fazendo das tripas coração para chegar lá.  Gente que nadava contra a corrente, assim como eu nadei.  Quando fazia estágio da licenciatura no Colégio de Aplicação da UFRJ (*acordava 4h30 da manhã para chegar às 7h na Lagoa, 15h, eu pegava no trabalho, saia às 21h*), fiquei sabendo da política dos colégios e cursinhos particulares caros.  Eles ofereciam bolsas para os melhores alunos do CAP, da mesma forma que o fazem com os meninos e meninas do Colégio Militar de Brasília, onde leciono hoje, depois, eles eram usados como propaganda em panfletos, na TV, em outdoors.  Tabata foi uma exceção e fico feliz por ela.

Antes de chegar em Brasília, tive alunos e alunas das periferias que poderiam voar alto, mas que nunca tiveram a chance. A CHANCE. Será que se aparecesse um colégio particular de elite querendo dar bolsa para que eles servissem de propaganda, ou uma fundação com nome gringo, ou nacional, querendo oferecer o patrocínio necessário, eu iria dizer "Não!  São grandes corporações!  Foco na Revolução!".  Gente, quem sempre teve tudo, ou quase tudo, de recursos, de apoio emocional, de viagens caras, enfim, aponta o dedo para uma pessoa como a Tabata porque ela agarrou as chances que teve.  Ela que em nenhum momento fez qualquer coisa que pudesse caracterizá-la como uma pessoa elitista, ou comprometida em aumentar os abismos sociais de nosso país, parece o cavalo de Tróia para a destruição da educação pública.  É sério isso?



"Ah, mas ela não se afirmou de esquerda!" Uai, mas o PDT é um partido de esquerda, ainda é, não é?  Ah, eu sei, não é esquerda o suficiente, Trabalhismo não está no escopo das esquerdas... "Ela não usou de jargões marxistas!".  Eu sou de esquerda, eu não sou marxista.  Acreditem, é possível.  Valorizo Marx pela importância que teve e tem, mas não vou adotar uma postura religiosa em relação à nada que não seja de fato religião.  Mas eis o X da questão, ser marxista para alguns é ponto de partida e ponto de chegada.  Isso é uma tolice, mas, sim, é o norteador do pensamento de muitos críticos à esquerda, porque os que estão à direita, não vou nem comentar.

Não acredito que você tenha que começar toda discussão colocando seus pressupostos teóricos, ou ideológicos, na mesa para que sua fala tenha validade, ou legitimidade. é importante, também, não iniciar a discussão ofendendo o interlocutor, isso pode dar razão para ele, ou ela, especialmente, se quem fala é de esquerda (*"E a Venezuela?"  Vai para Cuba!"*), ou mulher (*"Sua percepção dos fatos não é racional." "Você é muito bonita, não deveria se preocupar com essas coisas!" ou "Você só entrou para a política, porque não é bonita o suficiente para atrair os homens.  Quer atenção!"*), ou negro (*A palavra do negro vale menos por ser negro.*), ou pobre (*"Veja como esse sujeito fala errado!" "O que a tia da cozinha está fazendo no Senado?"*) ou jovem (*"Você não tem experiência de vida!  Vai estudar primeiro."*).  São estigmas que serão explorados pelo adversário, esteja certo. Em alguns casos, é necessário prudência e adaptar os eu discurso à audiência.  Citando livremente Foucaul, porque não estou com A Ordem do Discurso nas mãos, uma pessoa não tem o direito de dizer tudo, nem falar sobre tudo, para qualquer público e em qualquer lugar.  Vai dar problema, só isso.  "Ficou parecendo que ela não era, nem de direita, nem de esquerda."  Você precisa se afirmar de um lado, ou de outro para debater qualquer coisa SEMPRE? O que é mais importante o que está em discussão, ou seus pressupostos político-ideológicos? Será que se você não começa o argumento com uma carteira da, você está expulso do clube? "Competência técnica é uma cortina de fumaça para o grande capital."  OK, cansei desse pessoal.  


O vídeo da Sabrina do Tese Onze, alguém que respeito muito e que faz um excelente trabalho traduzindo ideias complexas para o grande público, foi particularmente terrível.  Ficou parecendo que a Tabata Amaral deveria ser recusada, porque apesar de ter sido uma estudante pobre e marginalizada, aceitou uma bolsa de estudo, ou apoio, de representantes do "grande capital".  Não consigo aceitar esse tipo de pensamento de esquerda que não cria pontes, mas as queima e destrói, que pode ser seletivo em relação aos próprios privilégios de classe (*para usar o jargão marxista*) que teve quando convém (*quando interessa, os expõe*).  Mas eu não devo ser de esquerda o suficiente, ou feminista o suficiente, porque nunca vou professar minha fé em São Marx, São Engels (*gente que talvez sentisse vergonha de certos setores do seu fandom, se vivos estivessem*), ou quem quer que seja.  Prefiro manter meu direito à crítica e consciência.  Foi esse tipo de atitude que nos conduziu para o lugar no qual estamos agora, com gente absolutamente incompetente governando e se comportando como alunos de quarta série.

É claro que competência técnica pode ser usada para o bem, ou para o mal, no entanto, por qual motivo demonizar Tabata?  Não é possível dialogar com ela?  Chegamos ao ponto em que estamos por termos deixado que os incompetentes e populistas definissem o campo de batalha (*kit gay, ideologia de gênero, Escola Sem Partido etc.*) e, agora, eles estão querendo reinventar o passado, rever as narrativas e criar uma, ou mais, gerações de idiotas, insensíveis e tudo mais.  Se Tabata Amaral se preocupar com a educação e lutar por ela com a inteligência que se conduziu até hoje, sou grata.  E a revolução, que tem que ser marxista, que tem que ser de impacto, que é um horizonte inalcançável (*ainda bem, tenho medo de certos revolucionários*) pode ficar nas mãos dos que acreditam que tem todas as respostas para os problemas do presente, do passado e, claro, do futuro.

2 pessoas comentaram:

Estou aplaudindo de pé este post!

Valéria, concordando 100% com você, e assinando em baixo. Isso me lembra o vídeo do jornalista fictício Jonathan Pie, sobre o motivo da esquerda ter perdido nos Estados Unidos e Trump ter ganhado: https://www.youtube.com/watch?v=Blp8tsGzvu8

"A esquerda é responsável por esse resultado porque eles decidiram que qualquer outra visão de mundo, qualquer outra opinião é inaceitável. Nós não debatemos mais, porque a esquerda ganhou a 'guerra cultural'. [...] Quando é que alguém foi persuadido por ser insultado ou rotulado?"

O pior de tudo é o quanto consigo identificar o vídeo com a situação do Brasil.

Bom, mas talvez eu também não seja de esquerda o suficiente.

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