quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Comentando os volumes #16, #17 e #18 de Ōoku: o melancólico fim do Xogunato das Mulheres

Ōoku (大奥), de Fumi Yoshinaga, é um dos mangás que eu acompanho e resenho volume a volume no Shoujo Café.  Faz mais de dois anos que não comento nenhum volume, o último foi em junho de 2019, a série terminou em 28 de dezembro de 2020 no Japão e fechou com 19 volumes.  Eu tinha lido quase até o fim o volume #16, isso no começo da pandemia de COVID-19 acredito que meu humor, como o de muitas pessoas pelo mundo, não estivesse nada bom.  Achei o pior volume da série, não terminei e estava com três volumes por ler e resenhar até agora.  Trouxe para as férias e li tudo de ontem para hoje.  Estou feliz, porque mesmo que Yoshinaga não termine o mangá como eu esperava, acredito que ela fechará a série de maneira digna e, claro, triste, melancólica, porque não há como fugir disso.

Para quem nao conhece a história do mangá, Ōoku, a série começa no início do século XVII, quando boa parte da população masculina jovem japonesa é dizimada por uma doença chamada varíola vermelha.  A falta de homens e a possibilidade do Japão sofrer uma invasão leva ao fechamento do país a qualquer contato com o exterior e, com o tempo, todos os cargos e funções passam a ser ocupados por mulheres a ponto das novas esquecerem completamente de que houve um Japão comandado por homens.  Só que um livro chamado Crônica de um Dia Agonizante mantém o registro dos acontecimentos que conduziram à praga e ele é entregue à 8ª xogum, Yoshimune.  Ela mesma nao sabia por qual motivo títulos e nomes masculinos eram dados às mulheres.

Os escribas, que são homens, decidiram manter os registros ajustando datas de forma que, quando a doença passasse, o Xogunato das mulheres nunca fosse lembrado.  Estamos na parte do mangá no qual a doença foi controlada, uma vacina desenvolvida e os europeus e norte-americanos já estão no Japão, só que a xogum ainda é uma mulher e este é um segredo que precisa ser guardado a todo custo.  Há a pressão para que o Japão se abra completamente ao comércio com o exterior, e grupos que não desejam isso, que desejam a expulsão dos bárbaros, o Clã Tokugawa está enfraquecido e sofre forte oposição dos senhores de Saitama, Choshu e de uma facção na corte imperial que deseja dar o poder ao imperador.  A Revolução Meiji (1868) está às portas.

Para quem não tem na cabeça os marcos da História do Japão, uma rápida explicação.  Entre  1603 e 1868, o clã Tokugawa governou o Japão, depois de ter centralizado o poder em suas mãos e acabado com um período de guerras civis.  O governo estava na mão de um chefe militar que governava a partir de Edo (Tokyo), sustentado por uma intrincada rede de fidelidades de senhores de homens e terras (daimios), todos membros da classe dos samurai, organizados em uma hierarquia de grandeza.  O imperador (mikado) tinha funções cerimoniais.  Durante o início do período Tokugawa, foram baixados váriso decretos que isolaram o Japão do resto do mundo, permitindo mínimo contato com o exterior.  De forma legal, somente com os holandeses em Dejima.  O isolamento (sakoku) de 2020 anos foi rompido com a chegada de navios norte-americanos que obrigaram os japoneses a assinarem a convenção de Kanagawa, em 1854.

Quando terminamos o último volume, estamos no ano de 1862 e a nova xogum, Iemochi, acabou de se casar com o Príncipe Kazu, irmão do imperador, em um acordo sem precedentes para garantir a harmonia entre a casa imperial e o xogunato.  O problema é que o príncipe é uma princesa e é criada uma situação absurda, porque o xogum está em uma posição enfraquecida e a revelação do "segredo" poderia criar um escândalos que destruiria o Xogunato.  A descoberta é o ponto de partida do volume #16 com Takiyama, o camareiro-mor do harém,  Tenshō-in, viúvo de Iesada, a xogum anterior, e Iemochi tentando decidir o que fazer.  Terão que guardar o segredo e controlar ao máximo quem pode ter contato com o consorte da xogum, que tem dois atendentes que, na verdade, são mulheres sob disfarce, uma delas é a mãe da princesa.

Este volume me enervou bastante, porque o comportamento dos nobres vindos da Corte Imperial é afrontoso ao extremo e o tratamento dispensado a elas por Iemochi era extremamente gentil, quase subserviente.  Lendo, me sentia o próprio Takiyama indignada com a forma grosseira como Kazu, sua mãe e sua ama tratavam a todos no castelo da xogum, especialmente, a xogum e Tenshō-in.  Relendo o volume, consegui desenvolver uma simpatia enorme por Iemochi, a moça, ainda muito jovem, é a mais gentil e humana de todas as xogum, seu objetivo maior é a felicidade de seu povo e ela não se importa em ceder e até se humilhar para conseguir o melhor para todos.

Kazu é antipática, sim, não importa os abusos que sofreu, ou a rejeição de sua mãe.  A princesa nasceu sem a mão esquerda e a concubina do imperador a escondeu, oficialmente, a menina estava morta.  Diante do desespero do verdadeiro Kazu, ela, que se chama Chikako, se oferece para substituí-lo, sabendo que os Tokugawa, fragilizados, não poderiam expor o embuste por causa do escândalo. Com paciência, Iemochi consegue romper com a dura carapaça da princesa e chegar ao seu coração.  Sim, e temos formado um dos mais curiosos e bonitos casais de toda a série.  Kazu não se torna uma pessoa doce, continua um tanto dura, mas ela percebe que é amada e consegue amar.

Aqui, é importante discutir o tipo de casal formado por Iemochi e Kazu.  Entre as duas jovens mulheres se forma um elo de respeito e afeto, Kazu passa a admirar a bondade e o desejo de fazer o melhor, mesmo a custa de seu próprio bem-estar, de Iemochi.  As duas conseguem algum tempo em privado, quando ambas usam roupas femininas e Iemochi chama Kazu pelo seu nome, Chikako.  Já a xogum, rompendo com o que seria o seu dever, se recusa a tomar um concubino  e mesmo gerar filhos, ela decide adotar um parente próximo.  Para ela, gerar, ou adotar, seria a mesma coisa.  

Este posicionamento de Iemochi é uma ruptura absoluta com o que vimos ao longo da série, com mais de uma xogum sacrificando-se para gerar um filho, quando ainda se esperava que o governante fosse um homem, ou uma filha. Quantas tragédias vimos em Ōoku, porque as xogum, mesmo poderosas, eram valorizadas em primeiro lugar por sua capacidade de gerar filhos?  Começando, claro, com Iemitsu, vista como um receptáculo do sangue dos Tokugawa e um prolongamento de seu pai.

O fato é que Iemochi termina por convencer Kazu de que ambas podem educar e amar o menino e serem sua mãe e seu pai, ou suas duas mães.  Não há sexo entre elas, ou qualquer demonstração aberta de gestos físicos de afeto, na verdade, acredito mesmo que seria correto dizer que Iemochi é assexual, mas o desenvolvimento da relação das duas se dá de forma muito tocante ao longo dos volumes #16 e #17.  Nesses encadernados vemos a xogum sendo obrigada a aceitar como seu guardião, Tokugawa Yoshinobu, que fora preterido na sucessão de Iesada, e a se dirigir até Kyoto com uma grande procissão para encontrar o imperador Kōmei.  

O imperador também cai sob o encanto da xogum, que jura que irá cumprir o seu dever e proteger o soberano, e lhe reconhece as qualidades.  Já Iemochi a proveita para contar ao mikado, que ele tem uma irmã, e que ela está em Edo e é seu marido.  O imperador lhe dá um documento de próprio punho reconhecendo sua irmã e lhe pede que use se necessário.  Será, mas isso deve ter ficado para o volume #19.  O fato é que o imperador quer a manutenção do xogunato, mas Iemochi sabe que o regime está com os dias contados e consegue convencer o mikado de que expulsar os bárbaros é impossível.

O esforço de Iemochi, que visita o imperador mais de uma vez, vai minando sua saúde.  Assim como ocorrerá com outra xogum, Ieharu, ela sofre de beriberi, uma doença causada pela carência de vitamina B1 e ligada à dieta típica de Edo, pobre em proteínas animais e que tinha como base um arroz branco super lavado.  Aliás, nos volumes #16 e #17, seja pelo confronto entre os que vieram de Kyoto e os que estão em Edo, seja por causa da doença de Iemochi, há várias discussões sobre hábitos alimentares.  Yoshinaga gosta de fazer mangá gorumet, então, ela entende do assunto.  Por conta da discussão, acabei descobrindo que comer animais de quatro patas (*boa, cavalo, javali, porco, cervos, tanuki etc.*) era visto como algo impuro por razões religiosas, ainda que em algumas áreas do Japão, como Satsuma, os preceitos não fossem levados tão à sério.

O fato é que ao longo do volume #17, Iemochi percebe que não tem mais tanto tempo e precisa fazer o possível para evitar a guerra civil e garantir o menor dano possível à população civil.  Uma personagem com grande destaque nesse volume é Katsu Rintaro, que apareceu rapidamente quando jovem trocando cartas com a ministra Abe Masahiro, uma das melhores personagens de toda a série, e que foi um dos primeiros japoneses a viajar pelo mundo.  Apaixonado pela xogum, ele decide servir aos Tokugawa e aturar o máximo possível Yoshinobu, a quem considera um sujeito sem honra e capaz de tudo.  

Rintaro não acredita que os domínios de Chonshu e Saitama possam se unir contra os Tokugawa, mas Tenshō-in, que recebe informações por meios que a gente nunca fica sabendo quais são, acaba por convencê-lo de que, sim, a coisa pode acontecer.  Aliás, outra coisa que não se entende, mas que é um problema de coerência da série, é se a xogum tem, ou não tem, treinamento militar.  Yoshimune tinha, mas desde muito cedo ficou caracterizado que as tropas que entravam em contato com estrangeiros eram compostas por homens.  Mas e as regulares?  E o segredo de que o xogum era uma mulher?  Iemochi se monta para a guerra e se apresenta para liderar suas tropas.

O fato é que ao longo dos volumes #16, #17 e #18, a velha ordem agoniza.  A morte da xogum precipita uma decisão por parte de Kazu, ter um filho no lugar da esposa.  E isso rende um dos momentos de humor verdadeiro em volumes muito tensos.  Takiyama se desespera e diz que está velho demais para ser o escolhido.  Já Kazu e Tenshō-in, um dos homens mais bonitos de toda a série, se mostram enojados com a sugestão de gerarem juntos um herdeiro para Iemochi.  No fim das contas,  Kuroki, descendente de uma personagem que apareceu nos volumes #9 e #10 e que era atendente de Takiyama é escolhido, como foi para se deitar com a xogum, para engravidar Kazu.  O rapaz, no entanto, a convence de desistir, que a xogum não aceitaria o seu sacrifício, nem o permitiu.  O problema é que parte do discurso do rapaz é sobre os perigos da gravidez e do parto, pintados por ele como um circo de horrores.  Foi o único momento dos três volumes que me desagradou.

Com um xogum homem, o Ōoku será reduzido ou até fechado, fora isso, as restrições orçamentárias já estavam em vigor.  Takiyama sabe que tem pouco tempo e corre para arranjar uma saída que seja o menos dolorosa para os homens do harém das mais diferentes categorias.  Aqui, é relembrado que ele foi o camareiro-mor que por mais tempo serviu no Ōoku, sendo visto como uma reencarnação de Arikoto.  Será revelado, também, que o hobby de Takiyama é estudar línguas se seu passado como prostituto, a lembrança de Abe Masahiro, retornam.  Masahiro, uma das últimas mulheres ministros do xogum, o tirou de uma vida que ele não tinha escolhido e foi ela quem ajudou Rintaro.  Os dois, aliás, discutem a língua inglesa e sua simplicidade frente o holandês e ao japonês.

Algo que dói em Takiyama é que o novo xogum ordena que o quimono tradicional usado no Ōoku, o kamishimo, seja abandonado e que todos passem a utilizar um modelo simples.  Takiyama, um homem elegante e amante dos designs elaborados criados na época de Arikoto (*vide imagem acima*), se sente ofendido, mas tem que se curvar.  Ele também se preocupa com seu novo atendente, um jovem órfão que aparece com ele na capa do volume #18.  O fato é que os duas do Ōoku estão contados e não me espantaria se Takiyama cometesse suicídio no próximo volumes.

Nesses três volumes é mostrado como a velha ordem vai se deteriorando, com a formação de um conselho e a evidente perda de poder dos Tokugawa.  Yoshinobu, agora residindo em Kyoto, abre mão do poder e o entrega ao imperador, em um blefe que se revela um erro.  Além disso, o número de samurai sem mestre, os ronin, e outros andarilhos, estão comprometendo a segurança de Kyoto e de outas partes do país.  Já na segunda parte do volume #18 é mostrada a morte do imperador  Kōmei e Yoshinaga abraça a ideia de que o monarca foi assassinado para que o projeto de unificação de poder nas mãos do imperador se concretize, ainda que ninguém acredite que o novo mikado irá exercer seu poder pessoal.  É um novo erro...

Sobre discussões de gênero e o que parece ser a mensagem que a autora deseja passar, a conversa entre Rintaro e Takiyama é bem reveladora.  Eles trazem falas de Iemochi e o exemplo de Abe Masahiro, o melhor governo não é aquele formado por gente escolhida por seu sexo biológico, ou por seu nascimento.  Iemochi sonhava com um futuro onde os nobres não dominassem.  Masahiro via qualidades em gente que era considerada inferior, degradada, caso de Takiyama e Rintaro.  Ambas eram mulheres competentes que, na nova ordem, serão excluídas do poder e das profissões simplesmente por serem mulheres.  Sim, Ōoku é uma série feminista e Yoshinaga nos lembra isso nesse volume #18.

Eu pensei que Takiyama se despediria nesses volumes, mas ele seguirá conosco até o final.  É incomum na série ver uma personagem que resista a mais de três volumes.  O protagonista é o  Ōoku, ele permanece, as personagens passam.  Curiosamente, do elenco principal dos últimos cinco, seis volumes, Takiyama é o único que permanece, ele bate um recorde de participação, porque Arikoto poderia até estar vivo no volume #6, mas ele só participou ativamente realmente dos volumes #2, #3 e #4.

E acho que é só por agora.  A capa branca veio no volume #18, tradicionalmente, a capa que não é preta significa uma grande mudança. Acredito que seja por causa da morte da xogum, mas vi maiores transformações no volume #17.  Mudanças dentro do Ōoku, com a mudança de comportamento de Kazue fora, no caso do agravamento da crise política.  Em março, meu volume #19 deve chegar e eu farei a última resenha.  Minha intenção é gravar um Shoujocast sobre a série que, agora que terminou, poderia ser lançada no Brasil.  Para quem se interessar, na época do Shoujocast podcast, fizemos um programa sobre o primeiro filme para o cinema baseado de Ōoku, que é de 2010, tem resenha, também.  Além disso, teve seriado para a TV e outra adaptação cinematográfica, em 2012.  Eu torço para que outros pedaços da história sejam adaptados.  Para acessar as resenhas dos outros volumes, basta clicar na tag Ōoku.

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