domingo, 9 de junho de 2019

Comentando Memórias da Dor (La Douleur, França, 2017): como a Guerra constrói e destrói os sentimentos


Esta semana fui três vezes ao cinema, acho que foi um recorde pessoal, só que assisti três produções que não me deram satisfação.  Começarei pela ordem, pelo filme de quinta-feira, Memórias da Dor.  Há um cinema perto do meu trabalho que exibe filmes de circuito restrito, filmes de arte, com poucas exceções.  Sempre vou na primeira sessão, a dos idosos, porque é a que me cabe melhor.  Saio do trabalho, almoço e está na hora do filme, termina e dá tempo de pegar a Júlia na escola.  Pois bem, tinha três opções, Rocket Man, que iria ficar muito tempo, Os Papéis de Aspern, que eu estava querendo ver, e Memórias da Dor, que estava estreando.  Acho que escolhi mal, não porque o filme é ruim, mas, enfim, vamos tentar explicar.  

Junho de 1944, a França ainda está sob a ocupação alemã. O escritor e comunista Robert Antelme (Emmanuel Bourdieu), figura de destaque na Resistência, é preso e corre o risco de ser deportado. Sua jovem esposa Marguerite Duras (Mélanie Thierry), também escritora, é dilacerada pela angústia de não ter notícias dele. Ela conhece um agente francês que trabalha na Gestapo, Pierre Rabier (Benoît Magimel), que lhe oferece ajuda, disposta a fazer qualquer coisa para encontrar o marido, se arrisca em um relacionamento ambíguo com um colaboracionista, apenas para poder ajudar Robert. O fim da guerra e o retorno dos prisioneiros campos de concentração anunciam a Marguerite Duras o começo de uma espera insuportável, uma agonia lenta e silenciosa no meio do caos da Libertação de Paris.  Robert está vivo?  Robert está morto?  Todos estão voltando, menos ele... 


O sofrimento de Marguerite é profundo.
A guerra tem efeitos devastadores sobre as pessoas e esse filme, baseado em um conto autobiográfico  de Marguerite Duras, publicado em 1985, chamado La Douleur, mostra bem a angústia, a dor e outros sentimentos que consomem aqueles que passam por situações limite.  Não estamos falando de fome, ou misérias semelhantes, Duras vive em condições bem razoáveis, muito melhores do que a média das pessoas durante o conflito.  De qualquer forma, quem vai assistir um filme com o nome de Memórias da Dor sabe que não vai para rir, só que o problema maior é que a película é muito, muito lenta.  Há momentos em que temos a marcação somente com a voz da protagonista lendo o conto. Sim, lendo e lendo e lendo.  Até fiquei curiosa em relação ao original, mas acredito que o recurso não funcionou bem no filme.

Agora, é fato que o desespero da protagonista e outros sentimentos conflitantes foram muito bem encarnados pela protagonista, Mélanie Thierry.  Nada tenho a reclamar da atriz.  Sua interpretação é contida boa parte do tempo.  Ela tem medo por ela e pelo marido, ela sofre, porque ele sofre, e, ao mesmo tempo, ela precisa dar suporte a outras pessoas, mulheres, em especial, que passam por situações semelhantes.  Meu desencanto com o filme não reside aí, minha reclamação é que a sinopse e o trailer me venderam uma história e ofereceram outra, já vou explicar.


Um jogo de gato e rato, ele prendeu o marido
da protagonista e se oferece para ajudá-la.
As sinopses e o trailer anunciam que o filme seria centrado na relação de Marguerite com o agente da Gestapo.  O filme tem duas horas e essa relação ocupa, se muito, metade da película.  Rabier se oferece para ajudar o marido de Marguerite, levar seus pacotes para ele e tentar impedir que ele seja levado para um campo de concentração no Leste (Polônia ou Alemanha).  Em troca, ele quer se encontrar com ela, conversar sobre literatura, sobre o sonho que ele tem de abrir uma livraria.  Ele gosta dela, está na cara; ela, no início, tem medo dele.  Seus amigos da Resistência se preocupam, Dionys Mascolo (Benjamin Biolay) não quer que ela vá, já o líder da célula, François Morland (Grégoire Leprince-Ringuet), quer que ela tente conseguir informações.

Coisa curiosa, eu estranhei esse nome Morland, daí, depois, fui descobrir que era um nome inventado no filme, ou no conto, sei lá, para encobrir o de François Miterrand, presidente da França entre 21 de maio de 1981 e 17 de maio de 1995.  Miterrand foi o primeiro presidente francês do qual me lembro, afinal, sou nascida em 1976.  Sempre acho curioso quando escondem o nome de personagens históricas, como fizeram em Entre Irmãs com Getúlio Vargas.  Qual o motivo?  Qual a razão?  Acredito que qualquer francês saberia que era Miterrand, enfim... 


Mélanie Thierry transmite com o olhar os sentimentos
 da protagonista.
Rabier, na verdade, nada fez pelo marido de Marguerite, ele queria somente ficar perto dela, no último momento, ele chega a propor que a escritora passe a noite com ele.  Ela, conforme os Aliados se aproximam de Paris, sente menos medo por sua vida.  Passa a olhar com desprezo para os colaboracionistas.  Será que eles estariam vivos amanhã?  Ela trama com a resistência o assassinato de Rabier, mas ele é mais esperto e ela não tem coragem de deixá-lo morrer.  Desenvolveu-se, sim, um jogo de sedução entre eles, mas é algo tão tênue, tão superficial, que não gera nenhuma angústia na audiência em relação às fidelidades da protagonista.  Rabier some do filme como se nunca nele tivesse estado. E a película começa a se arrastar ainda mais.  

Conheço a obra de Marguerie Duras pelos filmes, nunca li nenhum livro dela, nem tinha conhecimentos mais profundos da sua biografia.  Realmente foi um susto para mim descobrir que ela lutou tanto para ter o marido de volta, sofreu tanto e, quando o homem volta todo estropiado da guerra, ela descobre que não o ama mais, que deseja se casar e ter um filho com Dionys, um amigo comum.  Palavra que eu, inocentemente, estava admirando a amizade dos dois, o apoio e o cuidado que Dionys para com Marguerite, em especial, quando ela se arrisca em seus encontros com o agente da Gestapo.  Lá no final, eu cheguei a perceber alguma coisa, mas quando o filme joga na nossa cara, de novo, uma leitura do texto, ao que parece, a situação toda, fiquei meio sem chão.


Eu demorei a perceber que Marguerite e Dionys eram amantes.
Enfim, trata-se de uma atitude corajosa e que mostra um grande empoderamento, afinal, Marguerite não aceita estar em um casamento que não deseja mais.  Ela, assim como os companheiros da Resistência, cuidam de Robert, mas Marguerite não o quer mais como marido e o deixa quando ele se recupera.  E, como todo mundo parecia ser muito civilizado nesse triângulo amoroso, continuam amigos e a vida segue.  Sério, isso não é spoiler, é história.  O fato é que Robert foi encontrado em Darchau, o primeiro campo de concentração nazista a ser criado, estavam tão frágil, pesando, segundo consta somente 38 quilos.  Dionys e Morland (*Miterrand*), que o descobriu, acreditam que ele vai morrer.  Ele sobrevive.  

Memórias da Dor mostra como os cidadãos comuns ficaram horrorizados conforme os campos de concentração e extermínio são abertos e os prisioneiros resgatados.  Seria aquilo real, ou um pesadelo?  A própria Marguerite tem medo de rever o marido, mas quando ela titubeia, não quer reencontrar Robert, Dionys a chama à responsabilidade.  É o único momento em que ela se deixa tutelar.  Se não o ama mais, ele merece cuidados como qualquer ser humano, como um companheiro de luta.  O fato é que eu, Valéria, talvez de forma muito moralista, considerei a mudança de espírito da protagonista muito abrupta.  Ela amava e, de repente, não ama mais.  De qualquer forma, o questionamento é válido, o Robert que foi preso, não é o mesmo que voltaria dos campos.  O homem que ela amara continuaria lá?  Difícil saber.


Todos os dias ela se encontrava com o agente da Gestapo.
Um recurso interessante do filme é muitas vezes colocar a protagonista vendo a si mesma em determinadas ações.  Duas cenas sobrepostas.  Em alguns casos, flashback, em outros, cenas imaginadas, o que ela queria que ocorresse, o que ela poderia ter feito.  Marguerite está dentro e fora da ação.  Se eu tenho algo a elogiar de fato no filme, foi esse recurso.  Quanto à Bechdel Rule,  a película consegue cumpri-la, porque ainda que as personagens masculinas secundárias sejam proeminentes, Marguerite interage com mulheres, a maioria com nomes. Temos a doce senhora judia idosa que mora em sua casa enquanto espera a volta de sua filha dos campos de concentração, a esposa em depressão à espera de seu marido, a arrogante oficial do novo governo que expulsa as agentes da resistência que cadastravam os que voltavam da guerra para ajudar na busca dos parentes.  

Algo curioso que percebi em Memórias da Dor é que os atores que interpretam Robert e Dionys são muito mais velhos que Mélanie Thierry.  Ela nasceu em 1981, Benjamin Biolay em 1973 e Emmanuel Bourdieu (*Filho do sociólogo Pierre Bourdieu*)  é de 1965.  Por qual motivo estou destacando isso? Marguerite Duras era mais velha que seu marido e que seu amante.  Ela era de 1914, Antelme de 1917 e Dionys de 1916.  Por qual motivo colocar uma atriz tão mais jovem?  Se escolhessem uma atriz mais madura, talvez, ela não tivesse apelo erótico, é isso?  Mas poderia ser diferente, os atores poderiam ser mais jovens. Por qual motivo escolheram esse caminho?  Enfim, esse detalhe me intrigou e, bem, não poderia deixar passar, não, porque me cheira a machismo mesmo.


Os atores homens são bem mais velhos que a atriz protagonista.
Aliás, há um rancor em relação à Charles De Gaulle e os que chegaram ao poder com ele.  Não conheço tanto de História da França contemporânea para saber os motivos, não vou pesquisar, mas Marguerite e seu grupo eram comunistas.  Eles estavam na França, eles estavam lutando e se arriscando, De Gaulle, que se eternizou como herói, estava bem seguro e fora do país ocupado, ou da República colaboracionista de Vichy.  Talvez seja isso, mas teria que ser mais conhecedora daquele período para afirmar com certeza.

Coisa que o filme não mostra é que o agente da Gestapo, que na vida real se chamava Charles Delval, foi levado à julgamento por ação de Marguerite.  Segundo consta, ela testemunhou a favor dele, contando que ele teria salvo pessoas da morte, poupado judeus.  Isso, as histórias do agente, estão no filme.  Verdade, ou não, não adiantou, o cara foi condenado à morte.  A Dor, a coletânea que tem esse conto, parece esgotada.  Há exemplares bem baratinhos na Estante Virtual.  Não sei se no livro Cadernos da guerra e outros textos está incluído o conto A Dor, mas é o material mais recente da autora lançado no Brasil.


Ela não teve pudores em tomar decisões controversas.
É isso.  Se você gosta de filmes franceses, se não se importa que uma película seja muito lenta, talvez você goste de Memórias da Dor.  Não espere romance.  Não espera ação.  É drama psicológico mesmo, que consegue retratar muito bem a dor daqueles que tem parentes e amigos presos em tempos de guerra.  A incerteza quanto à vida, à morte e/ou o sofrimento das pessoas que a gente ama.  E uma das cenas mais fortes do filme nesse sentido está no trailer, quando Marguerite e outras mulheres veem seus homens sendo levados para longe em caminhões, impotentes.  Para onde iriam levá-los?  Seriam mortos?  Iriam revê-los um dia?

La Douleur foi o candidato da França no Oscar desse ano, mas não chegou às finais.  Foi indicado para oito César (filme, diretor, atriz, roteiro adaptado, figurino, fotografia, direção de arte e som), prêmio máximo do cinema francês, mas saiu sem nenhum prêmio.  Como pontuei lá em cima, meio que me arrependi, deveria ter ido para Rocketman, pois não estou no melhor dos meus espíritos por esses dias, deveria ter optado por um filme mais feliz.  Enfim, vou resenhar a Fênix Negra esses dias, já Patrulha Canina, esqueçam, aliás, não gaste seu dinheiro com ele, não é coisa que deveria ir para o cinema.  Guardem para animações de qualidade que estão para estrear.


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