segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Comentando o Capítulo 1 de Orgulho & Preconceito (BBC/1995): Conhecendo as personagens, menos Mr. Darcy


A série Orgulho & Preconceito da BBC completa 25 anos este ano.  Foi um material fundamental para iniciar a Austenmania, não que a autora inglesa estivesse esquecida, mas foi o seriado da BBC tão bem executado e tão marcante que atraiu uma nova geração de fãs.  A partir daí, houve uma serie de adaptações em cadeia de livros da autora nos anos consecutivos (dois Emmas, Persuasão) e que não parou mais.  Justiça seja feita, Razão e Sensibilidade veio no mesmo ano, é um filme excelente, mas nada foi tão impactante como a série da BBC.  Talvez, nem seja a série da BBC, mas Orgulho & Preconceito mesmo, até porque, com o filme de 2005, aconteceu fenômeno semelhante.  

Trata-se, sem dúvida alguma, da obra mais importante da autora, a mais influente, lembrada, citada e conhecida.  Só que quando pensamos, por exemplo, em Mr. Darcy, parece que um ator o representou tão bem que quase se tornou prisioneiro da personagem.  Eu falo de Colin Firth, claro.  Então, como é aniversário da série e o Colin Firth está completando sessenta anos este ano, decidi resenhar a série inteira.  Capítulo por capítulo, porque ela merece e eu nunca fiz.  Ontem, assisti ao primeiro episódio e espero assistir ao segundo hoje e ir resenhando um por dia.  Consigo?  Provavelmente, não, mas vamos começar.  Uma resenha curta para cada episódio.  Não vou me prender à trama principal, vou comentar o capítulo mesmo.


O primeiro episódio de Orgulho & Preconceito foi ao ar na BBC em 24 de setembro de 1995, não tinha olhado até ter a ideia das resenhas, e trouxe uma nova perspectiva para a já conhecida história de Jane Austen.  Antes da série de 1995, duas outras adaptações importantes tinham sido feita, a de 1980 (*que completa quarenta anos em 2020 e precisa de resenha, também*) e a de 1967, da qual só sobraram fragmentos.  Diferente das séries anteriores, o ponte de vista de Mr. Darcy está presente em todos os capítulos da série.  Em alguns momentos, veremos os acontecimentos a partir do olhar dele e, bem, o que mais Firth faz nesse primeiro episódio é olhar, ou encarar as pessoas e o ambiente.  

O primeiro capítulo serve para situar e o tempo apresentar as personagens principais menos Wickham (Adrian Lukis), que entra no episódio seguinte, e, claro, para que tenhamos uma ideia errada sobre o caráter de Mr. Darcy, ou não, mas como conheço a história, é difícil julgar. No início da série, ele receberá o rótulo de orgulhoso.  Mas será que ele é realmente tanto assim?  Veremos.  A primeira sequência mostra dois arrojados cavaleiros chegando à Hertfordshire e a protagonista, Elizabeth Bennett (Jennifer Ehle) os vê de longe e segue caminhando para casa, onde o caos já está instalado.  


Vemos que a Mrs. Bennet (Alison Steadman) já estava informada da chegada de Mr. Bingley (Crispin Bonham-Carter), um jovem rico, e exigia que o marido fizesse alguma coisa para que o cavalheiro possa conhecer suas filhas.  Nesse momento, temos aquela aulinha de etiqueta regencial com tons humorísticos. O problema é que a família tem cinco filhas, a propriedade do pai não pode ser passada pela linha feminina, e, por isso mesmo, elas precisam casar e muito bem, de preferência.  

Já de início fica estabelecida a forte conexão entre Elizabeth e seu pai, uma cumplicidade bem marcada na interpretação de Jennifer Ehle e Benjamin Whitrow.  É evidente, também, o caráter disfuncional daquela família.  O pai tem uma filha preferida, a mãe tem outra, nesse caso Lydia (Julia Sawalha).  Jane  (Susannah Harker) tem a parceria da irmã e certa condescendência dos pais por ser a mais velha e a mais dócil das filhas, mas  Kitty (Polly Maberly) e Mary  (Lucy Briers) são absolutamente negligenciadas.  Essas predileções, claro, não são nada positivas, mas são realistas, na medida que, efetivamente, muitos pais e mães agem desse jeito.


Mr. Bennett, no entanto, faz troça de todas as filhas e da esposa.  Homens gostam de mulheres idiotas e ele certamente está falando de si mesmo e de um casamento que não lhe trouxe grandes compensações.  Não se sabe se ele pensa tão mal das mulheres, mas é uma ideia que o pai repete para as filhas e a esposa  mais de uma vez no capítulo.  Na verdade, saberemos depois, Mr. Bennett já buscou fazer contato com Bingley e conhecê-lo, ele finge não ligar, age como um bully, mas se preocupa com o futuro das filhas de certa maneira.  Ele precisa que elas se casem e há um pequena cena diante de um livro de contas que mostra bem como a situação financeira dos Bennett não é das melhores.

Na verdade, esse primeiro capítulo é cheio de pequenas cenas e detalhes.  Há a cena do livro de contas.  Há a atenção do roteiro para com os criados.  Sim, porque uma das críticas à Jane Austen é que os criados em suas obras são invisíveis.   Andrew Davies, o roteirista, faz questão de lhes dar pequenas cenas e linhas de diálogos.  Por exemplo, no grande baile, ele mostra os criados bebendo e se divertindo do lado de fora.  Hill, a criada dos Bennett tem várias pequenas cenas e por aí vai.  Já no baile, para marcar o quanto as boas famílias de Hertfordshire são provincianas e caipiras, há um homem com uma peruca que mal cabe em sua cabeça.


De qualquer forma, nesse primeiro capítulo já temos traçado o caráter das cinco irmãs.  Elizabeth é inteligente e cheia de vivacidade, não uma tomboy, mas é capaz de romper com as regras quando lhe convém, o que a torna surpreendente, e isso, claro, a torna atraente para Mr. Darcy. Talvez, se tivesse tido uma governanta, ou pais mais responsáveis esse aspecto independente de sua personalidade teria sido castrado. Já Jane é uma dama perfeita dentro das modestas condições de sua família, além disso, tem um bom coração, mas sente-se pressionada a fazer um bom casamento, porque dela pode depender o destino das irmãs.

Mary nessa série tem várias cenas e sempre se mostra pedante, rígida e excessivamente mal humorada.  De todas as irmãs, ela é a menos gostável, por assim dizer.  Lydia, bem, ela não tem juízo e Mrs. Bennett deve olhar para ela e ver com orgulho uma versão mais jovem de si mesma.  Nesse sentido, sabe que a jovem vai se casar, por bem, ou por mal.  E Kitty, bem, ela é repreendida por todos, é uma sombra de Lydia e tosse, tosse muito.  E isso está no livro e já vi gente teorizando que a ela talvez fosse doente, porque além da tosse há o cansaço nas longas caminhadas, e ninguém estivesse percebendo o problema.


Mas é no grande baile público que somos introduzidos ao moço rico e seus acompanhantes.  O Bingley de Crispin Bonham-Carter é alegre, bondoso, o sujeito que quer ver o melhor em todo mundo, mas quando ninguém está observando capaz de lançar uns olhares de reprovação e desconforto.  Não tanto para Darcy com quem mantém uma relação de deferência, mas para o cunhado bêbado (Rupert Vansittart) e até para a Mrs. Bennett.  Ele é polido, mas visivelmente não é trouxa.  Eu gosto da forma como ele interpreta o papel e de como interage com o resto das personagens.

A irmã mais velha de Bingley, que normalmente é cortada das adaptações, Mrs.  Husrt (Lucy Robinson) é tão arrogante e metida quantoCaroline Bingley, mas meio que serve de escada para a personagem de Anna Chancellor.  Aliás, Chancellor é uma das melhores coisas desse primeiro episódio, sempre olhando todo mundo de cima e tentando atrair a atenção de Mr. Darcy.  Quando ela desconfia do interesse dele por Elizabeth, tenta rebaixar a moça de todos os jeitos, mas tudo dá errado.  Ou Darcy a trata com sua indiferença, ou ela acaba fazendo com que ele olhe mais para a moça do que deveria.


É assim, por exemplo, na cena da biblioteca quando Caroline Bingley convida Elizabeth a passear pela sala.  O objetivo, claro, era que Darcy comparasse as duas e visse a superioridade de Caroline, sua graça e elegância, o que ela consegue é que o moço repare ainda mais em Elizabeth.  E, aqui, muito por causa da frase “My good opinion once lost is lost forever.” (“Minha boa opinião, uma vez perdida, está perdida para sempre.”) temos o diálogo mais agressivo do capítulo entre Darcy e Elizabeth e Colin Firth faz uma expressão de desprezo, talvez raiva contida, ou sei lá, muito rara, e que eu vou ficar atenta para ver se ela aparece de novo.  

Enfim, quando enfrenta Lizzie, ou tenta atrair a atenção de Darcy, Caroline é um fracasso, mas quando ela e a irmã atacam Jane, as coisas funcionam.  Cientes do interesse do irmão pela moça, elas arrancam da irmã de Lizzie todos os detalhes possíveis sobre seus parentes, gente que elas consideram inferior, pessoas metidas com o comércio.  Só que, no livro, fica subentendido que o dinheiro dos Bingley é novo, isto é, eles enriqueceram com outras atividades e se tornaram landed gentry, mas antes não era assim.  Tanto é evidente que a série abre com Bingley falando em comprar uma propriedade, o que indica que ele não deveria ter terras que lhe foram legadas por herança.  


Só que, efetivamente, a mãe e a família de Jane são empecilhos para a moça. Alison Steadman faz uma Mrs. Bennett deliciosamente vulgar e barraqueira.  Chega a dar nervoso quando ela comete suas gafes e fica espicaçando Mr. Darcy.  Só que, voltando lá atrás, quando Mrs. Bennett manda Jane a cavalo para a casa dos Bingley sabendo que iria chover, colocando, inclusive, a vida da filha em risco, ela tem o marido como cúmplice.  O Mr. Bennett se mostra um péssimo pai ao permitir aquela armação, assim como se mostra negligente em outros aspectos do comportamento da esposa e das filhas.

E vamos falar de Colin Firth.  Em uma entrevista dele, o ator reclamou que Mr. Darcy só faz uma coisa a série inteira "stare" (encarar).  Sim, ele encara  bastante, mas ele olha, também, e de formas muito diferentes.  Há o olhar de desprezo no baile e o de surpresa e embaraço quando percebe que Elizabeth pode ter ouvido sua fala descortês e ainda rir dele.  Não lembrou?  “She is tolerable; but not handsome enough to tempt me; and I am in no humour at present to give consequence to young ladies who are slighted by other men."  ("Ela é tolerável; mas não bonita o suficiente para me tentar; e no momento não estou com humor para dar importância às moças que são menosprezadas por outros homens.”)


Lizzie ouve, se recente e irá espicaçá-lo mais tarde por causa dessa fala, mas logo depois de ouvi-lo vai fofocar com a amiga Charlotte Lucas e rir com ela, deixando Darcy aflito.  Aqui, cabe comentar que Lucy Scott é a Charlotte Lucas mais elegante e madura, no sentido de saber o que quer, ser racional, de todas as adaptações.  Ela é ótima.  Retornando, a forma como Mr. Darcy olha para Lizzie já se altera no próprio baile, mas ele resiste, se debate, ela está tantos degraus abaixo dele, que é evidente que o sujeito não pode se deixar levar.

Mas o capítulo ainda o coloca observando a moça da janela depois do banho que é o primeiro fanservice de Firth na série.  A cena da camisa molhada pode ser a famosa, mas os capítulos são cheios desses presentinhos para a audiência usando Colin Firth como atrativo principal.  E o que ele vê da janela?  Lizzie brincando com o cachorro.  O que passa pela cabeça dele?  Não sabemos, mas há curiosidade naquele olhar.  Talvez que a moça seja uma espécie de enigma.  Seria prudente tentar desvendá-lo.


O fato é que quando o capítulo termina, temos Lizzie e Jane voltando para casa, depois da irmã mais velha se recuperar da gripe na casa de Bingley.  Imediatamente antes, temos Caroline e a Mrs. Hurst comemorando a partida das moças e que tem sua casa de volta.  Darcy considera descortês, seu olhar indica isso, mas se cala.  Caroline o cutuca para saber se ele está triste com a partida de Elizabeth, ele nega, porque, bem, é uma forma de se resguardar.  Amanhã, vejo o capítulo seguinte (*na verdade, não consegui*).

Enfim, um dos méritos da série de 1995 é usar o máximo de material do livro, diálogos e tudo mais, ao mesmo tempo em que inova em certos aspectos.  Nesse primeiro capítulo, a única coisa que eu sinto falta é de Charlotte obrigando Lizzie a tocar o piano forte.  Ela fala que toca mal para Jane, mas não é vista tocando e, mais tarde, se fará referência à Darcy ter ouvido a moça tocar.  OK.  Foi um excelente primeiro capítulo, fazia anos que eu não o assistia do início ao fim e prestando atenção às minúcias.

1 pessoas comentaram:

Eu também revi a série pela (talvez) vigésima vez no fim de semana passado, motivada pelo aniversário do Colin Firth (do qual sou fã) e pela crítica rasa acerca do filme publicada pelo Buzzfeed (deprimente... e olhe que nem sou fã do filme, mas amo a história, obviamente) no mesmo dia do aniversário do ator. (Também revi o filme para fazer comparações. Hahaha!)

Eu amo essa série! Acho que ela é uma excelente adaptação.

Gostei muito do seu texto. Muito pertinente, como sempre.

Eu nunca havia reparado em como o primeiro episódio pontua os casamentos não só com o roteiro, mas também com a câmera, e achei muito interessante. Cada cena parece uma pincelada em um quadro, montando todo o contexto da época e da história. É claro que, por vezes, isso é feito de maneira cômica, mas os dois primeiros episódios são mais divertidos mesmo.

O primeiro capítulo trabalha bastante com olhares mesmo, parece-me. Há diversos detalhes não textuais. A câmera diz muito.

Na cena em que o Mr. Darcy olha para Lizzy pela janela, eu interpreto como se fosse um olhar mais "terno", mais "doce", que ele se permite fazer por estar sozinho, em um local íntimo. E vejo também como se ele estivesse perdido em si mesmo, pensando: "E agora?".

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