segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Gal Gadot e Patty Jenkins repetem dobradinha em biopic sobre Cleópatra + Algumas considerações sobre a última faraó do Egito

Engraçado que eu estava pensando na sexta-feira, acho, sobre Cleópatra.  Cheguei a ler que o único consenso sobre a última faraó do Egito era de que ela era muito culta e inteligente.  Ela utilizava a simbologia ao seu favor.  Apresentava-se como helenística (*que era esse grande mix cultural entre culturas orientais e a grega*), ou genuinamente egípcia, de acordo com a conveniência.  Era um animal político, uma estadista que compreendeu muito bem, a precariedade do Egito diante da potência que era Roma e quais as estratégias que tinha a seu dispôr para garantir a autonomia de seu país sob seu próprio governo.  

Ela teve um filho com Júlio César, Cesário, que foi assassinado (*claro*), por ordem de Otávio Augusto, porque o filho do antigo governante estaria mais próximo do trono do que o sobrinho, ou poderia se tornar um joguete político nas mãos de seus oponentes. Com Marco Antônio, general de César, ela teve mais três filhos, Cleópatra Selene II, Alexandre Hélios, e Ptolomeu Filadelfo.  As crianças foram poupadas e Otávio os levou para Roma onde foram educados por sua própria irmã, Otávia, que era a esposa legítima, segundo a lei romana, de Marco Antônio.  E não pense que foram maltratados, Otávia é louvada como uma mulher virtuosa para os padrões romanos por tê-los tratado como seus próprios filhos.  

Lembro da medievalista francesa Régine Pernoud nesse momento que, em uma crítica a algumas feministas dos anos 1970 que atacavam a ideia de maternidade atribuindo parte da subordinação das mulheres ao fato de parirem e terem que maternar, citou de Leonor da Aquitânia, que foi tão politicamente ativa quanto uma Cleópatra e teve vários filhos em sequência.  Sim, não havia incompatibilidade entre a prática do poder político de uma mulher e a maternidade, porque gerar filhos era uma forma de exercitar esse poder, também.  E, antes que alguém se empolgue, não havia pílula.  Além disso, essas mulheres poderosas não precisavam maternar, havia muitas criadas e/ou escravas para isso, nem sequer amamentar suas próprias crianças elas amamentavam, salvo em casos muito excepcionais.  😉

Esse poder exercido de forma tão descarada por uma mulher, que chegou a residir em Roma com o amante Júlio César, não a tornou popular entre os romanos, claro.  E os acontecimentos que se seguiram, o assassinato de César, sua aproximação com Marco Antônio, a tentativa deste de dividir Roma e se apossar do Oriente, não a fizeram entrar na História Romana e, por conseguinte, na narrativa histórica tradicional, aquela que normalmente aprendemos na escola, sob uma boa luz.  O olhar machista sobre a personagem acabou transformando Cleópatra em uma femme fatale, uma mulher que só poderia ser uma beldade sedutora para convencer dois homens tão poderosos, primeiro César, depois Marco Antônio, a entrarem em acordo com ela, a se tornarem seus amantes, ou companheiros.  Homens não apreciam a inteligência de uma mulher, querem seu corpo.  Isso é um mantra repetido até nossos dias.  E veio o anúncio do novo filme sobre Cleópatra.

Tornou-se público que Gal Gadot e Patty Jenkins, parceiras em Mulher Maravilha e no segundo filme inédito da super heroína, estão na produção.  Não sei qual será o tom do filme, se tomará por base alguma biografia histórica de Cleópatra, se vai tentar vendê-la como ícone feminista, se tentará uma abordagem mais realista e próxima das fontes.  O fato é que a escolha de Gadot, uma mulher belíssima, já aponta para o fato de que, sim, Cleópatra será linda, mas e o resto?  Se me perguntarem nessa altura do campeonato se estou empolgada com o filme, diria que não sei, vamos esperar.  Duvido que seja ruim de todo e se nada der certo, sobram homens com roupas romanas para a minha apreciação.  Sim, tenho um fetiche por isso, já comentei, acho, que na resenha de Alexandria (Ágora).

Mas o que pipocou desde ontem sobre o filme foi que a atriz deveria ser negra.  Olha, crianças, vou citar direto de um post que fiz quando da escalação do live action da Pequena Sereia: 

"De resto, um colega de Facebook veio com aquele papo "o mundo está chato", hoje não deixariam Elizabeth Taylor ser Cleópatra.  Provavelmente, não deixariam mesmo, mas olha, eu que gosto desse tipo de filme considero esse Cleópatra insuportável.  É megalomaníaco e chato.  Agora, argumentar que a última faraó do Egito precisa ser negra, porque todos os egípcios eram negros (😆) é de uma ignorância histórica absurda.
Cleópatra era descendente de Ptolomeu, um general grego e a família praticava endogamia loucamente (*seguindo o  modelo egípcio, aliás*).  Ela poderia não ser branca para os padrões dos extremistas brancos, mas só seria considerada negra dentro da regra que divide a humanidade em dois grupos somente.  Cleópatra poderia ter minha cor de pele, por exemplo, ser mais clara, mais escura, enfim.  Agora, o que a iconografia aponta, e que Asterix retratou muito bem, é que ela tinha um nariz de respeito.  E isso, senhoras e senhores, a Lizzie Taylor não tinha! "

As representações de Cleópatra em sua própria época, e coloquei várias no post não me parecem retratar uma mulher negra, salvo repito, que se tente colocar em uma mesma caixinha todos os não-brancos strictu sensu da palavra e, bem, a gente já está meio careca de saber que os próprios romanos não eram tão brancos assim como muita gente acredita.  Então, de minha parte, a aparência de Gadot não me incomoda em nada.


A outra crítica, claro, é de ordem política.  Eu discuti as opiniões políticas da atriz, que é israelense, na resenha de Mulher Maravilha, já linkada no texto, mas devo lembrar aos coleguinhas, não que faça diferença para os adeptos de linchamentos e cancelamentos virtuais, que nossa geopolítica atual nada tem a ver com a do século I a.E.C. (*Antes da Era Comum*).  Não havia Islã, nem Estado de Israel, nem Cristianismo, não havia as disputas atuais pela região hoje chamada Palestina, ela já era romana nessa época e o Egito da época não era parecido com o que temos hoje, nem falava árabe.  

Agora, quem está atento à política atual, deve saber que a Liga Árabe, ou ainda o mundo muçulmano, não é um bloco monolítico.  Nas últimas duas semanas, estavam celebrando, inclusive nosso presidente, os acordos entre Israel e vários países do Golfo sob os auspícios norte americanos. Mesmo a Arábia Saudita, governada por aquele docinho de coco de príncipe "progressista" deles, está se aproximando de Israel. Os governos, porque é deles que eu estou falando, dos países árabe-muçulmanos não estão se preocupando com os palestinos, salvo em seu próprio interesse.  Aliás, recomendo enormemente o livro Minha Briga com o Islã da jornalista lésbica, feminista, muçulmana, canadense de origem egípcia e indiana e nascida em Uganda,  Irshad Manji, porque ela trata muito bem dessas hipocrisias.   

Fora isso, países como Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes estão deportando uigures, que são muçulmanos, para a China, apesar da grande grita internacional sobre o desrespeito aos direitos humanos da minoria étnico-religiosa.  Além disso, o Egito é, desde os acordos de Camp David de 1979, aliado dos EUA, recebe farta ajuda econômica da potência, e mantém relações regulares com Israel, inclusive ajudando a tornar a vida dos palestinos ainda mais miserável, o que durante um bom tempo resultou em condenação por parte dos países da Liga Árabe.  Hoje, ao que parece, está tudo acomodado.

Enfim, quem  quiser que pinte o mundo de preto e branco, eleja seus mocinhos e seus vilões, e queime a Gal Gadot, ou todos os israelenses, ou todos os judeus, nessa fogueira inquisitorial que me cheira à antissemitismo travestido de agenda política secreta, ou nem tanto.  Aliás, mais fácil bater na Gal Gadot, uma mulher que normalmente abraça causas corretas, do que botar o tico e o teco para funcionar.  


Eu realmente gostaria de ver no meu período de vida a condição dos palestinos melhorando, mas sua miséria atende muito às estratégias de poder da geopolítica do Oriente Médio, inclusive aos países árabes-muçulmanos que, desde  um primeiro momento, se recusaram, junto com o Reino Unido, a aprovar a resolução 181 da ONU costurada por nosso diplomata Oswaldo Aranha, ou oferecer uma outra proposta.  Além de não entregarem para julgamento o mufit de Jerusalém, aliado de Hitler e um dos incentivadores do Holocausto (*não responsável, que fique claro, porque trata-se de uma iniciativa da Alemanha Nazista*).

Mas existe uma tendência dentro das produções ocidentais a ver o Egito como branco se comparado com o resto da África.  Aliás, há quem veja o Egito como algo à parte do continente africano e, não, como sua civilização mais brilhante.  Essa imagem do Egito branco, que possibilitou que Vivien Leigh e Elizabeth Taylor fossem Cleópatra, continua forte até hoje.  Estava vendo umas críticas à escalação de Gal Gadot, acusando-a de "apropriação cultural" (???) e propondo que colocassem no lugar uma atriz chamada Nadine Njeim, de ascendência libanesa e tunisiana, que tem praticamente o mesmo  tom de pele de atriz israelense e dois olhões verdes.  Vejam que o problema não é que Gadot seja considerada socialmente branca, nunca foi.  Aliás, a maioria dos críticos no Oriente Médio não proporiam uma Cleópatra negra e nem estão se importando que Cleópatra não fosse árabe.  Ela só não pode ser a Gal Gadot.

Mas, o tema é o filme Cleópatra, certo?  Que o filme seja muito bom, que Gal Gadot represente bem Cleópatra, que não seja simplesmente um panfleto feminista raso, mas um filme feminista de fato na medida que lê as fontes sem os antolhos patriarcais.  E, claro, que os homens fiquem lindos em roupas romanas.  Aliás, quero saber quem serão César, Marco Antônio e Otávio.

1 pessoas comentaram:

Concordo muito com seu texto, o que mais importa é se Cleópatra finalmente será retratada como merece ou não. Afinal, apesar das milhares de adaptações existentes, praticamente nenhuma se salva. Eu confio na Patty Jenkins, ela fez um trabalho maravilhoso em Monster e Mulher-Maravilha. A Gal é linda e carismática, mas a acho mediana como atriz, espero ser surpreendida.
Eu queria muito que fizessem mais trabalhos sobre o Egito Antigo além da Cleópatra, rainhas como Nitiqret, Nefertiti e Hatshepsut possuem histórias fantásticas e merecem mais reconhecimento. O mais próximo que tivemos disso nos últimos anos foi a minissérie TUT que é legal, mas esquecível.

PS: Homens em roupas romanas são sempre bem-vindos ;)

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