sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Censura às HQs: Direção da Bienal Resiste e a Prefeitura do Rio Insiste


A Bienal do Livro está na sua 36ª edição e nunca houve qualquer constrangimento, ou ação governamental com o intuito de intimidar, ou censurar qualquer material vendido.  Só que estamos em uma Nova Era, vocês sabem. Para quem caiu de para-quedas aqui, ontem, o prefeito do Rio De Janeiro acusou a HQ Vingadores - A Cruzada das Crianças de ter conteúdo inadequado para menores.  


Achei a imagem muito fofa para não colocar, mas não
tenho certeza se é da graphic novel da discórdia.
Resumindo a história, a graphic novel, que tinha sido publicada anteriormente em 2016 sem qualquer problema, mostra um grupo de jovens heróis que seriam os novos Vingadores.  Dois dos heróis adolescentes, Wiccano e Hulkling, são um casal.  Eles trocam um ou dois beijos em mais de 200 páginas e nada acontece além disso.  Grupos extremistas de direita fizeram um escândalo e o prefeito mandou recolher a HQ.  Ele não tem poder para isso e é inconstitucional.  A direção da Bienal manteve pé firme e nem acatou a exigência de que o material fosse embalado com PLÁSTICO PRETO e recebesse classificação indicativa.


Esta cena não sei se é de Cruzada das Crianças.
Enfim, gente, hoje, quando a Bienal abriu 9h da manhã, o álbum esgotou em meia hora.  Ainda assim, com o intuito de intimidar, fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública  (SEOP) chegaram à Bienal por volta do meio dia em busca de material impróprio.  Segundo o subsecretário de operações da SEOP, o coronel Wonley Dias, a vistoria acontecia para buscar material pornográfico.  Ele disse o seguinte: "A prefeitura tem poder de polícia para isso. Se o material não estiver seguindo as recomendações, será recolhido. Estamos cumprindo orientação da procuradoria da prefeitura, não é censura”.  O secretário, no entanto, não deu detalhes ou parâmetros do que seria considerado conteúdo pornográfico e cabível de apreensão, o que abre um precedente perigoso, segundo o site Universo HQ.  


Mas esta página é SIM.
Se vocês pegarem qualquer site que deu a notícia - Globo, O Dia, Folha de São PauloUniverso HQ, etc. - vão reconhecer o stand da Comix e, também, mostruários cheios de mangás.  Como bem pontuou o texto do Mais de Oito Mil, bastava olhar o outro lado do mostruário e, talvez, acabássemos tendo muito problemas... De qualquer forma, o precedente está aberto.  E, afinal, o que caracteriza um material como pornográfico?  Um beijo entre dois meninos que nem na capa está (*e se estivesse não haveria problema algum*)?  Estamos trilhando uma vereda muito perigosa, muito mesmo.  E espero que os fãs de quadrinhos em geral e todas as pessoas de bom senso e que amam a democracia consigam entender o que está acontecendo.  Pode não estar lhe incomodando ainda, mas pode logo, logo, chegar em você.  Gilead é logo ali na esquina e, como disse no meu post de ontem, há a prevalência da ideia de que quadrinhos seriam para crianças e que, também, seriam perniciosos.


E ao graphic novel esgotou... 
Continuando mais um pouco, conversei mais cedo com um amigo querido que comentou comigo sobre uma campanha em sites nerds/geeks para que as pessoas comprassem Vingadores - A Cruzada das Crianças e, se já tivessem um exemplar do quadrinho, dessem a cópia de presente para uma criança.  Eu pontuei que esse tipo de campanha pode ricochetear.  "Dê de presente", seria melhor, afinal, a graphic novel não é para crianças MESMO. Não para crianças de qualquer idade, como a minha, que só tem 5 anos.


Percebem os mangás?
Vingadores - A Cruzada das Crianças é um material voltado para adolescentes e além.  Pode ser lido por crianças maiores que gostem de quadrinhos de heróis, mas, no geral, é um produto para meus alunos que tem 13, 14, 15 anos.  E não pensem que estou dizendo isso por causa do romance entre Wiccano e Hulkling, mas pelo tipo do traço, narrativa e temática da história, além do formato da publicação.  Revistas para crianças, normalmente, e isso desde que Beatrix Potter sugeriu isso para seus livros infantis, devem caber nas mãos de seus pequenos leitores.  O formatinho sobrevive em revistinhas infantis também por causa disso (*Há outros fatores, tem Will Eisner e Grande Depressão, mas falo disso em outro texto*).  E o mais importante:  temos lutado tanto para marcar para a sociedade que há quadrinhos para todos os públicos e todas as idades e todos os gostos, que não podemos nos jogar na vala comum de considerar todo quadrinho como adequado para crianças, por favor!  


Este mangá não é para meninas de
12, 13 anos.  Não é MESMO!
Por exemplo, quando escrevi a resenha do volume #1 de Game, lançado pela Panini, fui bem enfática ao dizer que, por favor, não dê esse tipo de mangá para sua irmã, ou prima, de 12, 13 anos.  Não é para ela, essa menina não viveu nem amadureceu o suficiente para lidar com o tipo de relação que esse mangá apresenta.  Vai que Game cai nas mãos da mãe ou pai de uma menina de 12 anos e esse responsável preocupado larga o mangá na mão de um apresentador de programa sensacionalista, ou de um político picareta pseudo-moralista?  A culpa é do mangá? Da editora?  Não, mas cada material tem seu público alvo e se algo assim acontecer, tenham certeza de que vai dar m****, não vai ser pouca, e vai sobrar para tudo quanto é tipo de mangá.


Um clássico obrigatório.  Aliás, leia Will Eisner.
Dez anos atrás, muito antes dessa insanidade que varreu nosso país, Um Contrato com Deus de Will Eisner virou matéria de jornal, porque uma menina de 11 anos pegou a graphic novel na biblioteca da escola e os pais acharam que o material era impróprio.  Olha, eu nem acho Um Contrato Com Deus um problema, mas, sim, há temas sérios tratados com certa crueza, nada que um pai, ou mãe, preparado não pudesse explicar para uma menina de 11 anos.  No entanto, eu concordo que a biblioteca errou ao colocar Eisner junto com Turma da Mônica, porque tudo é quadrinho.  E, bem, poderia ser pior, vai que a criança encontra um Manara?  Em gibitecas e bibliotecas que tratam quadrinhos de forma séria, eles não são divididos somente por ordem alfabética, ou temática, há, também, a questão da classificação indicativa.  Organizar dessa forma não é censurar, mas respeitar o público, ter bom senso e seguir a lei.


Os especialistas em ação.
Ponderar sobre essas questões não me torna moralista, estou somente alertando que, sim, estamos em uma guerra e estratégia, quando não se tem a força ao seu lado, é fundamental para vencer o conflito.  Voltando, para crianças como Júlia, o ideal é a Turma da Mônica padrão, ou outro quadrinho com temáticas abordadas e traço pensando em um público muito jovem.  Eu, com 43 anos, posso gostar da Turma da Mônica (*e nem gosto tanto*), mas eu tenho que saber que o material não foi feito para mim.  Júlia consegue gostar do Homem Aranha no Aranhaverso, mas não consegue gostar nem dos filmes live actions, nem apreciar as HQs ainda.  Ela dia desses me pediu para ler Rosa de Versalhes para ela e eu fiz uma leitura adaptada de algumas coisa,s porque, bem, certos temas ainda não são para ela.  É preciso viver mais, amadurecer mais.


Este beijo é pornografia, também?
Agora, Vingadores - A Cruzada das Crianças é para um público similar à Turma da Mônica Jovem, certo?  Então, por qual motivo Mônica e Cebolinha se beijando na capa não ofende e um beijo de dois meninos em algum momento da história pode virar assunto para o prefeito e caso de polícia?  E o problema não é TMJ, que ninguém imagine que seja!  Vamos discutir colocando na mesa material para um público semelhante e expôr que o motivo principal do escândalo é, sim, homofobia descarada e uma tentativa de ganhar pontos com um eleitorado conservador fanatizado, ou mal informado.  E, só lembrando, o casamento e a família homoafetiva são reconhecidos oficialmente no Brasil desde 2011. 


Querem empurrar os meninos para o armário.
Agora, fiquem dando corda, ou dormindo em serviço, que até Turma da Mônica Jovem poderá ser vitimado, afinal, as editoras podem ser intimidadas, leis poderão ser feitas nos próximos anos com o intuito de perseguir minorias e impedir a discussão de qualquer tema ligado à diversidade e gênero.  Não são tempos fáceis, são, na verdade, tempos sombrios e difíceis.  E, por favor, ninguém me venha falar em Idade Média, ou medieval, essa desgraça toda é coisa do século XXI mesmo.  Não temos carros voadores, nem vivemos 300 anos, mas podemos, daqui a pouco, ter de volta fogueiras de livros, queimando quadrinhos e qualquer outro material visto como perigoso.  As perguntas são: Perigosos para quem?  Perigosos por quê?

4 pessoas comentaram:

Como sempre, você é um poço de bom senso nesses tempos conturbados que temos enfrentado! Parabéns pela postagem! A cada vez que acesso seu blog, tenho a impressão de que me identifico ainda mais com você, e este tem sido, um dos poucos, talvez o único blog que, ao longo dos anos, eu acesse com habitualidade e tenha grande curiosidade em sempre saber sua opinião! Quanto ao tema, acredite que em que pese as inúmeras campanhas em prol da igualdade de gênero, estejamos, infelizmente, a anos luz de um sociedade que respeite as diferenças.

Oi Valéria, tudo joia?

Após leitura seus textos sobre esse acontecimento, iniciei uma pesquisa mais ampla e gostaria de recomendar um vídeo que assisti e acredito que possa contribuir na discussão: "Censura na Bienal do Livro: Marcelo Crivella e os Jovens Vingadores", do canal Mimimídias.

Consegui uma cópia da HQ, e pretendo ler nesse fim de semana.

P.S.: Teremos shojo cast ainda este ano?

Abraços e bom feriado.

Infelizmente tivemos mais uma reviravolta nesta história: Crivella recorreu ao TJ e teve uma liminar determinando o recolhimento dos materiais concedida. Não consigo anexar a notícia pelo celular, mas está no site do G1.

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