Não queria ter que comentar, mas acredito que alguma coisa sobre o caso da menina de dez anos, estuprada e grávida, precisa ficar registrado no Shoujo Café. A referência à Gilead, claro, vem de O Conto da Aia. Não sabe do que se trata? Clique aqui. Para quem não está ciente do motivador do meu texto, uma menina, órfã de mãe e com o pai preso, sob a guarda dos avós foi violentada entre os seis e os dez anos por um tio. O homem, agora com 33 anos, está foragido. A criança, porque é importante repetir criança e não trocar por palavras como "jovem" que favorecem uma adultização da vítima, apresentou inchaço no ventre e mal estar. Descoberta a gravidez, a Justiça precisava autorizar a interrupção da gravidez que, no caso de estupro, é direito assegurado por lei.
A ministra Damares nada disse publicamente sobre a questão do aborto e se dirigiu ao Espírito Santo para acompanhar o caso e apoiar, se necessário. A história ganhou as manchetes de jornais e começou a movimentar os grupos de militância, os pelos direitos das mulheres, e os autointitulados pró-vida, que defendem que a gravidez seja levada à termo. Os médicos atestaram o risco de morte para a menina, so que traria uma segunda motivação legal para a intervenção.
Primeiramente, houve o diagnóstico de que a menina estaria grávida de cerca de 12 semanas (3 meses), porém, a equipe do único hospital que poderia fazer o procedimento no Espírito Santo recusou-se a executar o aborto sob argumento de que a gravidez já seria de cerca de 22 semanas, aproximadamente 5 meses. Aqui, cabe explicar o que muita gente ignora, seja entre os que defendem a descriminalização e os que são contra.
Existem balizas legais e médicas para a permissão da interrupção da gravidez de um feto saudável. Cito o artigo A legislação sobre o aborto e seu impacto na saúde da mulher: "Do ponto de vista médico, aborto é a interrupção da gravidez até 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 gramas ou, ainda, segundo alguns, quando o feto mede até 16,5 cm." Resumindo, a partir dos 5 meses de gestação, não é mais aborto, seria a indução de um parto prematuro e, acredito (*não sou jurista*), mesmo não havendo nada na legislação sobre o aborto em relação a isso, afinal, ela é de 1940, passível de enquadramento de infanticídio.
Além disso, os riscos para a saúde da gestante, ainda mais uma criança, poderiam potencializados. Qual seria a saída? Manter a menina monitorada, em ambiente hospitalar, provavelmente, até que o feto atingisse uma idade gestacional segura, provavelmente 26 semanas, para que fosse efetuada uma cesariana. Foi o que aconteceu no caso da menina argentina, levando-se em conta as diferenças nas legislações dos países. E o bebê, que foi celebrado pelos pró-vidas, morreu. enfim, em nenhum dos casos, há preocupação com a criança, o que está na mesa, pelo menos para os pró-vida é o ideal. Um embrião, ou feto, sempre vale mais do que a pessoa que o carrega e graças a qual ele pode se desenvolver. Sempre. Depois que nasce, claro, aí não é mais problema da militância, afinal, "quem pariu Mateus que embale.".
Primeira coisa, eu concordo com uma amiga que trabalha na Vara da Infância e Juventude, ela defende que casos como esse não cheguem aos jornais. O sigilo garantiria a segurança da vítima e sua família. No entanto, o que se faz é colocar em todos os jornais, nas TVs e em toda sorte de lugar. Isso permite, claro, que os palpiteiros e juízes da moral da vítima, se manifestem. Enfim, como não pode fazer a interrupção da gravidez no Espírito Santo e o hospital não forneceu outra equipe, a menina, sua avó e uma assistente social seguiram para Recife. Só imagine o calvário. Pois bem, alguém vazou nome da menina, informações de seus familiares, endereço da família, nome do médico que faria o procedimento e o endereço do hospital em Recife para a militante de extrema direita Sara Winter.
Esta mulher divulgou esses dados na internet, em um vídeo, afirmando que feministas tinham sequestrado a menina para levá-la para fazer um aborto. Começaram a divulgar, também, que a idade gestacional seria maior, outro militante do mesmo nicho, Bernardo Küster, divulgou que o feto tinha mais de seis meses. Não pensem que isso é coisa menor, porque com a tecnologias de nossos dias bebês nascidos com 22 semanas são capazes de sobreviver, com 26 semanas as chances são ainda maiores. Um bando de desocupados e sem nenhum amor no coração foram para a porta dos hospital, católicos e evangélicos irmanados nessa missão vergonhosa. Um de seus líderes falou que foi informado por gente do Ministério de Damares. Quando a menina, a vítima, a criança, chegou, eles berraram ASSASSINA. Tentaram invadir o hospital. Militantes feministas e outras mulheres estavam lá para tentar impedir mais abusos. Hoje, Sara Winter voltou às redes para afirmar que pretende processar o médico. Parece que a Justiça ordenou a retirada de seus posts do ar, de qualquer forma, o estrago está feito.
Olha, isso me fez tão mal, tão mal. Eu ainda estou. Tive que explicar o caso, com as atenuações possíveis, para minha menina de seis anos. Afinal, há uma guerra contra as mulheres e eu não posso permitir que ela esteja desarmada por aí. Como não conseguiram impedir o aborto, passaram para o estágio dois, acusar a vítima. Difamá-la, desejar sua morte. Sobre o criminoso, nenhuma palavra. O nome dele, não sabemos. E eu nem quero saber, porque não desejo a morte de ninguém, quero a prisão e a punição, mas vejam qual o foco dessas pessoas. Ele é homem, como ele usa seu corpo para ter prazer, não é objeto de controle social, ainda que cometa um crime, vai vir alguém dizendo "Mas ele é homem, sabe como é..." ou "Tem que ver que roupa a menina estava usando.".
Coloquei prints no post, mas sem os nomes. Pessoas comuns, ainda que da pior espécie, não serão expostas aqui, agora, as autoridades, sim, elas precisam assumir. Quem vazou os dados da menina, sua família, do médico e do hospital para a militante de extrema-direita Sara Winter precisa ser punido. Tudo isso estava em segredo e Justiça, a criança sob a guarda do Estado. É preciso fazer cumprir a lei, ou a barbárie vai imperar. Eu fico feliz que, depois de todo o horror, os direitos da menina tenham sido respeitados. Infelizmente, infelizmente, nada do que ela sofreu e o aborto, ainda que necessário, é um desdobramento das violências, vai apagar suas dores ou garantir-lhe um futuro digno e com possibilidades de felicidade. Provavelmente, a família terá que deixar a cidade onde mora, afinal, até seu endereço residencial foi vazado.
A boa notícia, a menina está se recuperando bem, mas eu não estou feliz com nada nesse processo. Me fez mal, me deu asco, fiquei com dor de cabeça. Eu queria me desligar dessas coisas, mas eu não posso, eu não consigo, eu não posso me calar, mesmo que eu não tenha condições de impedir o estabelecimento de um regime cristofascista nesse país. Não é meu post mais inspirado, mas vocês não imaginam como eu me sinto mal. Muito mesmo.
2 pessoas comentaram:
De tanto que consumi notícias sobre esse caso, não tenho nem cabeça pra discutir e falar mais sobre, mas pontuar o meu desespero e indignação com essa turba de criminosos que se prestam a esse papel deplorável, censurável e escandaloso.
Que essa menina consiga encontrar a alegria e a felicidade na sua jornada, de alguma maneira. O resto é o resto, estuprador, cúmplices, responsáveis por vazamento de dados pessoais, que todos paguem atrás das grades.
O Brasil já virou um estado teocrático radical faz tempo. Só falta mesmo queimar as leis.
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