domingo, 26 de janeiro de 2020

Damares, Little Women e o Dispositivo Amoroso


Esses dias houve uma entrevista com a ministra Damares na qual ela falava que, aos 55 anos, ainda estava em busca do príncipe encantado.  Sim, aquele sujeito que, no nosso imaginário coletivo, tem a função de resgatar a mocinha de sua vida de sofrimento, ou sem significado, e dar-lhe tudo aquilo que uma  mulher precisa, AMOR.  Esse sentimento se materializará em um casamento e no nascimento de filhos, o destino de toda mulher, se ela tiver sorte, ela poderá, como a própria ministra disse tempos atrás, passar suas tardes na rede e receber muitas joias.

Enfim, não quero falar de Damares, o segundo ministro mais popular do atual governo, mas repassar um comentário feito pela Prof.ª Dr.ª Valeska Zanello, da psicologia da UnB.  Ela analisou a matéria e postou comentários que vão de encontro ao que eu penso, Damares não é louca, mas um dos elementos mais inteligentes do governo e peça fundamental para o avanço da agenda de costumes proposta pelo atual presidente.  Uma agenda que incluirá, a partir do próximo mês, uma campanha pela abstinência sexual dos adolescentes, sem nenhum foco nos adultos, que são os abusadores e a maioria dos pais das meninas que engravidam.  De qualquer forma, segue o comentário:

Ela só parece doida.
"Gente, essa é a nova estratégia da Damares: MANIPULAR o DISPOSITIVO AMOROSO das mulheres. Como expliquei no meu livro, esse é o principal dispositivo no processo de subjetivação das mulheres, no Brasil. E, também, um dos principais fatores de seu desempoderamento e vulnerabilização. Isso implica em dizer que as mulheres se subjetivam na “prateleira do amor” (a qual é mediada por um ideal estético) e que SER ESCOLHIDA por um homem, é algo identitário para elas (que confirma sua “mulheridade”). Isso confere, por outro lado, poder aos homens, pois são eles os eleitos como avaliadores das mulheres (fisica e moralmente- não importa o quão perebados sejam, se acham sempre no direito de avaliar e emitir opinião sobre elas. Quem avalia os homens são os próprios homens).
Em todos os meus anos de clínica e pesquisa, nunca encontrei/atendi uma mulher cuja queixa principal não se referisse à esfera amorosa (e, secundariamente, materna). Damares não é boba, nem burra. Como Pastora, com certeza já ouviu muitas narrativas dessa ordem e sabe exatamente como usa-las para abocanhar espaço para seu projeto imperialista evangélico. O triste disso tudo é que sua fala reforça e valida o aprisionamento.
Há um lucro sobre esse sofrimento, o qual se transforma em um meio fértil de convencimento quando o que se oferece é a ideia de compreensão/acolhimento (“a ministra me entende”, “ela também passa por isso”) e a oferta de uma esperança-pharmákon de que no futuro as coisas serão diferentes (“Tá cheio de perebado, mas vou encontrar meu príncipe encantado”).
O sofrimento das mulheres será assim (triste, mas ironicamente) um importante insumo para a consolidação de seu projeto evangélico."
Um dispositivo é uma rede de discursos, narrativas e conhecimentos que se entrelaçam, recebem estímulos e encontram resistências; que constroem corpos, sentimentos, legitimam prazeres e caracterizam a culpa.  O dispositivo amoroso é aquele que constrói as mulheres como seres movidos pelo sentimento, pelo cuidar, pelo amar e pelo se dar ao outro.  Sem um homem ao seu lado, uma mulher não é nada, sua vida não tem significado.  O que a Valeska Zanello está argumentando é que a ministra utiliza muito bem desse dispositivo e sua popularidade e influência reside aí.  É como se ela fosse uma mulher como qualquer outra, uma amiga íntima.  E a agenda do governo segue se apoiando nisso.  

Eles continuarão ricos, parecem felizes, mas romper com
a realeza é um atentado ao dispositivo amoroso.
Essa história de ser princesa, esse importante ingrediente do discurso da ministra Damares, apareceu na mídia de outra forma esses dias, por causa de Meghan Markle e seu marido, o príncipe Harry, que decidiram deixar a realeza.  Nas palavras do pai"É decepcionante porque ela efetivamente conseguiu o sonho de toda garota. Toda garota quer se tornar uma princesa e ela conseguiu isso, e agora ela está jogando fora, para, parece que ela está jogando isso fora por dinheiro". Descontada toda a vontade que esse senhor tem de aparecer, esse enunciado é uma reação à recusa de parte do dispositivo amoroso.  Imagina, uma mulher não querer ser princesa!  E que tipo de mulher é essa que acaba arrastando o pobre príncipe para fora de um "conto de fadas".  Ele deveria ter casado com uma mulher normal, dessas que ficam esperando o príncipe encantado... 

Voltando, e nem sei se esse post está decente, ou não, falei de Little Women, o filme da Greta Gerwig, porque ele não conseguiu romper com o dispositivo amoroso.  O filme bateu o tempo inteiro no desejo de independência de Jo, deu-lhe as condições para garanti-la (*a herança da tia, que foi antecipada na película em relação ao livro*), mas colocou o Prof. Bhaer de novo na história sem necessidade.  Sim, assista ao filme, ou leia a minha resenha, o professor e sua relação com Jo foram tão modificadas que não havia sentido em trazê-lo de volta, salvo, para reforçar o dispositivo amoroso.

Imagina o desespero dessa mulher rica e bem sucedida,
mas sem seu "príncipe".  Como ela iria sobreviver?
De que adiantaria Jo, mesmo a empoderadíssima desse filme de 2019, ter dinheiro, fama, seus livros publicados, se não tivesse um homem de quem cuidar e a quem amar?  Os filhos não aparecem, mas imagino que estivessem na equação.  A família praticamente a atira em cima do professor, ela sai correndo atrás dele, não da forma elegante, mesmo que ousada, como Anne Elliot seu capitão em Persuasão, mas como uma desesperada em busca de uma tábua de salvação.  Mas de que mesmo? De qualquer forma, os horizontes da personagem foram apequenados para enquadrá-la nessa forma do que é ser uma mulher de verdade, mesmo contradizendo o próprio filme e sem conseguir mostrar a força da relação que o professor e a protagonista tem no livro.

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