domingo, 8 de março de 2020

Comentando The Elusive Pimpernel (Inglaterra/1950): uma versão com poucas qualidades


Por causa do post sobre a campanha para lançamento do livro com contos da primeira detetive mulher detetive criada por uma mulher, acabei olhando a biografia da Baronesa Orczy.  Desdobramento disso, decidi olhar se não havia nenhuma versão de Scarlet Pimpernel para o cinema que eu não tivesse visto e, bem, acabei encontrando uma com David Niven no papel do Pimpernel/Sir Percy Blakeney.  Restava saber se eu conseguiria achar o filme para baixar.  Consegui, a qualidade não estava lá essas coisas, não havia legendas disponíveis, me interromperam sei lá quantas vezes, mas consegui assistir.   

O Scarlet Pimpernel foi o primeiro herói com identidade secreta da literatura (*ou assim parece*) e era um nobre inglês que se dedicava a salvar gente da guilhotina, especialmente, os de sua classe social.  Toda narrativa da Baronesa Orczy é de crítica à Revolução Francesa e aos abusos cometidos pelo povo comum e os jacobinos.  Mas não queria me prolongar muito nesse texto explicando a personagem, por isso, recomendo, então, a resenha do primeiro livro, dos filmes de 1934 e 1982, além do seriado da BBC de 1999.  Sim, e ainda há muita coisa do Pimpernel que eu não li, ou assisti, mesmo amando a personagem.  Resumindo o filme:

O primeiro herói com uma identidade secreta.
Estamos durante o período da Revolução Francesa dominado pelos jacobinos (1792-94), quando milhares terminaram na guilhotina.  Alguns, no entanto, são salvos por um inglês misterioso que atende pelo nome de Scarlet Pimpernel (David Niven).  Ele já começa o filme salvando uma família de nobres e enganando todos com seu disfarce de velha tricoteira, mulheres que ficavam assistindo as execuções na guilhotina.  Ninguém sabe a identidade do Pimpernel, mas o Cidadão  Chauvelin (Cyril Cusack), um graduado funcionário do governo e fiel servidor do regime, tem como missão descobrir sua identidade e destruir o herói.  

Chauvelin é indicado como embaixador da França na Grã-Bretanha e arquiteta um plano, conseguir a colaboração de Marguerite Saint-Just (Margaret Leighton), atual Lady Blakeney, uma francesa e velha conhecida, em troca da vida e segurança de seu irmão, Armand (Edmond Audran), que ainda reside na França.  Chauvelin deseja que Marguerite consiga descobrir a identidade do Pimpernel, que o vilão sabe pertencer à nobreza inglesa, que não é outro senão o  próprio marido da mocinha.  

Cartaz francês, ou belga, do filme.
Marguerite quer pedir ajuda ao marido, mas ele se afastou dela sem maiores explicações e a trata com muita frieza.  Na verdade, Sir Percy acredita que a esposa foi responsável pela morte de uma família de nobres na guilhotina e isso esfriou o amor que ele sentia por ela.  Como não conseguem conversar e se entender, Marguerite acaba colocando em risco a vida do Pimpernel, enquanto ele trabalha para salvar Armand e livrá-la da chantagem de Chauvelin.

The Elusive Pimpernel (*nome de um dos livros do herói*), que também é chamado de The Fighting Pimpernel, é um filme muito deficiente.  De todas as adaptações do personagem para a TV, ou cinema, é a menos brilhante e divertida, mesmo que, na média, mantenha fidelidade ao livro.  Na verdade, a julgar pelo que li sobre o filme, ele não deveria ter acontecido.  David Niven e o diretor, Michael Powell, não queriam fazer o filme e foram obrigados por razões contratuais.  Niven não era a primeira escolha para o papel, mas Rex Harrison.  O diretor não queria Margaret Leighton como Marguerite e o filme deveria ser um musical.  E só conseguiu ser lançado nos EUA em 1954.

O ator foi obrigado a fazer o filme por razões contratuais.
Enquanto estava organizando mentalmente a resenha, fiquei pensando em como o filme era fragmentado e confuso. Cenas terminam abruptamente, acontecimentos parecem ocorrer simultaneamente quando não deveriam e, em alguns momentos, tive a impressão de que todos iriam começar a cantar e não cantam.  Por exemplo, uma dessas cenas é a que Sir Percy analisa a roupa do Príncipe de Gales (Jack Hawkins) e a destrói na frente do costureiro do príncipe, porque, bem, ele é o modelo de elegância seguido pelo regente e ficaria feio para ele se o príncipe saísse por aí vestido daquele jeito.  Da maneira como a sequência é construída, parece antecipar "The Creation of Man", uma das canções da versão musical do Pimpernel.  

Parece mesmo que pegaram o roteiro do musical e deram uma arrumada para transformar em outra coisa e ficou tudo muito mal arranjado, claro.  Falando do Príncipe de Gales, futuro George IV, ele é pintado como uma criatura patética, mulherengo, adepto da jogatina e tentando, em vão, parecer elegante como Sir Percy.  O filme se preocupa em montar um retrato do período marcado pela doença do rei George III e a regência de seu filho como um tanto decadente em termos morais, porque, bem, quem deveria servir de modelo para a sociedade é um sujeito absolutamente inadequado.

O Príncipe Regente dá em cima de Marguerite,
apesar de ser muito amigo de Sir Percy.
Olhando o filme, acredito que o príncipe tem quase tanto tempo de tela quanto Marguerite, que deveria ser a segunda personagem mais importante da película.  Claro, algumas cenas do príncipe são das melhores dessa versão do Scarlet Pimpernel.  Quando o Príncipe Regente está dançando com Marguerite e começa a devorá-la com os olhos, Sir Percy olha para um dos companheiros da Liga, que eu não consigo lembrar direito de é Lord Anthony (David Hutcheson) ou Lord Andrew (Robert Coote), que começa a mexer em um baralho fazendo com que o libertino perca interesse na mulher em favor do jogo.

Mais adiante, há uma outra cena curiosa, porque parece ser algo constante em filmes daquele período, anos 1930/40, que é a corrida de carruagens.  Lembrei de Orgulho & Preconceito (1940) e de Sinhá Moça (1953).  O Príncipe Regente havia desafiado seus companheiros de farra para uma corrida, Sir Percy precisava ir o mais rápido possível para França, mas é intimado a comparecer.  Ele não se faz de rogado, ultrapassa todo mundo e, como está na dianteira, engana a todos, pega outra estrada e vai cumprir sua missão, deixando o príncipe embasbacado com sua velocidade.  Foi uma cena divertida de um filme que se manteve morno boa parte do tempo.

O Príncipe Regente adulado por várias mulheres no baile.
O livro original, aquele que serviu de base para esse filme e todos os demais, é engraçado e dramático ao mesmo tempo.  Sir Percy, o sujeito mais rico da Inglaterra, é conhecido como o homem mais tolo do país.  Nesse filme, esses momentos de tolice aparecem raramente, mesmo aquela ceninha deliciosa inventada para o filme de 1934 e repetida em todos os outros, com Percy ajeitando a gravata do vilão que nada entende de moda, parece chata e não provoca o riso.  David Niven parece estar entediado e sabendo que ele não queria o papel, é fácil entender o motivo.

Sir Percy é uma personagem leve e todo ator que o interpreta precisa marcar bem a passagem do tolo nobre inglês para o astuto Pimpernel.  Leslie Howard (1934) faz isso com perfeição, mudava o olhar, a entonação de voz e a postura corporal em um estalo, os demais intérpretes que vi, conseguiam um bom efeito nessas cenas fundamentais.  Já David Niven, não, ele parece ser quase a mesma personagem, seja como Pimpernel, seja como Sir Percy.  Nem a exclamação que Sir Percy soltava o tempo inteiro com uma voz afetada, "Sink me!", aparece  direito no filme.

A parte do banho russo me lembrou o musical pela
ideia da sequência, não pelos homens semi-nus.
Esse Sir Percy que não é tão tolo quanto deveria, também não é tão frio quanto precisava com Marguerite.  No livro e nos filmes, ele sempre chama a esposa de Madame ou “Your Ladyship” com grande deferência e distância, já nessa versão, Percy a chama de "my dear" o tempo inteiro e com ar de complacência.  A barreira emocional que ele construiu e que o separava da esposa não existe de forma clara nesse filme.  Agora, há um mérito do roteiro, o Sir Percy desse filme é muito menos inclinado a usar qualquer forma de violência do que o das outras adaptações.  Ele saca a arma para Chauvelin se desculpando por ter que fazê-lo e não há duelo.

A história do duelo é a seguinte, no livro e no filme de 1934, não existe duelo entre o Pimpernel e o vilão.  Já na versão de 1982, os dois se enfrentam no final.  E, bem, eu realmente acho que filmes desse tipo tem que ter duelo.  ☺️ Em compensação, há uma cena do livro que foi cortada das outras versões.  O Pimpernel salva a Condessa de Tournai (Arlette Marchal), seu filho (Gérard Nery) e filha, Suzanne (Danielle Godet), amiga de Marguerite.  Quando as duas se reencontram, elas se abraçam e a Condessa intervém repreendendo a filha e ofendendo Marguerite, que acusa de ser partidária da república e ter sido responsável pela morte do Marquês de Saint Cyr e sua família.

O vilão acha que engana Percy, mas
sempre está muitos passos atrás.
Marguerite não tem tempo de retrucar, porque Sir Percy chega.  O filho da condessa o desafia para um duelo.  Percy recusa horrorizado, duelar é contra a lei, reclama do absurdo que é o Pimpernel trazer todos esses franceses e que eles deveriam ser largados no meio do Canal da Mancha.  Está no livro desse jeito, porém a reação cordial do rapaz depois da ofensa,  não está.  Pior, o Pimpernel conversa com o estalajadeiro e lamenta não ter um filho como aquele jovem tolo e cheio de si.  Ele está no quarto e é o momento em que chega Marguerite...

E como é a Marguerite desse filme?  Uma sombra da do livro e bem inferior as das das outras versões.  Ela fala pouco, parece insegura e, da mesma forma que em adaptações anteriores e posteriores, é tratada como vítima.  Percy deveria ouvi-la e, não, julgá-la.  Aproveitam-se alguns diálogos do livro nas cenas dos dois, mas não com a intensidade dada por Leslie Howard e Merle Oberon.  A seu favor, a Marguerite de Margaret Leighton tem o fato de ser loura, como no livro, e só.  Ela não tem a força do original, parece uma mocinha débil e não a mulher inteligente e orgulhosa do livro.  Fora isso, ela aparece menos do que deveria.

Tiraram o lacaio sinistro e perigoso de Chauvelin
e colocaram um capitão ridículo no lugar.
Nem vou me esticar em relação à Chauvelin.  Ele tem um tom cômico, verdade, mas não com a simpatia de Ian McKellen.  O Chauvelin de Cyril Cusack é somente ridículo com pouco da personagem sinistra do livro e ainda tem um forçado sotaque francês que dificultou a compreensão de suas falas.  Nesse filme, não tem Robespierre pressionando o vilão, nem há qualquer vestígio de alguma paixão dele por Marguerite.  Resumindo, pior Pimpernel, pior Marguerite, pior Chauvelin.

Vamos tentar terminar a resenha pontuando algumas coisas interessantes.  Logo na abertura há acordes de "Ça Irá", um dos hits da Revolução Francesa, e mostra-se a guilhotina, quando ela cai, um tecido vermelho trêmula na tela.  Ficou bem interessante a clara analogia ao sangue.  A quadrinha “They seek him here, they seek him there/Those Frenchies seek him everywhere/Is he in heaven or is he in hell?/That demned elusive Pimpernel” (“Eles o procuram aqui, eles o procuram lá/Esses franceses o procuram em todos os lugares/Ele está no céu ou no inferno?/Aquele Pimpernel esquivo e esquecido”) aparece duas vezes no filme, nas outras adaptações, somente uma vez e está bom.

Mais um cartaz do filme.
Há a cena do falso fuzilamento, que não está no livro (*não no primeiro*) e foi reaproveitada no filme de 1982 com efeito melhor, porque, bem, Marguerite está presente.  Nesta versão, Chauvelin cumpre a palavra e liberta a esposa de Sir Percy, o inglês é que engana o vilão e não cumpre com sua parte, mostrando que estava muito a frente dele em astúcia.  Há uma cena de reencontro entre Percy e Marguerite semelhante a do filme de 1982, mas diferente da versão mais recente, quando  o herói abre os braços para a esposa, ela para pra pensar se corre para ele, ou não.  É como coloquei, falta frieza da parte dele e entrega da parte dela.  Ficou estranho.

E temos quase a ceninha do rapé.  Chauvelin no livro é viciado em rapé, um pó de cheirar muito usado no século XVIII e XIX.  Neste filme, ele só aparece usando em uma cena.  O Pimpernel, no original, misturava pimenta no potinho de rapé do vilão, nesse filme, ele coloca o tempero no seu próprio recipiente e oferece.  Chauvelin recusa, mas termina usando o pó e aparece um efeito especial esquisito, fogos de artifício a cada vez que ele espirra.  Foi a chance do Pimpernel salvar Lord Andrew que tinha sido capturado pelo vilão e fugir.  Apesar dos efeitos bizarros, foi bom ver a cena do rapé.

O Príncipe de Gales é a única personagem divertida do filme.
Como perde-se tempo demais com o Príncipe de Gales, algumas partes do filme ficam truncadas.  O baile com Marguerite ludibriando Sir Anthony, por exemplo.  Aliás, a sequência é mudada e o companheiro do herói troca o anel sinete do Pimpernel pelo de Marguerite.  Eles eram idênticos no filme, mas somente o dele se abria.  É assim que ela confirma a identidade do herói e se desespera acreditando que o mandou para a morte.  Cena seguinte a esta, ela invade o quarto do marido e com a conivência do seu valete descobre um closet cheio de fantasias.  Enfim, no livro e em outras versões é um sóbrio escritório.  De qualquer forma, mais que em qualquer outra versão, esta mostra o quanto o herói era um mestre dos disfarces.

Quanto ao figurino do filme, acredito que o dos homens é bem fiel à época com as roupas mais tradicionais e o visual espalhafatoso de Sir Percy e seus companheiros, que eram todos fops, isto é, homens excessivamente preocupados com sua aparência e em andar na última moda, ou ditá-la.  Um fop pode parecer afeminados pelos padrões de hoje, porque levavam ao extremo os padrões da moda de sua época, que já era bem exagerada, mas eles faziam tremendo sucesso, especialmente, com as mulheres.

Uma das edições em DVD.
Já as vestimentas das mulheres me parecem misturar épocas diferentes e isso fica evidente no baile, único momento em que aparecem muitas mulheres.  A roupa de Marguerite no baile lembra um tanto o vestido que Oscar usa na única vez que coloca um vestido na Rosa de Versalhes.  E tem um laçarote atrás.  Queria uma avaliação das moças do frock flicks, mas elas não comentaram essa versão do Pimpernel.  Por outro lado, fiéis, ou não, algumas roupas de Marguerite são muito bonitas, o problema, presente no filme inteiro, é o excesso de maquiagem usado pela atriz.   E, sim, cumpre-se a Bechdel Rule, mas por muito pouco...

Concluindo, porque ficou longo demais e, no fim do filme, não vi Armand, irmão de Marguerite, que nesta versão, como no livro e em 1934, era um sujeito sério e honrado, sendo salvo.  Acho que esqueceram dele.  De qualquer modo, é possível ver neste filme de 1950 influências do de 1934 e ideias que iriam ser reutilizadas no filme de 1982 e, posteriormente, no musical.  Não é um filme memorável, não é sequer um bom filme, mas eu tinha que olhar e resenhar.  Não recomendo o esforço para quem não é fã da personagem, no entanto.  Eu realmente desejo que alguém tenha a ideia de levar de novo o Scarlet Pimpernel para o cinema com toda a atenção que a personagem, precursora do Zorro e do Batman, merece.


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